Discos para história: Encarnado, de Juçara Marçal (2014)

História do disco

É muito difícil não sentir o impacto da voz de Juçara Marçal ao longo dos pouco mais de 40 minutos de “Encarnado”, primeiro álbum da carreira solo. A caminhada da cantora até esse momento de consagração, quando esteve nas principais listas de melhores do ano de vários sites brasileiros de música, é cheia de admiração por quem gosta e um pouco de espanto. Afinal, alguém com todo esse talento levar quase 25 anos para gravar o álbum de estreia não deveria ser motivo de questionamento, mas acaba sendo porque ela só conseguiu viver de música após esse lançamento.

“Não sei o que teria sido da minha trajetória na música se lá atrás eu não precisasse me preocupar em trabalhar em outras frentes. O que acontecia: eu não percebia como possibilidade de ser profissional de música, né? Isso, na verdade, é um quadro recorrente em várias camadas da sociedade, várias pessoas que sequer enxergam a possibilidade de ser profissional de música”, disse, em entrevista para ‘Casa Natura Musical’.

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Ela começa a vida adulta estudando Matemática, mas gostou mesmo de fazer Jornalismo e Letras na USP até conseguir cantar em diversos corais amadores. Se apaixonou de vez pela música e conseguiu uma vaga na Companhia Coral, dirigida por Samuel Kerr, um dos grandes nomes da história da música clássica brasileira, e Willian Pereira. Passa a ensinar no curso de teatro e entra no quinteto vocal feminino Vésper, focado em cantar música brasileira a capela, e fica por 20 anos. No final dos anos 1990, entra no grupo A Barca, focado em pesquisar a cultura popular brasileira baseado nas ideias do escritor Mário de Andrade. A vida muda completamente ao começar uma parceria duradoura com Kiko Dinucci no início dos anos 2000.

A dupla grava alguns discos e o sucesso no underground veio com o trio Metá Metá, também formado pelo saxofonista Thiago França, quando boa parte dos fãs atuais da cantora começaram a gostar do trabalho e a querer saber mais sobre ela na sequência formada por “Metá” (2011) e “Metal Metal” (2012). Com todo esse currículo, era inevitável o trabalho em um primeiro disco solo, algo colaborativo, com ajuda dos amigos, com uma cara e jeito dela. Tanto é que, em entrevista ao site ‘Volume Morto’, ela fala sobre como a gravação foi planejada de um jeito e acabou ficando de outro, tamanha a resposta positiva em estúdio.

Mais álbuns dos anos 2010:
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“O Kiko e o Rodrigo [Campos] formam uma engrenagem, um tic tac perfeito que eu sou muito fã e queria ter isso no disco. E a partir disso ia ter o Thomas [Rohrer, rabeca]. E em princípio eu tava aberta para depois, quando tudo estivesse pronto, entrar baixo, entrar bateria. Só que aí ficou tudo muito consistente, não fazia sentido entrar outras coisas. É nesse sentido que eu acho que a gente compactua. Essa turma é olhar e falar: “Nossa, é isso. Não precisa mais nada’. Correndo o risco de ninguém gostar, mas era assim que eu via o som, então ele vai ter que ser assim”, contou.

Em uma era com a internet já parte da vida das pessoas e com muitos artistas independentes apostando em lançamentos digitais, “Encarnado” foi disponibilizado no site oficial da cantora para download gratuito, um movimento natural para quem nadava nas águas da independência musical desde sempre.

“Hoje é mais fácil você conseguir gravar o seu som de forma independente. Não sei se significa uma melhora na indústria musical. É, antes, uma mudança na maneira de se fazer uma trajetória discográfica. Muito a ver com a internet”, disse, em entrevista para a extinta versão brasileira da ‘Noisey’, braço musical da ‘Vice’, em 2016.

Veja também:
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A vida dela mudou de vez a partir de 18 de fevereiro de 2014, quando o álbum saiu e mais gente pôde ouvir esse colosso musical, de rica história na cena em uma trajetória de parcas oportunidades para desabrochar em um cenário desanimador para se desenvolver e florescer. Mesmo assim, ela mostra orgulho de tudo feito até pouco depois do lançamento.

“Mas reclamar, acho que não dá pra eu reclamar. O fato de eu ter feito o trajeto assim me dá características de cantora que talvez não tivesse se, desde o início, tivesse tido todas as possibilidades. Acho que o trajeto define quem você é como artista, vai moldando seu olhar. Talvez eu não tivesse a percepção para várias coisas que tenho hoje se eu tivesse percorrido um caminho diferente. E as coisas que percebi nessa caminho, eu as acho muito importantes hoje. Então, foi um percurso interessante, que me dá orgulho”, falou, também para ‘Natura’.


Crítica de “Encarnado”

Inspirados pela Vanguarda Paulista do início dos anos 1980 e por uma mistura de sons de influências e experiências, os arranjos e as letras de “Encarnado” são destaques inquestionáveis do álbum. Mas é bom não deixar de fora a força vocal de Juçara Marçal, uma dessas potências em que é impossível não prestar atenção em tudo. O disco abre com a sombria “Velho Amarelo”, uma abordagem para a morte usando instrumentos de corda para dar potência e destaque ao vocal.

Com apenas uma composição da cantora, “Odoya”, o trabalho é um exercício de interpretação própria de músicas compostas por amigos e agregados que, juntas, fazem sentido. A brincadeira dos ritmos em “Damião” contrasta com “Queimando A Língua”, uma dessas com o vocal mais falado do que cantado (“Não enxergo o final, interrompo o tempo aqui/ Em você/ Eu guio seus dedos me inclino pro sim/ Nem sinal, nem que eu queira compreender/ Esse amor”).

A melancólica “Pena Mais Que Perfeita” tem na parte instrumental um dos momentos mais comoventes do álbum, com o grande momento sendo em “Ciranda Do Aborto”, composta por Kiko Dinucci. Aqui, a interpretação da cantora supera qualquer expectativa e faz da música uma dessas difíceis de não sair comovido ao final da audição — além de tudo, ainda tem um momento de puro improviso no final. Parando um pouco as coisas, a religiosa “Canção Pra Ninar Oxum” chega baixinha, delicada e vai rápida. Itamar Assumpção e Tom Zé são homenageados com as interpretações de “E O Quico?”, a mais vanguardista das faixas de todo álbum, e com “Não Tenha Ódio No Verão”, essa vanguardista antes mesmo da criação do movimento musical paulista (“Não tenha ódio no verão/ Você vai acabar/ Comendo brasa no tição/ Assando o rabo no fogão/ Isso arrebenta uma nação”) — ambos usam do humor e ironia para fazer críticas a pessoas e governos.

De Siba, a curta e furiosa “A Velha Da Capa Preta” se encaixa perfeitamente no vocal da cantora, que dá um ritmo vocal rápido e animado, abrindo caminho para as curtas “Presente De Casamento”, faixa com guitarra pesada, e o samba “João Carranca”, com Juçara Marçal encerrando o álbum contando uma história de maneira suave e de letra triste.

“Encarnado” dialoga muito com a história musical de Juçara e dos envolvidos na gravação, mas também sobre como a indústria musical brasileira deixou de apostar em grandes talentos para focar em balanços positivos e bônus numerosos, uma crueldade que a arte não merece passar. A cantora poderia ter desanimado e a firmeza dela é uma lição de amor pela música e perseverança, gerando um dos melhores álbuns brasileiros da década passada.

Ficha técnica

Tracklist*:

1 - “Velho Amarelo” (Rodrigo Campos) (4:25)
2 - “Damião” (Douglas Germano/ Everaldo Ferreira Da Silva) (2:07)
3 - “Queimando A Língua” (Alice Coutinho/ Romulo Fróes) (5:04)
4 - “Pena Mais Que Perfeita” (Gui Amabis/ Regis Damasceno) (4:16)
5 - “Odoya” (Juçara Marçal) (2:49)
6 - “Ciranda Do Aborto” (Kiko Dinucci) (5:41)
7 - “Canção Pra Ninar Oxum” (Douglas Germano) (3:25)
8 - “E O Quico?” (Itamar Assumpção) (2:43)
9 - “Não Tenha Ódio No Verão” (Tom Zé) (2:53)
10 - “A Velha Da Capa Preta” (Siba Veloso) (3:47)
11 - “Presente De Casamento” (Romulo Fróes/ Thiago França) (1:19)
12 - “João Carranca” (Kiko Dinucci) (2:00)

*lista de músicas retirada da versão digital

Gravadora: -
Produção: Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos
Duração: 40min29

Juçara Marçal: voz
Kiko Dinucci: guitarra
Rodrigo Campos: guitarra e cavaquinho
Thomas Rohrer: rabeca
Thiago França: saxofone

Mixagem e masterização: Fernando Sanches

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