Discos para história: Nara, de Nara Leão (1964)

História do disco

“Por incrível que pareça, a moça Nara leão tem sido, desde os primeiros passos da Bossa Nova, uma espécie de musa do movimento. O nome de Nara tem sido ligado por muito tempo a todo acontecimento musical de nossa juventude. Com efeito, por incrível que pareça, ainda não havia sido lançada em disco como intérprete da nova geração. E ainda, por incrível que pareça, o seu lançamento neste disco foge, em seu estilo, da bossa nova propriamente dita, para um repertório variado que inclui músicas que nada tem a ver com a bossa nova (compositores como Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Keti)”, escreveu o produtor Aloysio de Oliveira, no texto da contracapa do LP “Nara”, lançado em 1964, na estreia em estúdio da cantora.

“Compositores da nova geração também estão presentes na sua escolha (Carlos Lyra, Edu Lobo, Baden etc.), mas mesmo destes ela se inclina para as composições de tendências puramente regionais. E, finalmente, outro “por incrível que pareça”: Nara procura fugir totalmente de sua personalidade de menina mansa, interpretando, embora de um modo moderno, e com a sua voz pura e inconfundível, aquelas músicas que ela escolheu e que provocam um estranho e agradável contraste. Aqui vocês encontrarão o que há de bom em música, em estilo e interpretação. Aqui vocês vão encontrar Nara Leão”, completou.

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Capixaba de nascimento, Nara Leão virou carioca de corpo e alma, um desses símbolos de uma época e culturas que fizeram a música brasileira ser conhecida mundialmente ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970. Chamada de musa da Bossa Nova, ela sempre gostou de música desde muito jovem e logo começou a fazer aulas de violão e a passear por aí. Os pais? Pouco se importavam com horários ou as amizades. Foi em uma dessas que, aos 11 anos, acabou sendo convidada para o aniversário de um jovem rapaz chamado Roberto Menescal, então completando 15 anos. Os dois acabaram fazendo aulas de violão juntos, e Menescal investiu o aprendizado a ponto de abrir uma espécie de curso de música em sociedade com o amigo Carlos Lyra.

Nara acabaria dando aulas por lá, e o local virou uma espécie de ponto de encontro de amigos de todos eles, sedentos para ouvi-los tocar. Os encontros musicais acabariam se estendendo até o agora famoso apartamento na Avenida Atlântica, conhecido futuramente como berço da Bossa Nova. Lá, discutiam música, cantavam, mostravam letras, discutiam artistas da época e mostravam uma vontade em fazer diferente. Como os pais da cantora deixavam e até gostavam do pessoal, considerado comportado por eles por comer macarrão e beber Coca-Cola. João Gilberto, Tom Jobim, Ronaldo Bôscoli, Sylvia Teles e outros começaram a frequentar o lugar. Hoje seria considerado um horror completo uma adolescente de 15 anos abrir o apartamento para reunir os amigos, alguns deles com quase o dobro da idade dela, para cantar e discutir os rumos da música brasileira.

Ela não ficava para trás, dava palpites, ajudava nos arranjos e discutia letras como uma especialista no assunto. Mas não cantava. Sofria de uma timidez terrível e, como ela mesma brincou anos depois, foi a “muda da Bossa Nova” antes de ser a “musa”. Acabou engatando um namoro com Bôscoli, 13 anos mais velho e uma das pessoas mais vocais do movimento ao longo dos anos seguinte.

Mais álbuns dos anos 1960:
Discos para história: Getz/Gilberto, de Stan Getz & João Gilberto (1964)
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Discos para história: Peter, Paul and Mary, de Peter, Paul and Mary (1962)

A gravação do LP “Canção do Amor Demais”, de Elizete Cardoso, em 1958, e a presença de Teles na turma foram fatores de enorme importância para o sucesso dessa nova geração de músicos e compositores que, devagar, começaram a ganhar espaço. Em um show na PUC do Rio, em 1959, organizado pela da gravadora Odeon, com um pessoal de olho nessa movimentação musical, Sylvia Teles simplesmente apresentou Nara Leão ao público. Segurando as lágrimas, ela cantou três músicas de costas e, aplaudida, ganhou força e coragem para tentar mais vezes. Tudo ia bem, até que Bôscoli foi convidado pela cantora Maysa para ser diretor de uma série de shows dela na Argentina. Logo ele arregimentou Menescal e uma parte da turma para ser a banda de apoio. A dupla acabou tendo um caso e a cantora, bocuda como sempre foi e mirando uma vingança por saber que a relação acabaria ali, disse aos jornais: “Vou me casar com Ronaldo Bôscoli”.

Nara ficou sabendo de tudo pelos jornais e, arrasada, nunca mais falou com o agora ex-namorado. Para muitos dos amigos e envolvidos com a Bossa Nova, a traição foi o principal motivo do rompimento da cantora com o movimento musical. Para Tom Cardoso, autor do livro “Ninguém Pode com Nara Leão — Uma Biografia”, ela já dava sinais da expansão musical que seria refletida no LP de estreia. Isso era início dos anos 1960.

“Não foi uma desilusão amorosa que moveu a Nara. Sem fazer muito barulho, de maneira muito natural, ela era totalmente de vanguarda. Quando todo mundo esperava que ela gravasse os sucessos da bossa em seu primeiro disco, Nara, que àquela altura já estava envolvida com o pessoal do CPC (Centro Popular de Cultura) e do Cinema Novo, foi buscar os compositores do morro”, disse ele, em entrevista ao site do ‘Jornal do Brasil’.

O ambiente do CPC era extremamente politizado. Graças ao amigo Lyra, um dos fundadores e ligado ao Partido Comunista Brasileiro, ela passou a andar com os cineastas Ruy Guerra, Cacá Diegues e Glauber Rocha, três dos principais ícones do chamado Cinema Novo, além de conhecer melhor o trabalho de Vinicius de Moraes e Sérgio Ricardo. A cantora foi se adequando ao lugar e ficando cada vez mais fascinada com os sambas de denúncia social. Foi indo a lugares e conhecendo pessoas que acabou fazendo amizade com diretor de teatro Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, e os compositores Nelson do Cavaquinho, Cartola e Zé Kéti. Em 1963, é a estrela do espetáculo musical “Pobre Menina Rica”, de Moraes e Lyra, considerado por ela a estreia profissional.

O sucesso de crítica e de público levou uma série de gravadoras a ficar de olho na cantora, que acabou aceitando a proposta de Aloysio de Oliveira, ex-diretor da Odeon, para gravar o primeiro álbum da carreira pela recém-fundada Elenco. Não parecia, mas ela tinha apenas 21 anos nesse momento da vida e a pouca idade era compensada com muita firmeza. Oliveira queria um repertório com compositores da Bossa Nova, enquanto ela, moldada pelos três ou quatro anos anteriores, bateu o pé para gravar músicas do pessoal do morro, primordialmente ligados as escolas de samba e ao recém-inaugurado Zicartola, e de Vinícius de Moraes, Edu Lobo e Carlos Lyra, essas de teor mais político e relacionado com União Nacional dos Estudantes e os movimentos de esquerda. Fundamental é entender que, em 1964, o Brasil vivia um clima político terrível, com o enfraquecimento do presidente João Goulart e o planejamento dos militares — apoiados pelos Estados Unidos — para dar um golpe e implementar a ditadura até 1985. É impossível dissociar o LP, lançado algumas semanas antes, de tudo isso.

Veja também:
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“Esse primeiro disco, para mim, foi falar de uma coisa que eu achava muito importante, falar dos problemas brasileiros. Eu tinha muito a ideia de reportagem musical, mostrar ao pessoal de Copacabana o que o morro faz, uma coisa de reportagem mesmo”, disse a cantora, em depoimento retirado do livro “Nara Leão: Nara — 1964”, da Editora Cobogó, escrito pelo jornalista, escritor e crítico de música Hugo Sukman.

O lançamento de “Nara”, no início de 1964, foi outro sucesso de público e crítica, apesar da ranhetice de uns e outros que a levaram a duvidar da própria capacidade de interpretação por anos. Foi esse álbum o antecipador de muitas coisas históricas da música brasileira: dos Afro-Sambas de Vinicius e Baden Powell até a Tropicália, sem se esquecer da Bossa Nova, de Orfeu da Conceição, do samba do morro e dos problemas do Brasil. Ainda no fim daquele ano, ela dobraria a aposta no histórico álbum “Opinião de Nara”.

Crítica de “Nara”

De maneira discreta, o samba “Marcha Da Quarta-Feira De Cinzas” abre o disco falando sobre o clima político da época em uma letra melancólica (“Acabou o nosso Carnaval/ Ninguém ouve cantar canções/ Ninguém passa mais, brincando feliz/ E nos corações, saudades e cinzas foi o que restou”) que usa sentimentos como sinônimos para explicar os acontecimentos e manter a esperança de dias melhores (“A tristeza que a gente tem/ Qualquer dia vai se acabar/ Todos vão sorrir, voltou a esperança/ É o povo que dança, contente da vida, feliz a cantar”).

Muitas pessoas conhecem “Diz que fui por aí” pela versão de Fernanda Takai em “Onde Brilhem os Olhos Meus”, de 2007, que não fica atrás da versão original. Mas é difícil não olhar com outros olhos para Nara Leão cantando essa música, em 1964, quando o samba do morro era desprezado pela elite carioca do banquinho e violão. E composta por Carlos Lyra e o ator Gianfrancesco Guarnieri, “O Morro (Feio não é bonito)” aborda a tristeza pelo desprezo do resto do mundo pelas pessoas do morro e exalta a coragem de manter a tradição e a história sem se abalar.

A umbanda aparece na potente “Canção da Terra”, de Edu Lobo e Ruy Guerra, com um belo arranjo de cordas, e o samba aparece no hoje clássico “O sol nascerá (A sorrir)”, dos gênios Cartola e Elton Medeiros (“A sorrir/ Eu pretendo levar a vida/ Pois chorando/ Eu vi a mocidade perdida/ A sorrir/ Eu pretendo levar a vida/ Pois chorando/ Eu vi a mocidade perdida”). A primeira parte do LP termina com a melancólica “Luz Negra”, com um solo de trompete de chorar de tão triste.

O lado B é fundamental para entender a importância de Baden Powell e Vinicius de Moraes no álbum de estreia de Nara Leão. Primeiro, com a forte “Berimbau” (“Quem é homem de bem não trai/ O amor que lhe quer seu bem/ Quem diz muito que vai, não vai/ Assim como não vai, não vem”), com um arranjo potente, teatral e inesquecível, depois com a chorosa “Vou por aí” e com a crítica social de teor feminista, composta por Lyra e Moraes, “Maria Moita” (“Homem acaba de chegar, tá com fome/ A mulher tem que olhar pelo homem/ E é deitada, em pé/ Mulher tem é que trabalhar”).

“Réquiem por um amor” é outra paulada emocional do trabalho, com um ótimo arranjo de cordas, já “Consolação” é uma exaltação ao sentimento bem sentido, como diria o outro (“O que eu sofri por causa do amor/ Ninguém sofreu/ Eu chorei, perdi a paz/ Mas o que eu sei/ É que ninguém nunca teve mais/ Mais do que eu”). E o álbum encerra com a instrumental “Nanã (Coisa n.º 5)”, um belo fechamento.

Nenhum álbum de Nara Leão foi tão impactante musicalmente como o primeiro, uma grande referência ao abraçar vários lados e vertentes da música brasileira sem medo. “Nara” abriu muitas portas, reconheceu talentos, apontou tendências e ampliou o escopo musical de muita gente — tanto é que muita gente considera o primeiro álbum da futuramente conhecida como MPB. A cantora, corajosa, conseguiu mostrar a uma parcela da sociedade que havia mais a fazer e mais a cantar do que eles imaginavam.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - “Marcha Da Quarta-Feira De Cinzas” (Carlos Lyra/ Vinícius de Moares)
2 - “Diz que fui por aí” (Hortênsio Rocha/ Zé Keti)
3 - “O Morro (Feio não é bonito)” (Carlos Lyra/ Gianfrancesco Guarnieri)
4 - “Canção da Terra” (Edu Lobo/ Ruy Guerra)
5 - “O sol nascerá (A sorrir)” (Agenor de Oliveira “Cartola”/ Elton Medeiros)
6 - “Luz Negra” (Nelson Cavaquinho/ Amâncio Costa)

Lado B

1 - “Berimbau” (Baden Powell/ Vinícius de Moraes)
2 - “Vou por aí” (Baden Powell/ Aloysio de Oliveira)
3 - “Maria Moita” (Carlos Lyra/ Vinícius de Moraes)
4 - “Réquiem por um amor” (Edu Lobo/ Ruy Guerra)
5 - “Consolação” (Baden Powell/ Vinícius de Moraes)
6 - “Nanã (Coisa n.º 5)” (Moacyr Santos/ Mário Telles)

Gravadora: Elenco
Produção: Aloysio de Oliveira
Duração: 32min17

Nara Leão: voz
Moacyr Santos e Gaya: arranjos
Geraldo Vesper (faixa 2) e Baden Powell (faixa 7): violão
Banda da Elenco: instrumentos diversos e coro

José Delphino Filho: direção artística
Norman Sternberg: técnico de gravação e engenheiro de som