Discos para história: Lost in the Dream, do War on Drugs (2014)

História do disco

“Em um ano em que alguns dos melhores álbuns pareciam quase com medo de se repetir, unindo influências díspares, ‘Lost in the Dream’ é desafiadoramente completo”. Foi assim que Graeme Virtue descreveu para o jornal inglês ‘The Guardian’ o então terceiro trabalho de estúdio do War on Drugs, segundo colocado na lista dos 100 melhores álbuns de 2014 da publicação. Lançado em 18 de março daquele ano, foi o divisor de águas da carreira do músico, produtor e compositor Adam Granduciel.

A chegada aos 30 anos não foi fácil para Granduciel. Nascido em Dover, Massachusetts, sempre se sentiu uma espécie de estranho no ninho com relação a amigos, colegas, parentes e qualquer pessoa dentro e fora do convívio por querer viver de música. Para os pais, era um choque completo ver o filho do meio colecionando vinis e com os fones no ouvido quase o tempo inteiro. Vislumbrar isso como um emprego era algo descabido, quase antinatural. Ele era um bom carpinteiro e deveria abrir o próprio negócio ou trabalhar com o amigo da família no ramo de tapetes, não esperar o sucesso cair do céu em um golpe de sorte do destino. Todo retorno de turnê era o mesmo drama.

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Os pais não entendiam a importância disso para ele, muito menos gostavam de rock. Foi quando, ainda na casa dos 20 e poucos, decidiu ir embora e escolheu a Filadélfia para chamar de lar logo após se formar na faculdade de Artes para agradar ao pai. Lá, trabalhou o máximo que pôde em demos, conheceu pessoas — incluindo o amigo Kurt Vile —, arrumou empregos temporários para pagar o aluguel… E nada. Em 2013, com dois álbuns lançados sob o nome de War on Drugs, “Wagonwheel Blues” (2008) e “Slave Ambient” (2011), ele não tinha muita perspectiva, apesar da boa repercussão e do início de uma espécie de culto por parte de quem gostava do material.

“Parecia que todas essas pessoas eram amigas. Você poderia falar sobre Guided by Voices o dia todo. Eu imediatamente me senti bem-vindo, enquanto em Massachusetts, me sentia um estranho. Uma ou duas semanas após a mudança para a Filadélfia, senti que havia algo de que eu poderia fazer parte”, disse ele, em entrevista ao jornal ‘The Guardian’.  

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A fama no circuito independente crescia, mas não o suficiente para pagar todas as contas. Então, os problemas começaram. Separado da namorada após vários anos de relacionamento, de repente, a cidade que o acolheu soava estranha e aterradora. Isolado física e emocionalmente, começou a sofrer ataques de paranoia e a depressão entrou com tudo. Era difícil sair e fazer qualquer coisa, mas precisava focar em algo para tentar espantar os dias ruins e os maus pensamentos. Começou a trabalhar em uma rotina de gravação, mais disciplinada do que dos outros álbuns. Ele ainda brincava com sintetizadores, loops e tudo mais que sempre gostou de fazer de improviso, só que, como ele chamou no futuro, “mais profissional”.

O processo foi trabalhoso e doloroso, com ele escrevendo ativamente todas as partes das músicas. E para sair de casa, do ambiente que estava começando a fazer mal a ele, começou uma espécie de peregrinação por outros oito estúdios pelos Estados Unidos. Encontrou amigos, trabalhou em ideias e conseguiu focar, apesar do cansaço que quase o fez desistir em algum momento e dos arroubos no estúdio, como refazer “An Ocean In Between The Waves” inteira em duas sessões de gravação em um dia após detestar a mixagem. Ao conseguir retomar a confiança em si e aproveitar o embalo de um ótimo dia de gravação, Granduciel entendeu ter um material especial nas mãos.

“Normalmente, conheço a emoção geral de uma música, ou o sentimento geral dela, e então acho que fico muito animado com o ato de gravar. Adoro tanto esse processo que sinto que se soubesse exatamente o que quero, chegaria a algo muito cedo. Parte da razão pela qual trabalho nas coisas por tanto tempo é porque adoro trabalhar nisso. Não é que eu seja assombrado por algum som fantasmagórico. Simplesmente não tenho mais nada para fazer na minha vida. Algumas pessoas gostam de compras online, eu gosto de acumular horas de estúdio”, contou à ‘Interview Magazine’.  

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“Lost in the Dream” chegou comovendo críticos e fãs, furando a bolha da música indie ao apresentar essas composições ao mundo. Quem ouviu, não se importou com a duração, com mais de uma hora, e focou na qualidade do trabalho feito por Granduciel e os convidados. Ainda assim, o músico nunca se sentiu 100% confiante com relação às composições. Talvez, seja por isso que ele tenha trabalhado tanto ao longo de tantos meses para escrever canções das quais tivesse orgulho.

“Você realmente não sabe o que o álbum significa para você até meses após terminar. Essas músicas, conforme as tocamos, são muito mais complexas do que parecem ser, e ainda assim há partes aqui e ali que são simplesmente lindas em sua simplicidade. Gostaria de ter sabido sobre elas quando estava fazendo — isso teria me poupado de muitas dores de cabeça. É isso que as torna bonitas. E sempre terei que lutar para fazer algo que valha a pena”, refletiu ao site da revista ‘DIY’.

Crítica de “Lost in the Dream”

Perder o bonde da história é algo muito ruim, principalmente quando se é jornalista. A sensação de ter ficado para trás é aterrorizante e marca muito qualquer profissional por anos. É meu caso com “Lost in the Dream”. Lançado em 2014, por algum motivo que não lembro, escrevi uma crítica ridícula, de pouco mais de quatro linhas sobre o álbum. Esse sentimento de bússola desregulada nunca saiu de mim e jamais esqueci dessa coisa horrível de dez anos atrás.

Reouvir o trabalho tanto tempo depois é uma oportunidade para confirmar a opinião, ainda que mal desenvolvida da época: foi mesmo um dos melhores lançamentos daquele ano. O disco tem ecos de Bruce Springsteen, Tom Petty e Bob Dylan, arranjos grandiosos, loops de sintetizador, um pé no lo-fi e uma gama de elementos que podem ser descobertos ou redescobertos a cada nova audição. Com quase nove minutos de duração, “Under the Pressure” é a maior em duração e uma enorme amostra de como o trabalho de um ano e meio valeu a pena. Difícil não querer ouvir várias e várias vezes ao longo do dia (“Under the pressure/ Is where we are/ Under the pressure/ Yeah, it's where we are, babe”).

Adam Granduciel fez do álbum uma espécie de teia cheia de conexões entre si, acelerando com o uso da guitarra e dos sintetizadores (“Red Eyes”) e diminuindo o ritmo nos momentos certo com ajuda do piano Rhodes e do baixo (“Suffering” e “Disappearing”). Uma das favoritas dos fãs, “An Ocean in Between the Waves” é dessas que acaba se sobressaindo por não ser nada fácil de definir o gênero. Pode ser uma espécie de lo-fi expansivo? Pode. Pode ser um country psicodélico? Pode também (“I'm in my finest hour/ Can I be more than just a fool?/ It always gets so hard to see/ Right before the moon”).

Ao melhor estilo Springsteen em “The River”, “Eyes to the Wind” aparece como um desabafo honesto sobre a perda e as consequências disso. Não é a primeira, nem será a última, música com essa temática, mas Granduciel faz parecer especial de alguma maneira. Talvez seja o arranjo? O jeito como ele praticamente pega na mão e guia o ouvinte por quase seis minutos? É o solo de saxofone? Sim para tudo é a resposta correta. A instrumental “The Haunting Idle” é a ponte para o final do álbum — curiosidade: a canção foi gravada com sete amplificadores, com cada um passando um som diferente.

O rock animado de “Burning” soa uma homenagem aos anos 1980, quando esse estilo feito para as grandes arenas começou a dominar a música mainstream da época e não parou mais, enquanto a faixa-título evoca Dylan na simplicidade em uma canção sem refrão e de longa parte instrumental. O trabalho encerra com “In Reverse”, canção que soa exatamente como deveria soar: o último capítulo de um disco arrebatador do início ao fim.

“Lost in the Dream” não soa como um álbum para ouvir todos os dias ao longo de meses a fio, porém é aquele repertório feito para ser ouvido com calma, sem distrações e com foco apenas em prestar atenção nos instrumentos e nas palavras. Em retrospecto, não foi o primeiro passo da carreira de Granduciel; acabou sendo o mais importante ao destacá-lo em meio a milhares de álbuns lançados anualmente. Aqui é possível usar o clichê: existe um antes e depois.

Ficha técnica

Tracklist:

1 - “Under the Pressure” (8:52)
2 - “Red Eyes” (4:58)
3 - “Suffering” (6:02)
4 - “An Ocean in Between the Waves” (7:10)
5 - “Disappearing” (Granduciel/ Michael Johnson) (6:50)
6 - “Eyes to the Wind” (5:55)
7 - “The Haunting Idle” (3:08)
8 - “Burning” (5:46)
9 - “Lost in the Dream” (4:10)
10 - “In Reverse” (7:40)

Todas as músicas foram escritas por Adam Granduciel, exceto a marcadas

Gravadora: Secretly Canadian
Produção: Adam Granduciel
Duração: 60m31

Jon Ashley: bateria (faixas 4 e 9); engenheiro de som assistente
Robbie Bennett: piano upright (faixas 2 e 6), órgão (2), Mutron Rhodes (4), Flux Wurlitzer (5), piano grand (6), sintetizador ARP String (6), piano (8 e 10) e piano Wurlitzer (9)
Pat Berkery: bateria (faixas 2 e 3) David Fishkin: saxofone (4)
Adam Granduciel: vocal vocals (faixas 1 a 6 e 8 a 10), guitarra (1 a 4 e 6 a 10), piano (1, 3, 5, 9 a 10), sintetizadores (1, 3 a 5, 8 a 10), MS16 Dubs (1), violão (2, 4, 6, 8 a 10), Mitch Easter's Hagstrom 12 strings (2), sintetizador ARP string (2), guitarra Black Box (3), piano Wurlitzer (3), guitarra Fender Rhodes (3), guitarra Flux (4), órgão (4 e 8), guitarra electric Firebird (5), guitarra slide (5), piano Space Wurlitzer (5), bateria (5 e 8), bateria Linn (5), gaita (5 e 6, 8 e 9), piano Space Rhodes (6), ARP Omni II (6), sintetizador Oberheim (7), percussão (8 a 10), Fun Machine (9) e Publison (10); arranjos; mixagem
Charlie Hall: bateria (1, 6 e 10), percussão (1 e 10)
Dave Hartley: baixo (1, 3, 4, 6, 8 a 10), baixo fretless(2), percussão (2) e baixo Mutron II (5)
Ricky Ray Jackson: guitarra pedal steel (3 e 6)
Michael Johnson: ARP 2600 (1 e 5) e Eventide Cascades (7); engenheiro de som
Jon Natchez: saxofone barítono (1, 2 e 6)
Joseph Shabason: saxofone (3 e 6)
Mike Sneeringer: bateria reversa (8)
Mike Sobel: guitarra lap steel (6)
Paul Sukeena: guitarra Black Strat (7)
Carter Tanton: guitarra Leslie (9)
Nicolas Vernhes: órgão (3) e pandeireta (10)
Gabe Wax: bandagem (8)
Jeff Ziegler: ritmo (5) e bateria eletrônica (5); produtor assistente, engenheiro de som, mixagem e pré-mixagem

Sean Kelly, Ted Richardson e Matt Schimelfenig: engenheiro de som assistente
Brad Bell, John Congleton e Jon Lowe: engenheiro de som
Greg Calbi: masterização
Steve Fallone: assistente de masterização
Nicolas Vernhes: engenheiro de som e mixagem
Gabe Wax: assistente de engenheiro de som e assistente de mixagem

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