Discos para história: Orfeu da Conceição, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (1956)


Trilha sonora da peça foi o primeiro trabalho lançado pela dupla que faria história

História do disco

A obra que uniu Tom Jobim (1927-1994) e Vinicius de Moraes (1913-1980) foi um marco histórico em vários aspectos da música brasileira. Orfeu da Conceição nasceu na ponte do pelo jornalista Lúcio Rangel (1914-1979) entre os dois, então desconhecidos um do outro. É possível afirmar que o disco, trilha da peça e do filme Orfeu Negro (1959), seria uma inspiração na vida de muitas bandas e cantores no futuro – vide o Arcade Fire em Reflektor (2013).

A ideia de encenar o mito grego de Orfeu para uma favela carioca é de muito antes. Em 1942, quando estava acompanhando o jornalista norte-americano Waldo Frank (1889-1967) em passagem pelo Brasil, Vinicius o acompanhou em incursões por dentro de favelas e da cultura afro-brasileira – isso seria fundamental para outro clássico envolvendo o "poetinha": Os Afro-Sambas (1966). Segundo a história, a peça encomendada nasceu quando Vinicius estava lendo um livro sobre mitologia grega e ouviu uma roda de samba ali perto. Foi aí que ele conectou os pontos e a ideia, já dentro dele, ganhou forma. Ali mesmo nasceu o primeiro ato.

Mais discos dos anos 1950:
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Na mitologia grega, Orfeu é filho de Apolo e da ninfa Calíope e herdeiro de uma lira que nenhum homem ou deus consegue resistir ao seu encanto. Ao apaixonar-se por Eurídice, tem seu amor consagrado por Himeneu, mas não conseguiu superar os maus presságios. Um dia, ao ser perseguida por Aristeu, a amada foi picada por uma serpente e morreu. Indo parar no mundo dos mortos para resgatar Eurídice, Orfeu superou todos os desafios – e fez Hades chorar de emoção com o som de sua lira –, menos um.

A jovem seguiria viva sob uma condição: que Orfeu não poderia olhar para ela até estar na luz do sol novamente. Faltando pouco para chegar no mundo dos vivos e celebrar seu amor, Orfeu certifica-se que Eurídice está atrás dele. O erro foi fatal. A jovem virou um espectro e retornou ao mundo dos mortos. Em completo estado de torpor, Orfeu é tomado pela tristeza e despreza todas as mulheres do mundo. Até um dia ser esquartejado pelas Mênades, ninfas selvagens e sem objetivo algum na vida. As nove musas canônicas se compadecem da situação, reúnem os pedaços e o enterram no Monte Olimpo. Logo que chega ao mundo dos mortos, Orfeu encontra-se com Eurídice, e eles ficam juntos pela eternidade.

"Tem um dinheirinho nisso aí?", foi a pergunta de Tom Jobim a Vinicius ao ser convidado para compor a trilha sonora da peça de teatro. A pergunta pelo dinheiro era muito simples: o compositor e arranjador era um jovem que vivia a penúria de ficar apertado todo mês para pagar o aluguel de onde morava, já que ganhava pouco em seus trabalhos na noite carioca. Mas a pergunta não gerou nenhum problema. Ao contrário, ambos estavam ansiosos para o trabalho pelo simples fato de ser o primeiro – mesmo sendo amigos de bar, eles ainda não tinham feito nada juntos. Pode ser uma surpresa hoje, porém as primeiras músicas da dupla ficaram horríveis. Eram sambas sem pé nem cabeça. A primeira composição considerada boa por parte deles foi "Se Todos Fossem Iguais a Você", hoje um clássico da música brasileira.

Em 25 de setembro de 1956, a peça finalmente estreia no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Pouca gente sabe, mas Oscar Niemeyer fez os cenários, Carlos Scliar e Djanira fizeram os cartazes e o Teatro Experimental do Negro de Abdias Nascimento forneceu o elenco afro-brasileiro para peça. Foi um sucesso arrebatador de público e crítica, mesmo ficando apenas uma semana no Municipal e um mês em outro teatro menor da cidade. Uma polêmica envolvendo o elenco acabou encerrando a temporada da peça, que nunca chegou a ser encenada em São Paulo com o elenco original.

Veja também:
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Aproveitando momento de alta, a gravadora Odeon decidiu lançar a trilha sonora da peça. Mas havia um desafio pela frente: quem poderia ser a voz de tais letras? O diretor artístico Aloysio de Oliveira, recém-chegado dos Estados Unidos, logo lembra do intérprete Roberto Paiva (1921-2014). Um dos grandes nomes da Era de Ouro do Rádio no fim dos anos 1930, Paiva ficou receoso com o convite para ouvir as composições. No fim, não só saiu como a missão de gravar as canções da então inédita parceria como virou um dos grandes amigos de Tom Jobim.

Lançado no mesmo ano da peça, o disco Orfeu da Conceição virou o marco do que viria a ser a bossa nova. Três anos depois, peça e disco seriam a base do filme Orfeu Negro, vencedor do Oscar e da Palma de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro em 1959.



Resenha de Orfeu da Conceição

O início é dos mais bonitos para apresentar o primeiro ato da peça. O início épico dá o tom de como será contada a história de Orfeu da Conceição e o drama amoroso que envolve toda história do mito transformado em um homem morador de uma favela no Rio de Janeiro. A única participação vocal de Vinicius de Moraes no disco é em "Monólogo de Orfeu", embalado por uma flauta bem leve ao fundo enquanto declama um poema de amor de Orfeu para Eurídice.

Da terceira faixa em diante vem Roberto Paiva e seu vozeirão de primeira para apresentar "Um Nome de Mulher", um samba de bom nível com um arranjo espetacular. Depois vem a excelente interpretação para "Se Todos Fossem Iguais a Você". Na primeira gravação da música, a voz de Paiva dá um tom completamente diferente das versões mais conhecidas, mas, ainda assim, é das mais bonitas – parece que ele canta sem fazer o menor esforço. O coro de apoio só dá mais força às palavras ditas.



"Mulher, Sempre Mulher" é um samba-canção simples que tem uma das melhores estrofes na música brasileira (Você bota muita banca/ Infelizmente eu não sou jornal), já "Eu e o Meu Amor" soa animada, mas é início do lamento de um homem que acaba de perder a sua amada. E "Lamento no Morro" é a depressão de um homem que sabe que nunca mais terá seu amor de volta e não esquecerá jamais o vivido por eles.

O disco é uma obra-prima da música brasileira ao conseguir mostrar os primeiros "filhos" da dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes. A partir disso, a música brasileira veria o início de um de seus momentos históricos que mudaram para sempre os rumos das coisas por aqui.



Ficha técnica

Tracklist:

1 - "Overture" (6:45)
2 - "Monólogo de Orfeu" (Vinícius de Moraes) (2:52)
3 - "Um Nome de Mulher" (2:05)
4 - "Se Todos Fossem Iguais a Você" (3:31)
5 - "Mulher, Sempre Mulher" (1:56)
6 - "Eu e o Meu Amor" (1:41)
7 - "Lamento no Morro" (2:06)

Todas as músicas foram escritas por Tom Jobim e Vinicius de Moraes, exceto a marcada

Gravadora: Odeon
Produção: Antonio Carlos Jobim
Duração: 21min19s

Roberto Paiva: intérprete
Luiz Bonfá: violão
Tom Jobim: piano
Orquestra Odeon: instrumentos diversos



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