Discos para história: Let It Be, dos Replacements (1984)

História do disco

Um dia, os integrantes dos Replacements estavam no carro com o empresário. Sem decidir o nome do futuro álbum, praticamente pronto, eles não pareciam estar muito preocupados com o assunto. Após brincar com nomes ridículos ao longo do caminho, Paul Westerberg disse: “A próxima música que tocar no rádio será o nome do disco”. Tocou “Let It Be”, clássico do LP de mesmo nome dos Beatles. Primeiro veio o espanto e um silêncio quase sepulcral; depois, uma crise de riso tão intensa que muitos deles urinaram nas próprias calças. Escolher o mesmo nome de um álbum já considerado um clássico era típico deles.

“Era a nossa maneira de dizer que nada é sagrado, que os Beatles eram apenas uma excelente banda de rock”, afirmou o vocalista Paul Westerberg, em citação na ‘Far Out Magazine’.

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Esse era apenas mais um dia normal na vida do grupo de Minnesota, disposto a irritar todo mundo e se autossabotar o tempo inteiro em busca de uma espécie de anti-sucesso a todo custo. Lançado em 2 de outubro de 1984, “Let It Be” foi um sucesso de crítica, mas um fracasso de vendas, como quase tudo na carreira dos Replacements. Um dos críticos que bancou a banda desde o início foi Robert Christgau, quando escrevia para o renomado ‘Village Voice’.

“Bandas como essa não têm raízes, nem princípios, elas apenas têm coisas de que gostam”, escreveu o jornalista, em texto publicado na revista, que colocaria o trabalho como segundo melhor daquele ano, atrás apenas de “Born in the USA”, de Bruce Springsteen.

Apesar de ser um dos queridinhos da crítica, qualquer tentativa de conseguir um grande contrato era sumariamente sabotada por desejos nunca revelados pelos integrantes. Por exemplo, quando um executivo de gravadora apareceu no CBGB para vê-los, o Replacements fez um show inteiro só de músicas covers. Ao final, Westerberg gritou: “Vamos conseguir um contrato agora?”. Não conseguiram. E pior, passaram a ser considerados uma espécie de amadores sem ambição de conseguir algo melhor para as vidas miseráveis que tinham.

Em entrevista para ‘Consequence of Sound’, para celebrar os 30 anos do álbum, Peter Jesperson, fundador da gravadora Twin/Tone, relembrou como foi assinar o contrato de gravação com eles.  

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“Como profissional de A&R, encontrá-los foi, sem dúvida, um momento de definição de carreira. Ter uma banda nova, sem contrato e com talento cruzando meu caminho era quase incompreensível para mim. Por um minuto, realmente pensei que talvez alguém estivesse brincando comigo. Como fã, foi uma daquelas descobertas pelas quais pessoas como eu vivem. De repente, eu estava com uma das minhas bandas favoritas de todos os tempos”, contou.

Eles não se importavam com o sucesso, mas se importavam muito em entregar ótimas músicas. Ao poucos, foram se afastando da cena hardcore de Minnesota e ampliaram o repertório com o lançamento de “Hootenanny”, em 1983. Nessa mesma época, pintou a chance de abrir para o R.E.M. Apesar dos problemas com álcool e a saída repentina de Tommy Stinson, de apenas 17 anos, durante uma confusão resolvida um pouco depois, eles estavam melhorando cada vez mais. Westerberg estava trabalhando em novo material, e eles estavam prontos para entrar em estúdio mais uma vez.

Em 27 de agosto de 1983, encontraram o guitarrista Peter Buck, do R.E.M., para a primeira semana de gravação do que se tornaria “Let It Be”. O trabalho em novas músicas ia bem, porém não o suficiente para entrar em estúdio e gravar o disco naquele momento. E Buck precisava honrar outros compromissos, então acabou auxiliando na pré-produção, no solo de guitarra em “I Will Dare” e ao emprestar o bandolim para a gravação da faixa de abertura. Jesperson relembrou da própria emoção ao ouvir o grande sucesso da história do grupo pela primeira vez.

“Paul me ligou e disse ter acabado a melhor música que já escreveu e precisávamos gravá-la imediatamente. Pude ouvir a emoção em sua voz, o que, claro, me deixou muito animado. Mas tive que lembrá-lo de que acabamos de enviar o 'Hootenanny' recém-concluído para a fábrica de prensagem e simplesmente não fazia sentido gravar uma nova música. Sem mencionar que não podíamos pagar!”, disse.

“Uma ou duas semanas depois, eles estavam fazendo um show em um clube chamado Goofy’s Upper Deck. Depois de algumas músicas do set, Paul começou aquela introdução cativante, e eu soube instantaneamente que era por causa disso que ele me ligou. Era claramente um clássico”, relembrou.

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Muitas bandas foram bancadas por críticos ao longo dos anos, com muitos fracassos pelo caminho. Não dá para falar isso do Replacements. Mesmo não sendo uma das grandes vendedoras de discos nos anos 1980, foi influente e fundamental naquela e na próxima década. Kurt Cobain, Jeff Tweedy, Black Francis e outros citaram “Let It Be” com a devida reverência, uma influência dentro e fora dos palcos.

O orgulho da banda foi exatamente em não ceder no que acreditavam em busca do sucesso e, quase 40 anos após o lançamento, o álbum é lembrado, exaltado e colocado em listas e mais listas de melhores da década e de todos os tempos. Para eles, música era sobre arriscar, enfrentar a maioria, desafiar a moda e cantar para quem se identificasse. Isso, sim, é um grande legado.

Crítica de “Let It Be”

Mesmo sem fazer um sucesso arrebatador, “I Will Dare” entrou no imaginário popular ao longo dos anos com diversas presenças em filmes. Acabou virando um desses clássicos inesquecíveis por várias e várias gerações. É difícil não se empolgar com Paul Westerberg cantando o famoso refrão “Meet me anyplace or anywhere or anytime/ Now, I don't care, meet me tonight/ If you will dare, I will dare/ Meet me anyplace or anywhere or anytime/ Now, I don't care, meet me tonight/ If you will dare, I will dare”. É a partir desse momento que é possível ouvir e sentir todo talento da banda.

Quanto mais “Let It Be” avança, mais eles soam prontos para um futuro brilhante, mesmo sabendo que o fim não demorou muito para acontecer. O terceiro trabalho de estúdio traz uma somatória dos últimos anos da música, com a forte sequência punk formada por “Favorite Thing”, “We're Comin' Out” e “Tommy Gets His Tonsils Out”, sendo a última a história real do baixista Tommy Stinson.

A força deles também é mostrada na balada “Androgynous”, uma declaração de amor explicita para quem era considerado estranho e fora do padrão da sociedade. E é assim que a banda atraiu cada vez mais gente, justamente por conseguir abordar com naturalidade uma temática difícil de explicar para quem não entende. O clima ao vivo da faixa ajuda muito na composição, deixando tudo ainda melhor.

A insatisfação do próprio Westerberg com a indústria da música e o fato de uma nova geração estar com os mesmos problemas da anterior, sem esperança e sem futuro, o fez escrever a letra de “Unsatisfied”, outro sucesso. É difícil não sair tocado após ouvi-la, porque a geração atual passa pela mesma agonia e pouco pode fazer, já que o esforço para conseguir as coisas pequenas está cada vez maior.

Também reflexo da própria época, o álbum tem uma crítica ao excesso de consumo da MTV dos jovens (“Seen Your Video”) e passa pela agonia de um jovem em busca da primeira transa, mas sem sucesso (“Gary's Got a Boner”), um retrato que continua no drama adolescente “Sixteen Blue”. Para muitos, não é divertido ter 16 anos, e Westerberg parece saber mais sobre isso do que qualquer um. E a falta de atenção (“Answering Machine”) encerra o álbum trazendo uma guitarra suja, um grito de desespero no vocal e uma total falta de esperança.

Os Replacements ocupam um lugar no imaginário de diversas pessoas pelo mundo e, talvez, “Let It Be” seja o responsável por isso. Eles pareciam entender, mesmo beirando os 30 anos, a agonia de ser um garoto ou uma garota estranha aos olhos dos pais e do resto da sociedade. Essa identificação eterna faz desse álbum ter um lugar especial em várias prateleiras. Nem sempre é sobre virtuosismo, mas é sempre sobre conseguir atingir as pessoas no fundo da alma, naquele lugar trancado a sete chaves. E, nisso, eles são imbatíveis.

Ficha técnica

Tracklist:

1 - “I Will Dare” (Paul Westerberg) (3:18)
2 - “Favorite Thing” (Westerberg, Tommy Stinson, Bob Stinson, Chris Mars) (2:19)
3 - “We're Comin' Out” (Westerberg, Stinson, Stinson, Mars) (2:21)
4 - “Tommy Gets His Tonsils Out” (Westerberg, Stinson, Stinson, Mars) (1:53)
5 - “Androgynous” (Westerberg) (3:11)
6 - “Black Diamond” (Paul Stanley) (2:40)
7 - “Unsatisfied” (Westerberg) (4:01)
8 - “Seen Your Video” (Westerberg) (3:08)
9 - “Gary's Got a Boner” (Westerberg, Stinson, Stinson, Mars, Ted Nugent) (2:28)
10 - “Sixteen Blue” (Westerberg) (4:24)
11 - “Answering Machine” (Westerberg) (3:40)

Gravadora: Twin/Tone
Produção: Steve Fjelstad, Peter Jesperson e Paul Westerberg
Duração: 33min31

Chris Mars: bateria e vocal de apoio
Bob Stinson: guitarra
Tommy Stinson: baixo e vocal de apoio
Paul Westerberg: vocal, guitarra, piano; bandolim em "I Will Dare"; guitarra de 12 cordas em “I Will Dare”; guitarra havaiana em "Unsatisfied"

Peter Buck: guitarra em "I Will Dare"
Chan Poling: piano em "Sixteen Blue"

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