Discos para história: Calango, do Skank (1994)

História do disco

“[Em 1994] O Skank entrou no estúdio para fazer o segundo álbum, ‘Calango’. Me lembro de ter algumas músicas prontas antes mesmo de começar a fazer; fizemos algumas músicas na estrada como ‘Chega Disso’ e ‘Esmolas’. Foi nosso segundo encontro com o estúdio, respaldado pela gravadora, com todo recurso, muito diferente do primeiro que havia sido feito com nossas economias”, contou Samuel Rosa, em depoimento para o próprio canal no YouTube, ao contar a história de um pequeno entrevero com a gravadora Sony sobre o repertório.

“Me lembro do que ouvimos na reunião para definir o que o Skank faria no estúdio, em junho de 1994. Iríamos gravar as músicas que já tínhamos a composição e eles pediram para gravarmos uma versão de ‘Andar Com Fé’, de Gilberto Gil. Relutamos um pouco por pensarmos que seria a primeira chance de fazermos um álbum somente com músicas autorais”, completou o vocalista.

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Gravar um disco com músicas próprias é sempre uma luta para qualquer artista novato, principalmente pela desconfiança da gravadora em apostar em uma banda jovem e muito diferente do senso-comum do chamado rock nacional. Aliás, o chamado rock nacional vivia uma espécie de crise no início dos anos 1990, com a revista Bizz, em editorial, falando em estagnação após o ‘boom’ da década anterior. Por mais sucesso que várias bandas fizeram, com poucos “sobreviventes”, ainda não havia uma identidade própria do gênero no Brasil, engolido pela ascensão do axé, do sertanejo e de um pop mais palatável nas rádios e nos programas de auditório da época.

O Skank entra na parada quando o vocalista e guitarrista Samuel Rosa e o tecladista Henrique Portugal deixam o grupo Pouso Alto para fundarem a banda ao lado do baterista Haroldo Ferretti, ex-Circuito Fechado. Logo depois, chega o baixista Lelo Zaneti e o quarteto é fechado. Todas essas bandas tiveram algum brilhareco na cena mineira, insuficiente para alcançar o sucesso — leia-se tocar nas principais rádios de São Paulo e Rio de Janeiro. Em 1992, eles lançaram o primeiro álbum de estúdio, com o nome do grupo, usando todo dinheiro guardado de trabalhos anteriores, na incrível soma de US$ 10 mil — uma fortuna na época. Acabou sendo o suficiente para chamar atenção da nova gravadora Chaos, subsidiária da Sony, interessada em ampliar o catálogo com artistas de várias partes do país, que topou relançar o trabalho no início do ano seguinte. Vendeu 250 mil cópias.

O inesperado sucesso encheu a gravadora de confiança para o segundo álbum, logo encomendado para ser gravado no estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, um dos melhores e mais usados pelas bandas do rock nacional na década passada. Mas o que ninguém esperava era a expectativa gerada pelo público e crítica para o disco, graças ao convite feito por Roberto Frejat, vocalista e guitarrista do Barão Vermelho, ao Skank para participar de um álbum-tributo a Roberto e Erasmo Carlos. 

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Contratado da Warner, Frejat foi gentilmente cedido à Sony para produzir o trabalho e o mesmo aconteceu com diversos outros artistas “pós-Barão Vermelho”, como disse o músico em entrevista para ‘Folha de S.Paulo’. As gravações estavam correndo bem, e a ideia era fazer muito barulho com marketing, aparições no rádio e nas TVs nessa grande homenagem a dois dos principais arquitetos da música jovem brasileira, finalmente reconhecidos como tal. O primeiro single já estava definido: “Se Você Pensa”, escolhida a dedo por Lulu Santos, um dos artistas mais velhos da homenagem. Porém, como diz o pessoal atualmente, deu ruim. Muito ruim.

A BMG, gravadora de Lulu Santos, alegou que a Sony antecipou em dois meses o lançamento do tributo e, ao escolher a música gravada pelo cantor como primeiro single, atrapalharia a divulgação do disco “Assim Caminha a Humanidade” e a participação foi barrada em cima da hora. Trinta mil cópias de “Rei” foram destruídas, gerando uma briga histórica entre duas das maiores gravadoras do Brasil à época e o adiamento em algumas semanas. A solução foi colocar uma banda da casa, o Skank, para divulgar o primeiro single do projeto. “É Proibido Fumar” ganhou uma superprodução, com um grande orçamento para um clipe, e presença certa no segundo álbum de estúdio dos mineiros. E eles estouraram para o Brasil inteiro, tocando em todas as rádios do país com um dos grandes sucessos de Roberto e Erasmo.

Com esse peso, ter um produtor experiente ajudaria muito. Acabou que Dudu Marote, um dos grandes da profissão no Brasil há vários anos e que produziria Jota Quest e Pato Fu futuramente, foi convidado para auxiliar a banda nas gravações após trabalhar na mixagem de “Baixada News” e por trabalhar com algumas bandas do underground que os músicos eram fãs. Quem retornou foi o engenheiro de som Marcos Gauguin, nome importante na gravação da primeira versão do álbum de estreia do Skank — os dois dividiram os créditos de produção com o grupo.

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Marote foi fundamental para elevar a sonoridade das músicas nas cinco semanas de trabalho. As influências jamaicanas e do dance ainda estavam lá, mas com um ar mais pop e mais próximo da realidade brasileira. Se a primeira leva do rock brasileiro era influenciada diretamente por grupos de Estados Unidos e Inglaterra, o Skank e alguns dos contemporâneos tinham preferência por misturar as referências estrangeiras com a originalidade local.

A aposta da Sony em divulgar o Skank foi certeira e ainda contou com o recém-Plano Real, responsável por acabar com a inflação que assolava os brasileiros desde o início da década passada, dando poder de compra para uma geração inteira pela primeira vez. “Calango” foi lançado em outubro de 1994, contou com uma juventude estreando os novos CDs-Players e vendeu mais de 1 milhão de cópias, dando ao grupo o sucesso e uma carreira recheada de hits. E ao pop/rock nacional uma cara mais brasileira.


Crítica de “Calango”

“Amolação” abre o segundo trabalho do Skank com a influência jamaicana muito forte em cada segundo da faixa em uma história que muita gente pode ter ouvido ou visto em algum momento da vida (um homem da roça, casado e com oito filhos para criar), emendada com hit “Jackie Tequila”, que aposta no naipe de metais para criar o clima relaxante da faixa (“Funk lá no Morro da Mangueira/ Essa menina tá dizendo, sim eu sei/ Noite bamba, tudo à beça/ Bailão na Rampa do Cruzeiro”).

O tom político do álbum aparece em “Esmola”, ainda um reflexo do final da ditadura e do desastroso governo de Fernando Collor de Mello, história de diversas pessoas pelo Brasil até hoje (“Uma esmola pelo amor de Deus/ Uma esmola, meu, por caridade/ Uma esmola pro ceguinho, pro menino/ Em toda esquina tem gente só pedindo”). O dub aparece na balada romântica “O Beijo E A Reza”, uma dessas músicas da discografia que merecia mais atenção ao longo dos anos, e a mistura de rock com repente de “A Cerca” mostra como a nova geração do rock brasileiro queria mostrar a influência local de alguma maneira.

Produzida por Frejat, a versão de “É Proibido Fumar” não poderia ficar de fora. Ao trazer percussão, naipe de metais, elementos eletrônicos e o vocal marcante de Samuel Rosa, a faixa virou uma das preferidas do público ao longo dos anos e uma ótima homenagem para Roberto e Erasmo Carlos. Os ritmos caribenhos, também importantes na formação musical dos integrantes, aparecem no hit “Te Ver” (“Te ver e não te querer/ É improvável, é impossível/ Te ter e ter que esquecer/ É insuportável, é dor incrível”) e em “Chega Disso!”, essa uma pequena prova do que estaria por vir no álbum seguinte.

A tocante “Sam” também é outra história que a banda conta e também deveria ter sido mais valorizada pelo público ao longo dos anos, principalmente pelo forte tom melancólico. E mais uma vez falando do chamado Brasil profundo por muitos, “Estivador” é mais um desses momentos que o Skank lembra da existência dos esquecidos pela sociedade. O álbum encerra com “Pacato Cidadão”, outro grande sucesso dos últimos 30 anos, quando chamam a atenção para uma parte da população só lembrada nas eleições ou quando há algum outro interesse (“Ô pacato cidadão/ Te chamei a atenção/ Não foi à toa não C'est fini la utopia/ Mas a guerra todo dia/ Dia a dia não”).

Recentemente, o Skank fez uma longa turnê de despedida por várias partes do Brasil e causou uma comoção geral como pouco havia visto nos últimos anos. “Calango”, lançado há 30 anos, consegue explicar um pouco porque as pessoas ficaram tão tristes com o fim da banda — ao menos por enquanto. É difícil não associar o grupo com coisas boas dos últimos anos, principalmente pela quantidade de sucessos. O segundo disco da carreira foi um importante pontapé definitivo para uma carreira bonita com aplausos merecidos no final.

Ficha técnica

Tracklist:

1 - “Amolação” (David Saxon/ H. Gilbert, ver. Chico Amaral/ Samuel Rosa) (2:36)
2 - “Jackie Tequila” (4:10)
3 - “Esmola” (2:39)
4 - “O Beijo E A Reza” (4:59)
5 - “A Cerca” (Amaral/ F. Furtado/ Rosa) (3:28)
6 - “É Proibido Fumar (Peter Gunn Theme)” (Roberto Carlos/Erasmo Carlos/ Henry Mancini) (3:12)
7 - “Te Ver” (Amaral/ Lelo Zaneti/ Rosa) (4:36)
8 - “Chega Disso!” (4:05)
9 - “Sam” (3:46)
10 - “Estivador” (3:24)
11 - “Pacato Cidadão (música incidental: ‘Let 'Em In’)” (Amaral/ Rosa/ Paul McCartney) (4:04)

Todas as letras foram escritas por Samuel Rosa e Chico Amaral, exceto as marcadas

Gravadora: Caos/Sony
Produção: Dudu Marote, Skank & Marcos Gauguin
Duração: 40min59

Samuel Rosa: vocal e guitarra
Henrique Portugal: teclados; vocal em “A Cerca” e “Amolação
Lelo Zaneti: baixo
Haroldo Ferretti: bateria
Chico Amaral: saxofone
João Vianna: trompete
Ed Maciel: trombone
Guilherme Calicchio: assobio em “Jackie Tequila”

Roberto Frejat: produtor em “É Proibido Fumar”
Vitor Farias: engenheiro de som e mixagem
Guilherme Calicchio e Renato Muñoz: engenheiro de som
Ricardo Garcia: masterização
Everaldo Andrade, Marcio Thees e Renato Muñoz: assistentes de gravação

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