Discos para história: Canção do Amor Demais, de Elizete Cardoso (1958)


Registro foi o primeiro só com composições da dupla Vinicius de Moraes e Tom Jobim

História do disco

A carreira de Elizete Cardoso (1920-1990), "A Divina", começou em 1941, aos 21 anos, quando começou a cantar de tudo um pouco na agitada noite carioca. Mesmo tão jovem, só gravaria seu primeiro LP cheio em 1954, Canções a meia-luz com Elizete Cardoso, pela Continental, mas já vinha fazendo sucesso desde lançamento do 78rpm com as canções "Complexo" e "Canção do Amor" e pela peça Feitiço da Vila, sobre a vida e obra do compositor Noel Rosa (1910-1937).

Desse enorme passo de gravar o primeiro disco, veio o reconhecimento de que era uma das grandes vozes da nova safra da música brasileira, principalmente pelas extensas residências que fazia nas casas noturnas do Rio de Janeiro e São Paulo. Em 1957, a cantora vinha em crescimento na carreira e suas apresentações já chamavam a atenção de outros nomes. Foi aí que veio o convite por parte do poeta, diplomata e novato no mundo da música Vinicius de Moraes (1913-1980) para ela gravar algumas das canções que ele e Antonio Carlos Jobim (1927-1994) tinham trabalhado uns anos antes – a dupla compôs a trilha sonora da peça Orfeu da Conceição em 1954 e começou uma parceria de imenso sucesso.

Mais discos dos anos 1950:
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O trabalho seria lançado pelo selo Festa, do jornalista e produtor Irineu Garcia, que tinha o sonho de lançar o tipo de canção que gostava de ouvir quando estava em casa. O selo era especializado em LPs com poetas recitando suas obras, então um disco com uma conhecida cantora seria um passo além de tudo feito anteriormente. A prensagem inicial seria de duas mil cópias. Apesar de apostarem em Cardoso como intérprete, o sucesso comercial foi colocado em xeque por todos os consultados por Garcia. Ainda houve um entrave que atrasou o início dos ensaios: precisavam conseguir a liberação da Odeon, gravadora que tinha Elizete Cardoso entre suas contratadas. Demorou um pouco, mas conseguiram com a seguinte condição: o empréstimo teria que ser registrado nos créditos do álbum.

Os ensaios começaram na casa de Tom Jobim, na Rua Nascimento Silva 107, em Ipanema, o agora famoso endereço do nascimento da Bossa Nova. Depois dos ensaios, escolheram os músicos que participariam das gravações. Entre eles, estava um baiano chamado João Gilberto que tocaria violão em duas canções – "Chega de Saudade" e "Outra Vez" –, mas só seria creditado nas edições futuras. O reconhecidamente famoso pai do gênero musical que levou o Brasil ao mundo já mostrava seu temperamento forte ao questionar o tom escolhido pela cantora em algumas canções. No livro Che­ga de Sa­u­da­de — A His­tó­ria e as His­tó­ri­as da Bos­sa No­va (456 págs, Companhia das Letras, indisponível), Ruy Castro fala sobre um dos embates dos dois no estúdio de gravação.

"João não estava gostando da gravidade com que a Divina tratava as músicas, como se fossem peças de algum repertório sacro — talvez porque as letras fossem de um poeta importante, Vinicius de Moraes. João (...) se metia a dar palpites. Mostrou-lhe como fazia com ‘Chega de Saudade’, atrasando e adiantando o ritmo de acordo com o que achava que a letra pedia (...). Mas Elizete (...) deu a entender que não precisava dos seus palpites". Mas, por mais que não quisesse seguir as instruções, foi a cantora que deu o pontapé inicial para um grande marco na música brasileira.

Veja também:
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Lançado no primeiro semestre de 1958, não chegou a ser um sucesso estrondoso. Na verdade, não chegou a ser um sucesso de maneira alguma. O baixo número de prensagens e a parca divulgação minaram qualquer chance de algo maior comercialmente. Mas, olhando em retrospectiva, eles fizeram algo muito maior. No ano seguinte, João Gilberto gravaria um disco que estaria na história, levando os críticos a relembrarem deste trabalho de Elizete Cardoso gravado poucos meses antes que, quase 50 anos depois, é tratado como o primeiro registro de quem criou a Bossa Nova. Vinicius resumiu o trabalho de todos no texto publicado na contracapa do LP.

"Não foi somente por amizade que Elizete Cardoso foi escolhida para cantar esse LP. É claro que, por ela interpretado, ele nos acrescenta ainda mais, pois fica sendo a obra conjunta de três grandes amigos, gente que se quer bem pra valer; gente, sobretudo, se danando para estrelismos e vaidades e glórias. Mas a diversidade dos sambas e canções exigia também uma voz particularmente afinada; de timbre popular brasileiro mas podendo respirar acima do puramente popular. Uma voz experiente, com a pungência dos que amaram e sofreram, crestada pela pátina da vida. E assim foi que a 'Divina' impôs-se como a lua para uma noite de serenata", escreveu o poeta.



Resenha de Canção do Amor Demais

O clássico "Chega de Saudade" abre o disco com um arranjo bem pra cima, diferente da interpretação de Elizete. Parece que ela está cantando um samba-canção, um gênero de muito sucesso nas rádios brasileiras entre o meio dos anos 1940 e até quase o início dos anos 1960 – por isso, nem é considerada a melhor interpretação. A reconhecível batida de violão de João Gilberto é bem audível, mostrando todo talento que o levaria a ser considerado o pai da Bossa Nova. Na sequência, "Serenata do Adeus" é uma queda de astral grande se comparada com a anterior. De arranjo e interpretação mais densos, Elizete parece ter o coração arrancado do peito ao cantá-la a plenos pulmões.

Tom Jobim mostrava um enorme talento ao unir excelentes músicos e formar uma orquestra de câmara. Ao conseguir fazer muito com pouco, ele mostrava todo seu potencial. Por exemplo, temos duas canções diferentes em "As Praias Desertas" e "Caminho de Pedra", mas é tudo muito bem colocado, muito bem encaixado. Não falta nada. "Luciana" traz o piano de Jobim dando o tom, já "Janelas Abertas" mostra melhor o potencial e alcance vocal da intérprete.

A melancólica "Eu Não Existo Sem Você" apresenta o verso Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim/ Que nada nesse mundo levará você de mim/ Eu sei e você sabe que a distância não existe/ Que todo grande amor/ Só é bem grande se for triste/ Por isso, meu amor/ Não tenha medo de sofrer/ Que todos os caminhos me encaminham pra você. Interpretações assim que fizeram a cantora Maysa (1936-1977) virar fã e divulgadora da obra nos anos seguintes. Não poderia faltar um samba, personificado em "Outra Vez" - a segunda faixa que o violão de João Gilberto tem grande destaque na melodia.

"Medo de Amar" e "Estrada Branca" retomam o quê de tristeza de grande parte do álbum. Aliás, até por esse fator, era fundamental ter alguém que conseguisse personificar todas as faixas. E Elizete Cardoso conseguiu. Menos em "Vida Bela", um baião esquisito e fora de lugar. Se "Modinha" não muda muita coisa, "Canção do Amor Demais" é uma facada no peito de tão bonita. Simples e direta, encerra o trabalho da melhor maneira possível.

Esse álbum acabou sendo bom para todos os envolvidos. Vinicius e Tom ergueram de vez a coluna de sustentação de uma das parcerias mais famosas e estudadas da música brasileira, Elizete mostrou ao mundo musical que poderia cantar qualquer coisa, e João Gilberto teve sua primeira oportunidade para desenvolver os arranjos de seu disco mais famoso. Canção do Amor Demais acabou virando história quando a Bossa Nova estourou, pouco mais de um ano depois.

Ficha técnica

Tracklist:

1- "Chega de Saudade" (Tom Jobim/ Vinícius de Moraes)
2- "Serenata do Adeus" (Vinícius de Moraes)
3- "As Praias Desertas" (Tom Jobim)
4- "Caminho de Pedra" (Tom Jobim/ Vinícius de Moraes)
5- "Luciana" (Tom Jobim/ Vinícius de Moraes)
6- "Janelas Abertas" (Tom Jobim/ Vinícius de Moraes)
7- "Eu Não Existo Sem Você" (Tom Jobim/ Vinícius de Moraes)
8- "Outra Vez" (Tom Jobim)
9- "Medo de Amar" (Vinícius de Moraes)
10- "Estrada Branca" (Tom Jobim/ Vinícius de Moraes)
11- "Vida Bela" (Tom Jobim/ Vinícius de Moraes)
12- "Modinha" (Tom Jobim/ Vinícius de Moraes)
13- "Canção do Amor Demais" (Tom Jobim/ Vinícius de Moraes)

Gravadora: Festa
Produção: Tom Jobim
Duração: 31min43s

Elizete Cardoso: voccal

Convidados:

Antonio Carlos Jobim: piano, arranjo, vocal de apoio e regência
João Gilberto: violão e vocal de apoio
Copinha: flauta
Irany Pinto: violino e arregimentador
Gaúcho e Maciel: trombone
Herbert: trompa
Nídia Soledade: violoncelo
Vidal: contrabaixo
Juca Stockler: bateria
Walter Santos: vocal de apoio

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