Discos para história: Lóki?, de Arnaldo Baptista (1974)

História do disco

Não é incomum na história da música um álbum passar batido na época do lançamento deixar de ser um trabalho conhecido por meia dúzia para virar um clássico disputado por novos e velhos colecionadores nos sebos e lojas de vinis. Foi o caso de “Lóki?”, álbum de Arnaldo Baptista, lançado pela gravadora Polygram em 1974. Para quem coleciona música, o LP é um dos melhores e fundamentais; para o músico, a circunstância das gravações não poderiam ser piores.

Arnaldo deixou os Mutantes sob circunstâncias um tanto lisérgicas, digamos assim, um ano antes. A fase progressiva da banda não agradou aos fãs, que ficaram ainda mais ressentidos quando Rita Lee saiu para fundar o Cilibrinas do Éden e, logo depois, o Tutti-Frutti. Para piorar, o casamento entre os dois havia acabado, e o músico estava completamente isolado na famosa casa na Cantareira. Lá, usou o tempo para refletir e transformar todos esses pensamentos em canções muito pessoais.

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É senso comum da época, entre músicos e diretores da Polygram, que Arnaldo não estava nada bem pela mistura de depressão e o pesado uso de drogas. Hoje, qualquer um acharia arriscado demais colocá-lo para gravar um álbum completo, mesmo sabendo do talento e da capacidade em fazer boas canções. Mas era 1974, outra época. André Midani, principal diretor da gravadora, equilibrava como poucos os artistas populares de vendagem alta com outros considerados mais “intelectuais” pela crítica. Com apoio de Roberto Menescal, então diretor artístico, o projeto ganhou o aval positivo para sair do papel. 

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A ideia era fazer o máximo possível para deixar o ex-Mutante confortável: ter um produtor para auxiliar no estúdio, músicos de confiança e esperar o lado criativo despertar. Mas a pessoa acertada para produzir deu para trás — ninguém lembra quem era —, alegando que o pessoal não tinha limites quando o assunto era uso de drogas. Sem alternativas, Menescal acabou pegando o projeto, mesmo sabendo das diferenças em todos os métodos de gravação. Afinal, palavra é palavra. E ele deu a dele ao músico.

Essa confusão antes mesmo de iniciar as gravações acabou levando Marco Mazzola ao estúdio. Sem conhecer o método de trabalho, acabou sendo convencido por saber que Arnaldo adorava quem tinha bastante conhecimento técnico. E Mazzola tinha de sobra, mesmo com apenas 23 anos na época, quando havia acabado de trabalhar em “Atrás do Porto Tem uma Cidade”, terceiro álbum de Rita Lee com o Tutti-Frutti. Para aliviar um pouco as coisas, Liminha e Dinho Leme, os dois também ex-Mutantes, foram convidados para gravar o disco. Não tão curiosamente assim, o álbum não tem guitarras, fruto dos traumas das brigas dos ex-integrantes com Sérgio Dias. 

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A gravação foi feita sem qualquer planejamento prévio ou ensaio no estúdio da Eldorado, com 16 canais, o mais moderno da época em São Paulo. Muitas vezes, os músicos pensavam estar ensaiando, mas Arnaldo, ao final, gostava da versão e pedia para deixar daquele jeito, apesar da insistência deles em fazer repetir até conseguir uma versão melhor. Quando queria um arranjo mais elaborado, ele simplesmente ia até Rogério Duprat, explicava por cima e recebia o resultado pouco tempo depois. E apesar da bagunça, os horários eram rigorosamente cumpridos. Em menos de uma semana, esse imenso trabalho em grupo foi finalizado.

Lançado em 1974, “Lóki?” não teve nenhum apoio da Polygram para divulgação na TV, rádio ou nas lojas de discos. Ninguém achava que o disco viraria algo maior no curto, no médio ou no longo prazos. Sem isso, o LP não vendeu quase nada, afetando profundamente os problemas de saúde de Arnaldo pelos anos seguintes. Para nossa sorte, o trabalho ganhou reconhecimento com o passar dos anos, virando um desses clássicos impossíveis de não ouvir em algum momento da vida.


Crítica de “Lóki”

“Lóki?” é um álbum muito melancólico, um desabafo de Arnaldo Baptista sobre os sentimentos mais profundos. Era muita coisa para qualquer um aguentar sem perder a cabeça. “Será que Eu Vou Virar Bolor?” abre o LP questionando a própria capacidade em conseguir as coisas e só restava se apegar ao que tinha (“O que é isso, meu amor?/ Será que eu vou morrer de dor?/ O que é isso, meu amor?/ Será que eu vou virar bolor?”). Na única faixa do disco ainda composta com os Mutantes, “Uma Pessoa Só” é uma viagem lisérgica bem ao estilo da época, com destaque para o arranjo do piano.

Com vocal de apoio de Rita Lee, “Não Estou nem Aí” nasceu de uma pergunta feita por um afinador de piano para Arnaldo: “já pensou que vai morrer um dia?”. A partir disso, ele desenvolveu uma balada cheia de ironia, coragem e desafiadora, como só alguém de 25 anos poderia fazer. E inspirado por um desfile com “modelos lindíssimas”, “Vou Me Afundar na Lingerie” é uma ópera do absurdo e cheia de gracinhas e gracejos (“Imagine só/ Xuxu beleza/ Tomate maravilha/ É a última moda”). O lado A encerra com a instrumental “Honky Tonky (Patrulha do Espaço)”, um solo de piano bem dramático de pouco mais de dois minutos de Baptista.

A segunda parte do trabalho abre com o hit “Cê Tá Pensando que Eu Sou Lóki?”, com o refrão que toda pessoa sabe cantar só a primeira estrofe (“Cê tá pensando que eu sou lóki, bicho?/ Sou malandro velho/ Não tenho nada com isso”). A letra foi inspirada em um amigo, que ensinou a Arnaldo o significado da gíria lóki, adotada de prontidão pelo músico. Acabou que muita gente fez o mesmo quando ouviu o álbum. Para ele, o apelido pegou e virou até nome do documentário lançado em 2008.

Escrita para Tereza Kawall, namorada da época, “Desculpe” é quase uma fossa psicodélica melancólica de vocal sussurrado com tons de desabafo (“Mas desculpe/ Mas eu vou me fechar/ Não sou perfeito/ Nem mesmo você é/ Me abrace/ Diga-me o meu nome/ Diga que você me quer”). Em outra balada no piano, “Navegar de Novo” traz a esperança de um Brasil melhor, mais aberto e menos careta — era 1974, mas poderia ser 2024. Outra inspirada na ópera, “Te Amo Podes Crer” funciona quase como um musical, tamanho o empenho na interpretação e na potente letra, em outro momento em que Arnaldo usa para falar e falar. “Lóki?” encerra com “É Fácil”, apenas para ele mostrar que poderia tocar violão no disco inteiro se assim quisesse, mas não quis — por isso o nome da música.

Talvez a falta de sorte tenha sido um fator importante na vida de Arnaldo Baptista. Quando muitos de seus contemporâneos lançaram trabalhos históricos nos anos 1970 — e muitos deles já considerados importantes na época —, ele ficou para trás e foi perdendo espaço. O reconhecimento tardio por “Loki?” chegou, mas é difícil não ficar pensando sobre as motivações da demora em conseguir isso que outros conseguiram tão fácil e rapidamente. Ainda bem que sempre existe espaço para revisar antigas opiniões e pensamentos. Afinal, só as pessoas limitadas não mudam.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - “Será que Eu Vou Virar Bolor?” (3:50)
2 - “Uma Pessoa Só” (Arnaldo Baptista / Dinho Leme / Liminha / Sérgio Dias) (4:00)
3 - “Não Estou nem Aí” (3:20)
4 - “Vou Me Afundar na Lingerie” (3:25)
5 - “Honky Tonky (Patrulha do Espaço)” (2:15)

Lado B

1 - “Cê Tá Pensando que Eu Sou Lóki?” (3:25)
2 - “Desculpe” (3:10)
3 - “Navegar de Novo” (5:30)
4 - “Te Amo Podes Crer” (2:50)
5 - “É Fácil” (1:55)

Gravadora: Polygram
Produção: Roberto Menescal e Marco Mazzola
Duração: 33min40

Arnaldo Baptista: vocal; piano, órgão, clavinet, sintetizador; violão de 12 cordas em “É Fácil”
Liminha: baixo
Dinho Leme: bateria
Sérgio Kaffa: baixo em “Desculpe”
Rita Lee: vocal de apoio em “Não Estou Nem Aí” e “Vou Me Afundar na Lingerie”
Rogério Duprat: arranjos de orquestra

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