Discos para história: Dummy, do Portishead (1994)

História do disco

“Give me a reason to love you/ Give me a reason to be a woman/ I just wanna be a woman” diz o refrão de “Glory Box”, última faixa de “Dummy”, disco de estreia do Portishead. Precedido por apenas dois singles, sendo apenas o segundo com algum destaque, o trabalho do trio formado por Beth Gibbons, Geoff Barrow e Adrian Utley foi um desses fenômenos inexplicáveis em meados dos anos 1990. Quando todo mundo percebeu, eles estavam superando Oasis e PJ Harvey no Mercury Prize, principal prêmio de música no Reino Unido, ao levar em Álbum do Ano.

Em uma época em que a crítica musical importava e era lida, “Dummy”, lançado em 22 de agosto de 1994, foi aclamado como um dos melhores e mais importantes lançamentos daquele ano. E não foram poucos críticos da época que colocaram o disco em uma prateleira especial, desses que seriam duradouros por várias e várias décadas pela união de diversos gêneros misturados, conhecido como trip hop.

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Tudo começa ainda nos anos 1980, em Bristol, quando o coletivo musical The Wild Bunch começou a dar os primeiros passos ao fundir hip hop, house, soul, R&B, reggae, ambient e jazz nas apresentações. Parte desse grupo seria fundamental na história da música britânica moderna ao formar o Massive Attack, responsável pelo influente “Blue Lines”, de 1991. Quem acompanhava isso de perto era Barrow. Primeiro, como fã de hip-hop, depois como operador de fitas do estúdio onde o Massive Attack estava trabalhando.

“Eu estava no rock e poderia ter ficado com a bateria e outras coisas, mas quando o hip-hop chegou pela primeira vez aos subúrbios da Inglaterra, ele meio que assumiu o controle e foi extremamente emocionante. Era uma coisa real em que você poderia entrar”, disse o hoje compositor de trilhas sonoras ao ‘Classic Album Sundays’, em entrevista publicada em 1997. Foi o interesse de do então jovem Barrow nas sessões e a amizade com os integrantes que ele acabou ganhando um sampler AKAI e um computador, prontamente instalado no quarto. Não sendo um grande colecionador de LPs, ele fazia o que podia com os discos da irmã, enquanto os amigos DJ levavam loops e batidas para improvisar alguma coisa. Nessa época, ele começou a trabalhar de fato em um projeto musical sob o codinome de Portishead, em homenagem a uma pequena cidade local. Ele apenas sabia de uma coisa: o hip-hop seria a base para tudo.

O produtor não queria atuar na frente do palco, então começou a busca por uma vocalista — sim, ele procurava uma mulher desde o início. Testes improvisados na cozinha da casa onde morava aconteceram, mas sem sucesso. Um dia, em uma sala de espera para mostrar projetos em busca de financiamento público, ele conheceu uma mulher também buscando o mesmo objetivo. Era Beth Gibbons.

A cantora não era um nome desconhecido da cena e estava presente há algum tempo. Sem saber, eles conheciam as mesmas pessoas e estavam interessados nos mesmos assuntos musicais, ainda que um fosse fã confesso de hip-hop, enquanto a outra tivesse uma ótima voz para cantar blues e soul. Por mais incrível que possa parecer, a química entre eles foi inevitável e completamente inesperada. 

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“Então todo mundo meio que se conhecia, mas a ideia do Portishead ainda não estava bem formada naquela época. Geoff estava obviamente interessado no que ela fazia, porque era algo bastante expansivo [no palco]. Todo mundo meio que se encontrou e se juntou, e os outros caras meio que apareceram e tudo se juntou mais tarde, na verdade”, explicou o DJ Andy Smith em entrevista para Mike “DJ” Pizzo para o ‘Cuepoint’.

Também no embalo do “sorte ou destino”, o guitarrista Adrian Utley era quem faltava para completar o triângulo da formação do Portishead. Na época, ele tocava jazz em clubes locais e relutava em abandonar o gênero por se considerar um purista. Um encontro em um estúdio, quando estavam trabalhando em salas diferentes, que Barrow gostou do que ouviu e o convidou para participar de uma sessão com ele. Eles criaram um vínculo pessoal e profissional muito rápido e, quando viram, já tinham três faixas quase prontas para o futuro álbum de estúdio.

Numa época sem dinheiro, todo tempo em estúdio era valioso. Além das sessões das 9h às 17h, Barrow aproveitava o tempo com o Massive Attack para aprimorar algumas ideias e ainda usava períodos vagos durante a madrugada para refinar o material escrito e gravado por Gibbons. A ideia era misturar a melancolia das letras com uma mistura sonora forte com batidas de hip-hop, inspiração nas clássicas trilhas sonoras para o cinema e com uma ajuda dos amigos feitos pelo caminho. Também estava claro que era o projeto de Barrow desde o início, com ele direcionando ideias e aprimorando os elementos usados nas músicas. Todo trabalho levou 18 meses para ser finalizando, incluindo a assinatura do contrato com a Go! Beat, subsidiária da gravadora Go! Discs.

“Ninguém em Bristol, exceto a equipe do Coach House Studios, esperava ‘Dummy’. Assim como o ‘Blue Lines’, do Massive Attack, foi completamente inesperado. As batidas, a guitarra melancólica, a tristeza devastadora dos vocais foram verdadeiramente inovadores”, conta Richard Jones, autor de “Bristol Music: Seven Decades of Sound”, em depoimento para o jornal ‘The Independent’. 

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“Durante décadas, a música de Bristol quase não perturbou as rádios diurnas ou as paradas. A cidade recusou-se a dançar ao ritmo londrino e, por isso, desenvolveu um estilo musical isolado, inspirando-se, talvez inconscientemente, nas tradições do jazz, folk, reggae e hip-hop e adotando uma perspectiva internacional. Talvez isso ajude a entender de onde ‘Dummy’ veio, mas não há explicação genial”, completou.

Com ou sem explicação, “Dummy” entrou nos ouvidos das pessoas e o Portishead faz parte do imaginário coletivo até hoje. Perto de completar 30 anos da obra que definiu a carreira, o trio não dá entrevistas, é completamente avesso à fama, lançou apenas mais dois álbuns de estúdio e optou pelo silêncio, deixando a música falar por si só. Talvez seja por isso que eles sejam tão importantes, tão influentes e tão reverenciados.


Crítica de “Dummy”

Impressionante é a melhor palavra para definir o álbum de estreia do Portishead, que ainda soa fresco e recente. O motivo? Existem muitos filhos espalhados por aí. De Lana Del Rey a the xx, a banda inglesa definiu os parâmetros da música sem gênero, uma mistura de estilos que faz sentido quando bem feita e bem explorada por quem estiver fazendo. Abrir “Dummy” com “Mysterons”, nome de um povo espacial da série inglesa “Captain Scarlet and the Mysterons”, uma faixa etérea com mais de cinco minutos de duração, era a certeza da confiança no trabalho feito ao longo de um ano e meio.

Uma das coisas mais legais e importantes dos álbuns é a busca por inspiração nas trilhas sonoras do cinema dos anos 1960 e 1970. Por exemplo, o sample de “The Danube Incident”, tema da série “Missão: Impossível” composta por Lalo Schifrin, aparece em “Sour Times”, conferindo todo um clima da época e casando com maestria com o vocal de Beth Gibbons. A urgência do início de “Strangers” e batida constante da música é fundamental para compreender de onde eles vieram e como o hip-hop está entranhado na formação do trio desde o início.

Escrita por Gibbons antes de entrar no grupo, “It Could Be Sweet” acabou ganhando uma nova roupagem quando regravada com uma banda em estúdio. A suavidade do vocal ajuda a dar profundidade em uma letra recheada de melancolia (“You don't get something for nothing, turn now/ Gotta try a little harder/ It could be sweet/ Like a long forgotten dream”). E soando um casamento perfeito, a sequência traz os samples de “Magic Mountain” em “Wandering Star”, nascida em um momento de pura sorte, quando Geoff Barrow começou a brincar com scratchs no estúdio e acabou sendo peça fundamental para outra ótima letra da cantora.

Fora das edições originais vendidas no Reino Unido e na Europa, “It's a Fire” é outra escrita antes da entrada de Gibbons na banda e um dos grandes momentos dela no álbum. Os primeiros 30 segundos, praticamente apenas com o vocal, são comoventes de uma forma difícil de explicar. E ela consegue manter essa pegada ao longo de toda faixa, um gospel misturado com hip-hop e música clássica que só mesmo os anos 1990 conseguiram produzir. Já o primeiro single, “Numb”, é sobra de uma sessão que Adrian Utley trabalhou com Paul Rodgers e Jeff Beck, que não gostaram nada do estilo da bateria, justamente o diferencial da música. Essa batida seca, parecendo uma lata, dá esse ar cru e sem esperança do refrão (“'Cause the child rose as life/ Tries to reveal what I could feel/ And this loneliness/ It just won't leave me alone, oh no/ And this loneliness/ It just won't leave me alone”).

A união das letras viscerais de Gibbons com o estilo emotivo das trilhas de filmes chega ao auge na tocante “Roads”. É importante compreender que nada escrito por ela é inspirado em alguma coisa. Todas as histórias contadas são pessoais, por isso o vocal tão comovente, beirando o sofrimento físico, ao longo de todo disco. É difícil não ficar comovido com versos como “Can't anybody see/ We've got a war to fight/ Never find our way/ Regardless of what they say” ou ainda “Oh, you abandoned me, how I suffer/ Ridicule breathes a sigh/ You abandoned me, lost forever/ Hush, can you hear?” da seguinte, chamada “Pedestal” — ambas com uma beleza muito específica e apresentadas de maneiras diferentes ao público.

“I'll Never Fall in Love Again”, de Johnnie Ray, é a base da melancólica "Biscuit", outra nascida na pura sorte em um dia de dificuldade no estúdio. Aqui, não apenas a música, mas o vocal também é usado como parte para compor a melodia de uma música que nasceu para ser difícil. Para encerrar, “Glory Box” surge com o famoso sample de “Ike's Rap II”, de Isaac Hayes. Usada em filmes e séries ao longo dos anos, com justiça, virou o grande sucesso da história da banda por mostrar todo potencial do trio no estúdio. Ainda é incrível ouvir essa música quase três décadas após o lançamento e a sensação de ouvir algo duradouro continua, como se fosse a primeira vez. É inegável: é o melhor encerramento possível para “Dummy”.

Um álbum de estreia pode ser o primeiro passo para algo grande ou a construção de uma sólida carreira nos anos seguintes. No caso do Portishead, virou quase uma espécie de culto ao conseguir confluir uma série de gêneros musicais em uma unidade sólida e cheia de criatividade e inspiração. Os filhotes pelo mundo são prova da influência do trio nos anos seguintes, como se todo mundo quisesse ser uma pequena parte o trio. Eles podem até tentar, mas só mesmo Beth Gibbons, Geoff Barrow e Adrian Utley conseguiram fazer o que fizeram de forma tão única e especial.

Ficha técnica

Tracklist:

1 - “Mysterons” (5:02)
2 - “Sour Times” (4:14)
3 - “Strangers” (3:55)
4 - “It Could Be Sweet” (4:16)
5 - “Wandering Star” (4:51)
6 - “It's a Fire” (3:48)
7 - “Numb” (3:54)
8 - “Roads” (5:02)
9 - “Pedestal” (3:39)
10 - “Biscuit” (5:01)
11 - “Glory Box” (5:06)

Todas as músicas foram escritas pelo Portishead

Gravadora: Go! Beat/London
Produção: Portishead e Adrian Utley
Duração: 48min41

Beth Gibbons: vocal
Geoff Barrow: piano Rhodes (faixas 1, 3, 4 e 10), bateria (faixas 6 e 7), programação musical (faixas 2, 5, 7 a 9 e 11) e arranjo de cordas (faixa 8)
Adrian Utley: guitarra (faixas 1 a 3, 5, 8 e 11), baixo (faixas 6, 7, 8 e 9), teremim (faixa 1), órgão Hammond (faixa 11) e arranjo de cordas (track 8)

Convidados:

Clive Deamer: bateria (faixas 1, 3, 5, 7, 8, 9 e 10)
Gary Baldwin: órgão Hammond (faixas 5, 6 e 7)
Neil Solman: piano Rhodes (faixas 2 e 8) e órgão Hammond (faixa 2)
Richard Newell: bateria eletrônica (faixa 4)
Andy Hague: trompete (faixa 9)
Dave McDonald: flauta nasal (faixa 8) Strings Unlimited: cordas (faixa 8); engenheiro de som

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