Discos para história: Gospel Train, de Sister Rosetta Tharpe (1956)


História do disco

A história de vida de Sister Rosetta Tharpe é bem parecida com outros afro-americanos nascidos nos Estados Unidos nos primeiros anos do século 20. Nascida em 1915 e filha de catadores de algodão, sabe-se que foi no início da infância que começou a se apresentar em uma igreja pentecostal frequentada apenas por negros ao ser incentivada pela mãe, que cantava e tocava bandolim. A sorte da então criança Rosetta Nubin era que o bispo era um dos principais apoiadores das mulheres usarem a música e a dança nos louvores, além de ensinarem as garotas mais jovens como tocar instrumentos e cantar os clássicos. Foi nesse ambiente que Rosetta cresceu e iniciou a carreira.

Dos seis aos 19 anos, ela foi considerada uma garota prodígio na música por ser uma das poucas garotas negras que cantava e tocava, algo muito raro em meados dos anos 1930. Foi nessa época que ela se casou, mas não durou muito e ela se separou em 1938 -- um escândalo, é claro. Mas do casamento fracassado veio a ideia de adaptar o nome do marido no nome artístico que levaria pelo resto da vida: Sister Rosetta Tharpe. E foi com esse nome que ela fez a histórica apresentação no Carnegie Hall, organizada por John Hammond, quando se mudou para Nova York em busca de novas oportunidades e de fixar moradia em um lugar após passar boa parte da vida na estrada. Ele teve a ideia de colocar artistas de diferentes gêneros para tocar na casa para um público branco e espantado com a capacidade musical daquela moça de apenas 23 anos. Ela mostrava que, sim, um novo gênero estava por vir -- o rock --, mas jamais abandonaria suas raízes do R&B e do gospel por nada no mundo.

Mais álbuns dos anos 1950:
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Os anos 1940 já não foram tão bons para ela, que se limitou a ser a cantora da big band de Lucky Millinder. Apesar da frustração, sua música e voz estavam atraindo cada vez mais pessoas e chegou ao auge em 1951 quando tocou para mais de 15 mil pessoas em Washington, capital dos Estados Unidos, tocando guitarra e usando um vestido de noiva. A ousadia é celebrada até hoje por estudiosos como um grande momento da carreira dela, principalmente como a celebração da independência dela como artista.

Nem todo mundo gostava, é claro. Com a chegada de nomes como Ray Charles, que colocou a mistura de R&B e gospel em outro nível, e do sucesso de Mahalia Jackson, um dos ícones na luta pelos Direitos Civis, Sister Rosetta Tharpe acabou sendo deixada de lado. E ainda a Decca, gravadora que a tinha sob contrato, estava perdendo espaço pequenos selos como a Atlantic, notados pelo público pela ousadia no catálogo de artistas. Quando Tharpe ficou sem contrato em 1956, a Mercury acabou a contratando com a esperança de ter novamente no elenco uma cantora que fizesse tanto sucesso quanto Dinah Washington e Sarah Vaughan, nomes que fizeram da gravadora a grande rival da Decca nos 20 anos anteriores.

Veja também:
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Essa tentativa de reembalar Tharpe para um novo público gerou a ideia de gravar um álbum com o conjunto vocal The Harmonizing Four e alguns dos principais músicos de jazz de Nova York. Assim nasceu "Gospel Train", o primeiro trabalho da cantora na nova gravadora. O disco acabou sendo um dos marcos na carreira da cantora que conseguiu aliar o melhor do repertório gospel -- suficiente para parar os comentários sobre ter abandonado o estilo -- com o melhor dessa nova onda que estava chegando.

O disco não fez muito sucesso nos Estados Unidos, mas acabou indo muito bem na Europa, onde ela tinha uma surpreendente e forte base de fãs. Lá, ela conseguiu fazer turnês e sustentar a carreira até quase o fim de seus dias. Elvis Presley, Little Richard e Chuck Berry também eram fãs dela e a consideravam uma espécie de antecessora do rock, graças a ousadia e estilo musical.

Precursora em tocar guitarra e ser líder de banda, Sister Rosetta Tharpe ganhou o merecido reconhecimento quando entrou para o Hall da Fama do Rock em 2018. Graças a isso, agora milhões de pessoas podem conhecer a história de vida de uma das inventoras do rock.

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Resenha de "Gospel Train"

A canção tradicional "Jericho" abre falando da Batalha de Jericó, na qual Josué liderou os israelitas contra Canaã. Acredita-se que a faixa tenha sido composta por escravos ainda no século 19 e era cantada nos campos de colheita. Depois Sister Rosetta Tharpe chega com a primeira inédita do trabalho, a bonita balada gospel chamada "When they Ring the Golden Bell".

Quando surge "Two Little Fishes, Five Loaves of Bread", dá para entender um pouco como algumas cantoras anos depois, caso de Aretha Franklin, conseguiram aliar tão bem um lado mais pop com o gospel. Essa interpretação de Tharpe é ótima, assim como a sequência formada por "Beams of Heaven" e "Can't No Grave Hold my Body Down" -- destaque para o solo de guitarra na segunda.

As baladas dançantes "All Alone" e "Up Above my Head there's Music in the Air" chegam para animar, sendo a primeira para falar sobre Jesus e a segunda e seu estilo que acabou por consagrar Ray Charles nos anos 1950, algo que se repete em "Fly Away". Mas é quando "I Shall Know Him" é possível ouvir a força da interpretação de Tharpe como ótima cantora que era. É quase divino o que ela faz.

A parte final do álbum apresenta mais do repertório gospel, com destaque para "99½ Won't Do", em que a personagem reza para fazer tudo certo e sabe que 99,5% não é suficiente. E do jeito que Tharpe canta, é bem capaz de qualquer um começar a pensar o mesmo.

Formado por gravações e regravações da carreira de Sister Rosetta Tharpe, "Gospel Train" apresenta um repertório de primeira de uma cantora que, aos 41 anos, ainda tinha muito para dar na carreira. Foi o primeiro de dois trabalhos na Mercury, mas suficiente para deixar um legado hoje lembrado e celebrado pelos estudiosos da música de raiz dos Estados Unidos.

Ficha técnica

Tracklist:

1 - "Jericho" (2:00) (Traditional)
2 - "When they Ring the Golden Bell" (2:27)
3 - "Two Little Fishes, Five Loaves of Bread" (2:31) (Bernie Hanighen)
4 - "Beams of Heaven" (3:20)
5 - "Can't No Grave Hold my Body Down" (2:40)
6 - "All Alone" (2:35)
7 - "Up Above my Head there's Music in the Air" (2:21)
8 - "I Shall Know Him" (2:22)
9 - "Fly Away" (2:25)
10 - "How about You" (2:25)
11 - "Precious Memories" (2:36)
12 - "99½ Won't Do" (2:02)

Gravadora: Mercury
Produção: Jeff Willens
Duração: 32min02

Sister Rosetta Tharpe: vocal e guitarra
George Duvivier: baixo nas faixas 1, 2, 7, 8 e 9
Lloyd Trotman: baixo nas faixas 3, 4, 5, 6, 10, 11 e 12
Panama Francis: bateria
Ernest Richardson: guitarra
Harry 'Doc' Bagby: órgão
Ernie Hayes: piano
The Harmonizing Four: vocais de apoio

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