Discos para história: Dois, da Legião Urbana (1986)


A edição 143 da seção fala de um clássico dos anos 1980, que completou 30 anos em julho deste ano

História do disco 

O primeiro disco da Legião Urbana, lançado um ano antes, não seria o melhor material lançado pelo grupo em seus anos de atividade. Mas seria fundamental para dar o passo à frente quando os trabalhos para o segundo disco fossem iniciados. Se o pós-punk – Joy Division e Smiths principalmente – foram as influencias para melodias mais suaves, a veia mais poética de Renato Russo começaria a desabrochar no futuro novo trabalho. "Você se prepara a vida inteira para o primeiro disco. O problema é o segundo", disse o compositor, em entrevista de arquivo resgatada pelo 'Discoteca MTV', no programa exibido em 2007.

"Renato vinha sempre com a conversa da síndrome do segundo disco: tem que fazer jus aquele primeiro e incendiar a fogueira pra conseguir. [...] Então esse quebra cabeça foi se juntando ao longo do final de 85 e quando finalmente entramos em estúdio, no começo de 86, com a ajuda do [engenheiro de som do Paralamas do Sucesso] Carlos Savalla e Mayrton Bahia produzindo", contou Dado Villa-Lobos, em entrevista à 'Noisey Brasil', braço musical da Vice Brasil, neste ano.

Mais discos dos anos 1980:
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Pelas 100 mil cópias vendidas do primeiro álbum, havia muita pressão para um número igual ou superior no registro seguinte. Mas indo na contramão do que havia feito e dos seus contemporâneos, como RPM, Titãs e Paralamas do Sucesso, Renato queria mudar a sonoridade do grupo. Ele mostrou ao guitarrista Dado uma fita com gravações acústicas de Cat Stevens, George Harrison, John Lennon e Paul McCartney, apontando o caminho a seguir em grande parte do repertório. Por sorte ou coincidência, Villa-Lobos estava ouvindo João Gilberto naquele momento.

Renato chegou ao estúdio para gravar com um espírito diferente da primeira vez. Se antes eles eram os forasteiros e tiveram que brigar para fazer exatamente o que desejavam, desta vez a banda era a 'menina dos olhos' da gravadora. O estúdio era fechado e exclusivo em certas horas. A correria havia acabado e, com todo direito adquirido, tinham tempo e apoio para criar e desenvolver o trabalho ao longo dos meses seguintes. Um dia, Renato chegou com a ordem das músicas nos lados A e B em um papel e encaminhou os trabalhos.

Dois nasceu para ser um disco duplo, daí o nome. Mas a gravadora salientava a cada pedido da banda: duplo, são dois; dois é o dobro do preço, seco e simples assim. O projeto acabou sendo vetado e não deixou o papel. "Era para ser junto com Que País é Esse [registro seguinte, lançado em 1987]. Eu tinha Faroeste Caboclo, alguns temas instrumentais do [baterista Marcelo] Bonfá. O [nome do] disco era para Mitologia e Intuições" explicou Renato na famosa entrevista à MTV em 1994. Por sorte, acabou não dando certo. Porque o próximo seria tão ou até mais importante na construção do mito ao redor do grupo.

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Antes de o produtor Mayrton Bahia finalizar a organização e edição, o disco vazou. "Quando foi para fazer a edição para colocar as músicas na ordem, voltando para casa, ouvindo o rádio, ouço o cara da Transamérica dizendo: 'hoje, às 20h, o novo disco da Legião Urbana'", relembrou o produtor no Discoteca MTV. Muito provavelmente, foi o primeiro caso do tipo do Brasil, mas acabou sendo comemorado. "Foi um resultado fantástico, porque começou a tocar tudo. Daí a EMI liberou para todas as rádios", continuou. Aqui fica claro, em parte, o sucesso da maioria das canções. Cinco foram singles oficiais, outras tantas fizeram sucesso nos shows e nos toca-fitas em casa.

A capa, arte de Fernanda Pacheco, nasceu da ideia de uma estética limpa, inspirada no Joy Division – as capas dos dois discos da banda carregam essa ideia de algo fácil e reconhecível. Era Legião Urbana em cor de bronze e o nome do disco em relevo. Simples e limpo. Lançado em julho de 1986, Dois superou as vendas do primeiro álbum ao bater 250 mil cópias vendidas na primeira semana. Chegaria a mais de 1,2 milhão de álbuns vendidos, consagrando a Legião na história da música brasileira.


Resenha de Dois

"Daniel Na Cova Dos Leões" abre com o final de "Será", sucesso do trabalho anterior. Dava para ver a mudança se encaminhando nesse começo, porque a Legião já mostrava uma pré-disposição em algo mais melódico, mais Smiths – o guitarrista Johnny Marr é craque em fazer boas melodias e riffs. Aqui, temos um, ainda que discreto, início de abertura sobre a sexualidade de Renato Russo. Hit imediato, "Quase Sem Querer" é uma baldada poderosa sobre amor, término e relacionamentos. De andamento simples, uma característica do grupo, a letra é direta e reta - aliás, poucas canções aqui têm qualquer esquema ou ordem pré-definida ou usada antes.

Ao melhor estilo Joy Division de introdução no baixo, "Acrilic On Canvas" é a primeira de duas canções creditada aos quatro membros da formação até ali. Difícil de assimilação no início, é uma faixa densa e melancólica na letra e no andamento. No entanto, artisticamente, é um das mais bonitas gravadas pela Legião. Outro sucesso vindouro, "Eduardo e Mônica" é uma história bobinha de um casal com uma diferença de idade suficiente para não dar em nada, mas Renato Russo construiu uma narrativa cheia de referências do cotidiano embalado pelo violão folk à la Bob Dylan. É difícil escrever qualquer coisa sobre ela, porque o sucesso, nesse caso, fala por si só.



A instrumental "Central Do Brasil" era uma das muitas peças sem letra que Renato tinha planejado para o álbum duplo. Aparentemente, era muito superior às outras, pois foi a única que ficou no álbum. E acaba encaminhando o ouvinte, em uma delicadeza melódica muito bonita, para o petardo "Tempo Perdido". O encerramento do lado A trata de um tema pesado – a ditadura –, mas com a perspectiva jovem de ter todo tempo do mundo enquanto se é jovem. Se o tempo que passou foi perdido, ainda havia esperança dali em diante. É disso que falam quando dizem que Renato foi o poeta de uma geração. Ele conseguia traduzir sentimentos de várias pessoas de idade próxima – ele tinha 26 anos quando o LP foi lançado.

O punk rápido, rasteiro e sincero de "Metrópole" é um dos muitos sobrevivente dos tempos de Aborto Elétrico, banda de Renato com Flávio e Fê Lemos, ambos membros atuais do Capital Inicial. A canção antiguerra "Plantas Embaixo Do Aquário" tem muito do clima do fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, mas não soa datada, e "Música Urbana 2" traz novamente o lado trovador solitário de Renato.

"Andrea Doria" serve para colocar a banda de novo no rumo das baladas românticas, porém essa tem uma profundidade muito interessante em vários aspectos. Musicalmente simples, tem palavras simples e acerta em cheio ao alvo. "Fábrica" é outra simples e de áurea punk, satisfatória o suficiente para flertar com o passado, o presente e o futuro do grupo.



Reza a lenda que Renato Russo escreveu "Índios" em dez minutos no estúdio após ouvir a melodia pronta. A forte introdução no baixo e na bateria dão o tom na linha do pós-punk. Ela trata um pouco do Brasil, mas também sobre cada um de nós. O ritmo se mantém por mais de um minuto até a virada leve. O vocal segue em uma linha até perto de um minuto e meio, quando um clima mais melancólico ganha espaço graças ao teclado. Esses elementos misturados com a voz conseguem encantar e fazer refletir, exatamente o que o compositor era bom em fazer.

Inegavelmente, e isso é dito por crítica e especialistas, Dois moldou o som da Legião Urbana pelos anos seguintes, muito por conta do ganho melódico do quarteto ao longo do ano anterior graças ao acréscimo dos teclados e de buscar mais referências sonoras em diversos pontos da história da música pop. Não só por conseguir tocar em temas delicados, mas por ser um disco atemporal. Ouvindo o trabalho do início ao fim, não é datado ou velho – a estreia do RPM que o diga. Ao contrário, ainda tem a alma fundamental para sobrevivência de qualquer banda ou álbum.



Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - "Daniel Na Cova Dos Leões" (Renato Russo/Renato Rocha) (4:00)
2 - "Quase Sem Querer" (Renato Russo/Renato Rocha/Dado Villa-Lobos) (4:40)
3 - "Acrilic On Canvas" (Renato Russo/Renato Rocha/Dado Villa-Lobos/Marcelo Bonfá) (4:40)
4 - "Eduardo e Mônica" (Renato Russo) (4:31)
5 - "Central Do Brasil" (Renato Russo) (1:34)
6 - "Tempo Perdido" (Renato Russo) (5:02)

Lado B

1 - "Metrópole" (Renato Russo) (2:49)
2 - "Plantas Embaixo Do Aquário" (Renato Russo/Renato Rocha/Dado Villa-Lobos/Marcelo Bonfá) (2:54)
3 - "Música Urbana 2" (Renato Russo) (2:40)
4 - "Andrea Doria" (Renato Russo/Renato Rocha/Marcelo Bonfá) (4:53)
5 - "Fábrica" (Renato Russo) (4:56)
6 - "Índios" (Renato Russo) (4:17)

Gravadora: EMI-Odeon
Produção: Mayrton Bahia
Duração: 47 minutos

Renato Russo: voz, teclados e violão
Dado Villa-Lobos: guitarras
Renato Rocha: baixo e teclados
Marcelo Bonfá: bateria



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