Discos para história: Diamond Dogs, de David Bowie (1974)

História do disco

David Bowie parecia voar na própria criatividade na primeira metade dos anos 1970. Avançando cada vez mais no visual, as músicas não ficavam muito atrás. Ao matar Ziggy Stardust, o personagem mais famoso dele até hoje, mostrava ter total controle do que fazer e como fazer para conseguir os próprios objetivos na carreira. E após o final das gravações do álbum de covers “Pin-Ups”, de 1973, na França, ele partiria para o projeto mais ousado da carreira: um álbum conceitual baseado no livro “1984”, de George Orwell, lançado em 1949.

“Winston, herói de ‘1984’, último romance de George Orwell, vive aprisionado na engrenagem totalitária de uma sociedade completamente dominada pelo Estado, onde tudo é feito coletivamente, mas cada qual vive sozinho. Ninguém escapa à vigilância do Grande Irmão, a mais famosa personificação literária de um poder cínico e cruel ao infinito, além de vazio de sentido histórico. De fato, a ideologia do Partido dominante em Oceânia não visa nada de coisa alguma para ninguém, no presente ou no futuro. O'Brien, hierarca do Partido, é quem explica a Winston que ‘só nos interessa o poder em si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida longa, nem felicidade: só o poder pelo poder, poder puro’”, diz a sinopse do livro, disponível na Amazon.

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O mundo distópico, futuro e ficção cientifica sempre foram temas importantes na discografia de Bowie ao longo dos anos. Do hit “Space Oddity” passando pela inspiração em filmes como “2001: Uma Odisseia no Espaço”, “Laranja Mecânica” até os trabalhos de Isaac Asimov, separar o cantor dessas temáticas é como arrancar parte da alma de mais de 50 anos da discografia. Por isso, soava natural o interesse no trabalho de Orwell, lançado quando Bowie tinha apenas dois anos.

Na Itália, ele começou a trabalhar nas letras da adaptação e tudo ia bem até o contato com a família do escritor, dona dos direitos de publicação e adaptação da obra para qualquer mídia. A viúva de Orwell bloqueou qualquer tentativa na hora, alegando que o fracasso de um filme foi uma mancha enorme no legado do marido. Era a primeira vez que o cantor precisava lidar com uma rejeição de um espólio.

“Eu realmente tive que me virar rapidamente, porque já estava no estúdio gravando algumas partes e pensei, 'ah, não!, meio que tenho que ir para outro lugar com isso [o material]’”, contou ele ao livro “Strange Fascination”, de David Buckley.

Ao precisar reescrever parte da obra com o processo de produção já em andamento, Bowie precisou enfrentar um novo processo de composição, já muito difícil por conta de todo trabalho envolvido com a nova banda. A inspiração veio dos dias do pai, John Jones, em uma instituição de caridade para crianças, quando ouvia histórias muito pesadas sobre crianças rebeldes morando em lugares insalubres e cometendo pequenos furtos para sobreviver. O nome “Diamond Dogs”, moradores da pós-apocalíptica Cidade da Fome, caiu muito bem para esse novo projeto em uma história inspirada por momento pré-movimento punk.

Claro que a inspiração do cinema não poderia ficar de fora. “Monstros”, filme de 1932 dirigido por Tod Browning e banido por mais de 30 anos por mostrar pessoas excluídas pela sociedade da época por “deformidades físicas”, foi uma fonte importante para encontrar o tom dos personagens na cidade ficcional. Outro longa foi “Metropoles”, de Fritz Lang, de 1927, que o cantor viu uma vez no cinema e, impactado pela obra, assistiu repetidas vezes em sessões caseiras organizadas por ele mesmo para amigos e conhecidos. Por fim, o trabalho do escritor americano William S. Burroughs, radicado em Londres, foi de grande importância. Muito mais de uma vez, durante as gravações, Bowie era pego recortando palavras e trocando a ordem de versos das músicas prontas na hora de gravação, técnica muito usada por Burroughs em diversas obras ao longo da vida. 

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Naquela época, o vício em cocaína estava no auge e o declínio físico e mental do cantor era nítido. Entre a “morte” de Ziggy e o final das gravações de “Diamond Dogs”, Bowie estava esquelético, branco como a neve e completamente fora de controle, gerando preocupação genuína nos amigos se ele sobreviveria até o final do próximo ano. Isso também causava problemas em relacionamentos de longa data, com pessoas se sentindo desprezadas por Bowie — muitos dos antigos companheiros de banda e turnês nunca mais falaram com ele após o contato nesse período.

Uma dessas pessoas foi o produtor Ken Scott, dispensado sem qualquer comunicação após o trabalho em ‘The 1980 Floor Show’ — espetáculo filmado nos dias 18, 19 e 20 de outubro com convidados especiais e recheado de celebridades na plateia. Ele entendeu o recado ao descobrir sessões de Bowie agendadas no Olympic Studios, em Londres, sem ele. Foi o fim da relação de trabalho iniciada em “Hunky Dory” e finalizada em “Pin Ups”. Eles nunca mais trabalharam juntos. O ego do cantor estava tão inflado, que o plano inicial do novo álbum era escrever, produzir e gravar voz e todos os instrumentos. Arrogância confundida com ambição.

Quem retomou a relação de trabalho foi Tony Visconti, produtor de “David Bowie”, de 1969, e “The Man Who Sold The World”, de 1970. Separados desde uma divergência sobre quem deveria ser o empresário do cantor, o contato foi retomado no verão de 1973 quando ambos estavam ocupados com T. Rex e as Astronettes, respectivamente. Visconti não atuaria profundamente na concepção do disco, mas escreveu os arranjos de cordas para “1984” e participou da mixagem.

Sem banda fixa pela primeira vez em muitos anos, Bowie precisou correr para achar músicos de alto nível e de confiança. Acabou gravando com o baixista Herbie Flowers, o baterista Tony Newman, além do pianista Mike Garson e o baterista Aynsley Dunbar, músicos das sessões de “Pin Ups”. Todos tinham alguma experiência em estúdio e nível altíssimo, fazendo o cantor trabalhar até duas horas por dia, sozinho, na guitarra para tentar acompanhar os novos colegas. O guitarrista Alan Parker, que o ajudou a desenvolver o riff de “Rebel Rebel”, apareceu para dar uma força um dia e acabou participando da gravação de “1984”.

A gravação de “Diamond Dogs” foi difícil e demorada. Iniciada nos últimos dias de 1973, percorreu os dois primeiros meses do ano seguinte em três estúdios diferentes: Olympic e o Island, em Londres, e o Ludolph, nos Países Baixos, por um motivo inusitado: Bowie foi proibido de voltar ao Olympic por uma dívida de quase 5 mil libras em taxas de estúdio, dificultando um bocado a continuidade do trabalho. Um exausto cantor estava fazendo praticamente tudo sozinho ao longo de boa parte do processo. E ainda precisava mixar o disco. 

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Ao receber uma ligação durante uma madrugada de fevereiro de 1974, Visconti acabou salvando o LP de ser um desastre. A falta de experiência de Bowie em gravar os instrumentos e o fato de estar sempre drogado dificultaram a mixagem. Na época, o produtor tinha um equipamento de ponta na casa em que estava reformando e, ao longo de várias madrugadas, os dois sentavam em cavaletes deixados pela empresa de construção e trabalhavam até o início da manhã, com o cantor indo embora e Visconti dormindo em um colchão no chão empoeirado. Por motivos fiscais, como muitos outros músicos nos anos 1970, Bowie deixou o Reino Unido e acabou finalizando o álbum nos Países Baixos, em uma única sessão de gravação, no dia 14 do mesmo mês.

“Não foi um álbum conceitual. Era uma coleção de coisas. E eu não tinha banda. Então foi aí que a tensão entrou. Não conseguia acreditar que tinha terminado quando terminei e nunca mais quero estar nessa posição. Foi assustador tentar fazer um álbum sem nenhum ajuda. (...) Foi um alívio que tenha ido tão bem”, disse Bowie ao jornalista Robert Hilburn em setembro de 1974.

A data do lançamento de “Diamond Dogs” é incerta, mas o site oficial de do cantor fala em 24 de maio de 1974, dia em que o ressuscitado Ziggy Stardust apareceria pela última vez em um trabalho. Para todo mundo, foi uma surpresa o sucesso comercial do LP ao atingir a primeira posição na parada do Reino Unido e a quinta nos Estados Unidos. Era o fim da era glam, com uma clara linha traçada de antes e depois. E em um futuro não muito distante, Bowie mudaria mais uma vez ao mostrar o mundo o encantamento pelo soul americano.


Crítica de “Diamond Dogs”

“Diamond Dogs” começa com uma introdução de David Bowie ao mundo pós-apocalíptico em uma transição suave para a faixa de abertura, que leva o nome e explica o conceito da temática do álbum ao explorar o local e os personagens principais em uma faixa animada. O destaque vai para o saxofone, um dos muitos instrumentos que ele tocou. Na trilogia “Sweet Things”, “Candidate” e “Sweet Thing (Reprise)”, o clima de melancolia, paranoia, medo e solidão reina ao longo de quase dez minutos em uma das canções escritas ainda durante o trabalho no disco conceitual inspirado no livro “1984”.

Para encerrar o lado A, o hit “Rebel Rebel” é considerado o último single glam de Bowie, pronto para fazer a transição de Halloween Jack — personagem com o tapa-olho presente apenas na turnê de divulgação do trabalho para um protótipo de Thin White Duke —, que discute abertamente a sexualidade incerta do cantor. Musicalmente, é uma das canções mais reconhecíveis da carreira dele, mesmo em um álbum não tão lembrado pelo público em comparação com outros mais famosos e marcantes.

Primeira e única canção feita em parceria com outra pessoa, no caso o cantor Warren Peace, “Rock 'n' Roll with Me” é uma mistura de balada romântica com exaltação ao próprio Bowie. Mas é na segunda trilogia do trabalho, formada por “We Are the Dead”, “1984” e “Big Brother” que o cantor aponta o caminho para o sonhado álbum conceitual inspirado pela obra de George Orwell. Sombria, a primeira faixa carrega um ar sufocante e cheio de amargura, enquanto a seguinte é a uma pequena mostra de como o musical seria e como o som de “Young Americans” já estava na cabeça dele ao tentar soar como Barry White.

A última traz uma reflexão sobre o autoritarismo e olha o potencial de alguém como ele, uma pessoa muito famosa e com muito poder para influenciar toda uma geração de pessoas. O álbum encerra com a experimental “Chant of the Ever Circling Skeletal Family”, uma continuação da anterior um tanto mais animada.

O nono álbum de estúdio tinha tudo para ser um desastre. Dominado pelo ego, sem freio e completamente fora de si, Bowie quase ficou refém de uma ambição criada quando se satisfazia usando cocaína. Rapidamente a realidade chegou e, ao corrigir o rumo — seja pela falta dos direitos de “1984”, seja por conseguir contar com as poucas pessoas que ainda o suportavam —, mostrou ser um habilidoso compositor para abordar o assunto desejado sob uma nova perspectiva. “Diamond Dogs” é o fim de um ciclo de amadurecimento musical, justamente quando admitia ter chegado no teto da criatividade. Agora, definitivamente, outro caminho precisava ser aberto. E só mesmo ele para fazer isso sem medo.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - “Future Legend” (0:58)
2 - “Diamond Dogs” (5:56)
3 - “Sweet Thing” (3:37)
4 - “Candidate” (2:39)
5 - “Sweet Thing (Reprise)” (2:31)
6 - “Rebel Rebel” (4:30)

Lado B

1 - “Rock 'n' Roll with Me” (David Bowie/ Warren Peace) (3:57)
2 - “We Are the Dead” (4:58)
3 - “1984” (3:27)
4 - “Big Brother” (3:21)
5 - “Chant of the Ever Circling Skeletal Family” (1:58)

Gravadora: RCA
Produção: David Bowie
Duração: 38min25

David Bowie: vocal, vocal de apoio, guitarra, saxofone, sintetizador Moog e mellotron; mixagem
Mike Garson: teclado
Herbie Flowers: baixo
Tony Newman: bateria
Aynsley Dunbar: bateria
Alan Parker: guitarra em “1984”
Tony Visconti: arranjo de cordas em “1984” e mixagem

Keith Harwood: engenheiro de som e mixagem

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