Discos para história: V, da Legião Urbana (1991)


História do disco

Um governo com dificuldades na economia e enfrentando uma crise, problemas entre executivo e legislativo e falta de perspectiva para o futuro. Poderia ser sobre 2021, mas era o início dos anos 1990 no Brasil. A febre do rock nacional iniciada nos anos 1980 havia passado e, entre mortos e feridos, poucos sobreviveram com força na década seguinte. Uma dos sobreviventes era a Legião Urbana, dona de um sucesso absoluto entre os jovens, adolescentes e adultos. Poucas bandas brasileiras podem dizer que tiveram, ou têm, fãs tão fieis quanto o grupo formado por Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá.

Quem viveu o Brasil da Era Collor sabe muito bem a história do confisco da poupança e o problema que deu na economia brasileira naquele período do Plano Collor. Um dos afetados pelo problema foi Renato Russo, que havia guardado dinheiro para comprar um apartamento e ficou sem nada como boa parte dos brasileiros. Maldizendo a então ministra da Fazenda Zélia Cardoso de Mello, o vocalista prometeu sair em turnê com o grupo e recuperar centavo por centavo -- Dado e Marcelo também estavam irritados com a situação. Traumatizados pelo quebra-quebra em um triste show realizado em Brasília, eles contavam com uma estrutura muito melhor e não existia mais o clima bélico de "Que País É Esse", mas conselhos, rosas e fogos de artifícios coloridos. E tudo isso após o cantor assumir publicamente que era gay.

Mais Legião Urbana:
Discos para história: Dois, da Legião Urbana (1986)
Discos para história: As Quatro Estações, da Legião Urbana (1989)
Livro: Memórias de um Legionário, de Dado Villa-Lobos (2015)
Playlist: duas músicas de cada disco da Legião Urbana

Porém, a situação nos bastidores era péssima. Além dos problemas financeiros, Renato Russo descobriu recentemente que estava com HIV durante o processo de desintoxicação que estava passando por exigência dos outros integrantes. E contrair o vírus da AIDS naquela época era praticamente uma sentença de morte. Renato até tentou encarar tudo com sobriedade, mas não aguentou. Ele passou a se drogar com frequência. E ainda brigou com Jorge Davidson, diretor artístico da EMI-Odeon, por discordarem do envio da fita de um show ao vivo da banda para a Polygram, gravadora onde Mayrton Bahia, produtor de três de quatro álbuns do grupo, estava trabalhando para ele dar uma olhada e dizer o que achava da gravação.

O mundo parecia estar desabando na cabeça de todos ao longo dos dias da pré-produção do álbum. Eram apenas os três trabalhando em demos e ajustando o material para entrar no estúdio. Em certo dia, durante um show de apresentação da carreira solo de Fernanda Abreu, ex-vocalista de apoio da Blitz, Bahia e Renato se encontraram e conversaram, e o vocalista pediu para o produtor passar no estúdio para dar uma olhada no trabalho. Essa olhada acabou virando convite para coproduzir o disco ao lado da banda.

Mais álbuns dos anos 1990:
Discos para história: Blood Sugar Sex Magik, do Red Hot Chili Peppers (1991)
Discos para história: Goo, do Sonic Youth (1990)
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Discos para história: Violator, do Depeche Mode (1990)
Discos para história: Na Calada da Noite, do Barão Vermelho (1990)
Discos para história: Heaven or Las Vegas, do Cocteau Twins (1990)

Se o álbum passado havia sido marcado pelo bloqueio criativo de Renato, o futuro novo álbum nasceu com mais facilidade, já que as letras eram desabafos sobre a situação do Brasil e da vida do vocalista. Mesmo sem as regalias do estúdio da EMI-Odeon, já que grupo e produtor não estavam muito de acordo com os caminhos da gravadora, preferiram gravar em outro lugar. Em entrevista para a revista 'Bizz', Renato Russo falou um pouco de como enxergava as composições de "V".

"O maior trabalho que esse disco deu foi para fazer a coisa o mais simples possível. Eu adorei escrever coisas como 'Acrylic On Canvas', mas neste disco eu quis ser bem mais simples... A gente tem até público infantil... Eu já tenho trauma de ter falado coisas sérias demais", falou.

"No pop e no rock não adianta você ser panfletário. Eu não vou fazer o equivalente sonoro das fotos do Robert Mapplethorpe... Se eu falar do que está rolando, da miséria, da angústia, eu terei que falar disso duma maneira que não agrida, porque já existe muita, muita, muita agressão. Se a gente não tivesse tanta responsabilidade... Isso é uma coisa paradoxal e controvertida, as pessoas podem até me entender mal... Mas se nós não tivéssemos responsabilidade, com certeza estaríamos fazendo outras coisas", completou.

Veja também:
Discos para história: Roupa Nova, do Roupa Nova (1981)
Discos para história: Roberto Carlos, de Roberto Carlos (1971)
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Discos para história: Coltrane Jazz, de John Coltrane (1961)
Discos para história: Wasting light, do Foo Fighters (2011)
Discos para história: Gorillaz, do Gorillaz (2001)

Outro ponto de discordância com a gravadora foi a capa. O alto-relevo em dourado presente na primeira impressão havia sido vetado, mas Renato bateu o pé e ficou do jeito que ele queria. Claro que deu confusão. Na época, um detalhe desse era caro e iria interferir no preço final, algo temerário em um mercado brasileiro em crise e com pessoas com muitas dificuldades para ter os itens básicos em casa. Mas deu tudo certo, no fim das contas.

Lançado em dezembro de 1991, "V" não foi um fenômeno de vendas como "As Quatro Estações" (1989) ou "Dois" (1986), mas vendeu quase 400 mil cópias. Considerando a economia brasileira, não era um número desprezível e mostraria a força deles mesmo em tempos difíceis. A turnê de divulgação do trabalho traria uma formação com Sergio Serra no violão, Tavinho Fialho no baixo e Carlos Trilha no teclado como músicos de apoio, mas, infelizmente, não duraria muito. Renato estava usando drogas novamente e se desentendeu com Dado e Marcelo. Isso faria Renato buscar tratamento mais uma vez para, pouco tempo depois, gravar todas as músicas que sempre teve vontade.

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Resenha de "V"

A introdução com a curta "Love Song", uma adaptação do poema "Cantiga de Amor", de Nuno Fernandes, já mostra como a Legião Urbana faria de "V" um álbum mais devagar e mais melancólico. Com mais de 30 anos, soropositivo e pai de um filho pequeno, Renato Russo via no tempo restante de vida um momento curto para colocar tudo que desejava fazer para fora. E esse álbum reflete essa mistura de ambição em angústia em "Metal contra as Nuvens". Com mais de 11 minutos, a maior faixa em duração da banda mostra como eles estavam explorando novas possibilidades musicais e contaram com 40 músicos participando da gravação -- a crítica da época chegou a categorizar o álbum como rock progressivo.

Nas canções sobre a Idade Média, a instrumental a "A Ordem dos Templários" homenageia os cavaleiros que tomavam conta dos templos cristãos durante as Cruzadas, temática abordada durante as três primeiras canções do trabalho. A coisa muda quando "A Montanha Mágica" começa e podemos ouvir Renato Russo cantando pela primeira vez sobre seus problemas. Mesmo título do romance do escritor alemão Thomas Mann, em 1924, o cantor se vê na mesma posição do protagonista da obra: uma doença consumindo seus dias e, sem poder fazer nada, resta lutar contra o desânimo, mesmo sendo impossível em alguns dias. De arranjo simples, é uma canção muito poderosa.

Além da vida pessoal, Renato também abordou os problemas do Brasil no álbum. Diferentemente de canções anteriores, mais vorazes, "O Teatro dos Vampiros" é uma balada serena e muito verdadeira sobre a situação do País -- e é incrivelmente triste como essa canção ainda cabe no atual momento, o que fala muito sobre o Brasil. Depois vem "Sereníssima", uma canção um tanto tristonha e inferior ao resto do álbum. E um dos grandes sucessos é "Vento no Litoral", balada melancólica sobre o namorado americano que Renato teve no Brasil e precisou voltar aos Estados Unidos. É uma das melhores letras do cantor e um sucesso entre os fãs até hoje.

O disco caminha para o final com a balada sonhadora "O Mundo Anda Tão Complicado", muito identificável para qualquer pessoa, enquanto "L'âge D'or", inspirado no filme escrito por Salvador Dalí e dirigido por Luis Buñel em 1930, traz um Renato questionando tudo que havia feito até ali e abordando abertamente o problema com drogas naquele momento. O disco encerra com a instrumental "Come Share My Life".

Já consolidada com a Legião Urbana que os fãs aprenderam a amar, a banda explorou novas possibilidades musicais e instrumentais em "V". O resultado comercial passou longe dos anteriores muito por conta da crise econômica, refletida em todo álbum. O clima depressivo era o símbolo de um Brasil se afundando cada vez mais, assim como o próprio Renato. Ele sabia que o fim estava próximo, então correu para aproveitar ao máximo os momentos. "V" é um disco desabafo que ainda encanta três décadas após o lançamento.

Ficha técnica

Tracklist:

1 - "Love Song" (Adaptação da letra de 'Cantiga de Amor', de Nuno Fernandes Torneol, por Renato Russo)
2 - "Metal contra as Nuvens" (11:28)
3 - "A Ordem dos Templários" (4:26)
4 - "A Montanha Mágica" (7:48)
5 - "O Teatro dos Vampiros" (3:37)
6 - "Sereníssima" (4:01)
7 - "Vento no Litoral" (6:06)
8 - "O Mundo Anda Tão Complicado" (3:45)
9 - "L'âge D'or" (5:06)
10 - "Come Share My Life" (Tradicional do folclore americano) (2:02)

Letras e músicas foram compostas por Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, exceto as marcadas.

Gravadora: EMI-Odeon
Produção: Mayrton Bahia e Legião Urbana
Duração: 49min37

Renato Russo: voz, violão e teclados
Dado Villa-Lobos: guitarras e violões
Marcelo Bonfá: bateria e percussão
Bruno Araújo: baixo

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