Discos para história: Getz/Gilberto, de Stan Getz & João Gilberto (1964)

História do disco

Tudo na vida tem um começo. Nada começa do nada. Até a gravação do histórico “Getz/Gilberto”, do saxofonista americano Stan Getz e do músico brasileiro João Gilberto, nos dias 18 e 19 de março de 1963, no A&R Recording Studios, em Nova York, muita coisa aconteceu. Para começar, alguns anos antes, o apartamento de Nara Leão recebeu músicos do calibre de Johnny Alf, Billy Blanco, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Sérgio Ricardo, Chico Feitosa, João Gilberto, Luiz Carlos Vinhas, Ronaldo Bôscoli e outros na “invenção” da bossa nova.

Elizeth Cardoso foi a primeira a gravar as canções da dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes, mas foi o álbum de estreia de João Gilberto, “Chega de Saudade”, considerado uma espécie de pontapé oficial. O movimento cultural acabou abraçado pelas elites e pela política — Juscelino Kubitschek era chamado de “Presidente Bossa Nova” pela então levada moderna do mandato. O ápice foi a composição da dupla chamada “Garota de Ipanema”, uma das músicas mais famosas e gravadas do mundo até hoje. Isso era 1962. Também naquele ano, Stan Getz e Charlie Byrd lançaram o álbum chamado “Jazz Samba”, com as músicas que Byrd conheceu na passagem pelo Brasil um ano antes. Elogiado pelos críticos, chamou a atenção para os músicos brasileiros e as composições.

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Em novembro de 1962, João Gilberto, Oscar Castro-Neves, Luiz Bonfá e Sergio Mendes foram a Nova York para fazer a histórica apresentação no Carnegie Hall, celebrada como um dos momentos mais importantes da história da música brasileira, apesar de ter sido chamada de “fracasso” pelos jornais da época. Aproveitando o embalo e sucesso locais, muitos deles optaram por ficar nos Estados Unidos. Alguns voltaram ao Brasil no futuro, como João Gilberto e Luiz Bonfá. Outros, como Mendes, Jobim e Castro-Neves, ficaram na terra do Tio Sam em definitivo.

Aproveitando isso, mais o sucesso do trabalho de Byrd e Getz, o produtor Creed Taylor teve a ideia de juntar o saxofonista, um ícone do jazz clássico, com alguns dos principais nomes da bossa nova. A ideia era lançar vários álbuns ao longo dos anos para capitalizar em cima do sucesso de todos eles, sendo Bonfá o primeiro a trabalhar com ele. Nos dias 8, 9 e 27 de fevereiro, eles entraram em estúdio para gravar o LP “Jazz Samba Encore”, lançado em março de 1963. Ainda que tenha vendido menos do que as empreitadas anteriores, incluindo “Big Band Bossa Nova”, gravado em parceria com Gary McFarland, o álbum foi bem recebido e serviu como incentivo para prosseguir com a empreitada, agora com João Gilberto como convidado dali a poucas semanas.

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Taylor estava com Getz na Verve há algum tempo e estava acostumado a gravar com ele, mas dupla não tinha ideia de como era trabalhar com João Gilberto, já uma pessoa considerada difícil e metódica em estúdio naquela época. Por exemplo, existe a história de que a mulher de Getz, Monica Silfverskiöld, foi quem deu a ideia da gravação e precisou buscar João no hotel por ele se recusar a ir ao estúdio. Lá, a situação não melhorou muito, com uma guerra de egos entre os dois, com o produtor administrando a situação e Jobim fazendo o meio-campo da tradução. Desses momentos tensos, surgiu a icônica passagem de João Gilberto dizendo “fala pra esse gringo que ele não manja porra nenhuma”, no que Tom traduziu a Getz: “ele disse que seu grande sonho era gravar com você”.

Também foi em uma animada discussão, chamemos assim, que Astrud Gilberto acabou participando do álbum com os vocais de “The Girl from Ipanema” e “Corcovado” na primeira gravação profissional. Ruy Castro, no livro “Chega de Saudade”, afirma que ela insistiu para fazer parte do trabalho. No site oficial, ela diz ter sido ideia de João. Outra versão fala em uma longa negociação, com Monica convencendo Getz a aceitar a brasileira na gravação. No fim das contas, deu tudo certo. Até chegar a hora da mixagem. 

Mais:
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Os dois dias de gravação seriam considerados de paz e tranquilidade se comparados com a mixagem do álbum. De um lado, Getz queria uma abordagem mais dura ao melhor estilo do jazz tradicional, enquanto Gilberto tinha preferência por algo mais delicado. O saxofonista também aumentava o volume do instrumento, deixando Jobim furioso por encobrir o piano e esconder os arranjos. Os problemas não impediram novos álbuns da dupla no futuro, mas causaram certas rachaduras quando entravam em estúdio — fora deles, as famílias eram amigas e a convivência era das melhores.

Considerado de ótima qualidade por quem trabalhou no estúdio, incluindo Sebastião Neto e Milton Banana, o disco foi engavetado por Taylor por mais de um ano por receio do fracasso comercial. Os “culpados” disso foram os Beatles, que foram conquistando a juventude da América lentamente até conseguir o primeiro lugar da parada em 25 de janeiro de 1964, com “I Want To Hold Your Hand”. A bossa nova soava velha menos de uma década da estreia em disco e apenas dois anos após conquistar os Estados Unidos.  

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Lançado em março de 1964, “Getz/Gilberto” chegou ao segundo lugar na parada e passou quase dois anos na lista dos mais vendidos, surpreendendo a todos dentro e fora da Verve ao virar um dos trabalhos mais vendidos da história da gravadora. No Grammy do ano seguinte, levou os prêmios de Melhor Álbum Instrumental de Jazz, Individual ou Grupo, Melhor Produção de Álbum Não Clássico e Melhor Álbum do Ano, principal prêmio. “The Girl from Ipanema” também levou o prêmio de Gravação do Ano.

A espera valeu a pena para todos os envolvidos em “Getz/Gilberto”. Quase seis décadas após o lançamento, o trabalho ainda soa fresco e importante para entender como a bossa nova foi importante para o desenvolvimento da música brasileira no exterior. Ao longo dos anos, o LP seria considerado fundamental em qualquer coleção. Stan Getz e João Gilberto ainda gravaram mais dois álbuns, mas nenhum com o tamanho e relevância do primeiro, um colosso com o melhor de dois mundos.

Crítica de “Getz/Gilberto”

Ao longo de mais de 60 anos, talvez tudo já tenha sido dito sobre “Garota de Ipanema”. Da inspiração de ver Helô Pinheiro na praia até as centenas de versões pelo mundo, a faixa tem um tratamento especial nos versos em inglês escritos por Norman Gimbel, que queria retirar as referências à praia, no que Tom Jobim recusou prontamente. Ainda bem, já que é essa brasilidade a diferença nos versos eternizados por Astrud Gilberto e no solo de saxofone marcante de Stan Getz.

A delicada “Doralice” ganha com o vocal de João Gilberto e um saxofone menos presente, deixando tudo mais leve para regravação da canção de Antônio Almeida e Dorival Caymmi (“Um belo dia você me surgiu/ Eu quis fugir mas você insistiu/ Alguma coisa bem que andava me avisando/ Até parece que eu estava adivinhando”). De Ary Barroso, a dupla gravou “Para Machucar Meu Coração”, com destaque para a bateria presente de Milton Banana, e encerrou o lado A com “Desafinado”, um dos clássicos da bossa nova.

A segunda parte abre com “Corcovado (Quiet Nights of Quiet Stars)”, conhecida pela minha geração por ser a abertura da novela “Laços da Família” (“Quero a vida sempre assim/ Com você perto de mim/ Até o apagar da velha chama/ E eu que era triste/ Descrente desse mundo/ Ao encontrar você eu conheci/ O que é felicidade, meu amor”). Outro clássico do trabalho, traz os vocais do casal João e Astrud, uma combinação que poderia ter feito mais sucesso se o músico não fosse tão excêntrico e problemático em vários momentos da carreira e da vida pessoal. Depois surge a animada “Só Danço Samba”, alongada pelo solo de mais de dois minutos de Getz.

E se a curta “O Grande Amor” (“Haja o que houver/ Há sempre um homem, para uma mulher/ E há de sempre haver para esquecer/ Um falso amor e uma vontade de morrer”) também ganha longas partes instrumentais, “Vivo Sonhando” (“Vivo sonhando, sonhando mil horas sem fim/ Tempo em que vou perguntando, se gostas de mim”) fecha o trabalho de maneira um tanto melancólica e cheia de categoria.

Os dias em estúdio não foram fáceis, mas valeram cada minuto de “Getz/Gilberto”. Quase uma coletânea com as músicas mais conhecidas da bossa nova no período, serviu para sacramentar o talento dos brasileiros para o resto do mundo, admirados até hoje por qualquer um que tenha contato com a música e com as histórias. O tempo passou e o álbum segue mais relevante do que nunca, mostrando que a boa qualidade supera qualquer teste do tempo.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - “The Girl from Ipanema” (Antonio Carlos Jobim, Vinícius de Moraes/ Norman Gimbel) (5:21)
2 - “Doralice” (Antônio Almeida/ Dorival Caymmi) (2:47)
3 - “Para Machucar Meu Coração” (Ary Barroso) (5:07)
4 - “Desafinado” (Antonio Carlos Jobim/ Newton Mendonça) (4:09)

Lado B

1 - “Corcovado (Quiet Nights of Quiet Stars)” (Antônio Carlos Jobim/ Gene Lees) (4:17)
2 - “Só Danço Samba” (Antonio Carlos Jobim/ Vinícius de Moraes) (3:42)
3 - “O Grande Amor” (Antônio Carlos Jobim/ Vinícius de Moraes)    (5:27)
4 - “Vivo Sonhando” (Antonio Carlos Jobim) (2:56)

Gravadora: Verve
Produção: Creed Taylor
Duração: 33min46

Stan Getz: saxofone tenor
João Gilberto: violão e vocal
Antônio Carlos Jobim: piano
Sebastião Neto: baixo duplo
Milton Banana: bateria e pandeiro
Astrud Gilberto: vocal em “The Girl from Ipanema” e “Corcovado”

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