Discos para história: Convite para Ouvir Maysa, de Maysa (1956)


História do disco*

Maysa Monjardim parecia estar pronta para desafiar o mundo desde sempre. De personalidade forte, gostava de fazer o que era proibido ou não bem quisto pela sociedade dos anos 1950 -- de jogar bola com os garotos na rua até ser reprovada em latim e geografia na escola, que contribuiria e muito para a parada definitiva dos estudos algum tempo depois, e fumar e usar calça jeans escondida. À medida que ia crescendo, qualquer outra atividade era colocada de lado para suas grandes paixões ocuparem todo espaço ao longo do dia: o cinema e a música.

Aos 15 anos, ela já encantava os amigos dos pais, Inah e Alcebíades Monjardim, por conta do talento muito precoce. As festas em família, regadas a muita bebida e com presenças ilustres de Elizeth Cardoso e Silvio Caldas, tinham Maysa e o violão como centro das atenções de alguém que escrevia poemas desde muito nova -- um deles é a letra de "Adeus", um dos grandes sucessos da carreira. Mas a vida dela mudaria completamente quando se apaixonou por André Matarazzo, herdeiro da família Matarazzo e um dos homens mais ricos do mundo à época, um amor correspondido por ele. A família Monjardim não gostou, é claro. Afinal, a diferença de idade era muito grande -- ele tinha 33 e Maysa, 15.

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Eles se casaram em 24 de janeiro de 1955 e foram fazer a vida de casados. Mas Maysa não gostava daquilo e se esforçava para se adequar às regras da alta sociedade paulista. De André ela gostava e muito. O problema estava no resto do dia, geralmente de puro tédio. Quando ganhou um violão para amenizar os dias de tristeza, acabou confidenciando à mãe que gostaria de gravar um disco, já que tinha um grande repertório de canções escrito desde 1951, data do primeiro de muitos diários que manteria ao longo da curta vida. Dona Inah vetou qualquer possibilidade de apoiar a filha, agora uma mulher casada. Alcebíades também declinou, porém, sem querer, acabaria sendo ele que ajudaria a filha a realizar o sonho de gravar um disco.

Um dia, Roberto Côrte-Real deu uma esticada até a casa do pai de Maysa para tomar um ou vários drinques ao longo da noite. Já sabendo do talento da moça, acabou vendo pessoalmente todo potencial dela a pedido do pai, que queria confirmar ao amigo o que lhe havia dito em outra oportunidade. E ele viu ali algo que só amigos e parentes sabiam: ela era um diamante pronto. Sem se fazer de rogado, perguntou se ela tinha vontade de gravar um disco. Ao ouvir o "sim!" da cantora, também ouviu de André que isso estava fora de cogitação por dois motivos. O primeiro era a gravidez, o segundo era que uma Matarazzo jamais gravaria um LP.

Ela desistiu? Não. E batalhou muito até convencer o marido. Para satisfazer a esposa que não estava bem, André cedeu sob algumas condições. A primeira era não se apresentar jamais em público para não ser tratada como uma qualquer -- afinal, era casada com um Matarazzo. A segunda: o rosto de Maysa não poderia aparecer na capa. Por fim, toda renda do disco seria revertida ao Hospital do Câncer, fundado pouco tempo antes.

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Aliás, o fato de abdicar dos direitos do disco foi bem quisto na sociedade, como mostra o trecho de uma coluna do 'Jornal das Moças', de 29 de agosto de 1957. "Os seus vencimentos seriam doados à campanha contra o câncer, em São Paulo. Seu gesto nobre foi reconhecido pela Câmara de São Paulo. Logo em sua primeira gravação os discos R.G.E. alcançaram recordes de vendagem. Depois outros mais e o LP da R.G.E. 'Convite para ouvir Maysa'. E Maysa veio à Cidade Maravilhosa. Fez um contrato com a TV Rio, e mais uma vez cederia os seus vencimentos. Um cheque foi entregue 'As Pioneiras' de D. Sara Kubitscheck [primeira-dama e mulher de Juscelino Kubitscheck]".

Com tudo isso acertado, Côrte-Real levou o projeto para a gravadora em que trabalhava, a Columbia. Quando contou que a esposa extremamente jovem do herdeiro dos Matarazzo queria gravar um disco, levou a seguinte resposta: "quantas cópias o marido dela vai comprar?". Isso o deixou um tanto consternado, mas não menos obstinado em levar sua empreitada adiante. Ele teve a ideia de levar o projeto para José Scatena, dono da pequena RGE, e ele teve que aceitar todas aquelas e outras condições -- de composições próprias de uma cantora desconhecida até mudar o número de série do disco para o final 13, número da sorte de Maysa.

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Jayme Matarazzo Monjardim nasceu e, cumprindo o combinado, Maysa foi gravar o disco com todas aquelas condições. E não foi fácil, já que ela estava bastante nervosa e, sem a tecnologia de hoje, inutilizou diversas gravações ao errar várias vezes. No final, deu tudo certo e "Convite para Ouvir Maysa" foi lançado em 20 de novembro de 1956. Seria o primeiro dos 14 discos de estúdio gravados em pouco menos de duas décadas de carreira.

O LP não faria sucesso imediato e o fracasso esteve próximo, mas Scatena teve a brilhante ideia de conseguir um divulgador no Rio de Janeiro, então capital do Brasil, para ajudá-lo. Com as críticas certas e a divulgação na TV, Maysa seria um sucesso a ponto de ganhar um programa na TV Record, em São Paulo. E o que seria sua maior felicidade, também seria a ruína de seu casamento com André.

*a pesquisa para o texto teve como base o livro "Maysa - Só Numa Multidão de Amores" (clique aqui para comprar) e o site "Maysa Monjardim", tocado por um fã da cantora.


Resenha de "Convite para Ouvir Maysa"

É muito incrível pensar que uma moça de 20 anos conseguia cantar e escrever como Maysa. Havia um risco enorme em gravá-la, principalmente por ser uma total desconhecida cantando o próprio repertório. Mas ela não decepciona ao começar com o samba-canção "Marcada", uma canção para lá de triste que daria o pontapé inicial para a cantora ganhar o título de "Rainha da Fossa" -- e com bastante razão, diga-se.

Todas as letras foram escritas entre os 14 e os 20 anos da cantora, período em que namorou muito, abandonou e foi abandonada, como qualquer adolescente. Contudo o diferencial era o ar rebuscado das letras, sempre bem escritas, poéticas e muito profundas. A sequência formada por "Não Vou Querer", de bonito arranjo feito pelo maestro Rafael Puglielli para a Orquestra da RGE, e "Agonia" ("Neste mundo de agonias / Há quem viva de ilusões / Com sorrisos de alegria/ Com uma aos turbilhões"), sobre como a saudade é algo difícil de lidar, tema também do encerramento do lado A com "Quando Vem A Saudade".

Mas é na segunda parte do álbum que estão as melhores músicas. Três das quatro canções são grandes sucessos da carreira de Maysa, começando por "Tarde Triste", canção em que Maysa dá tudo de si. Não que as outras ela não tenha dado, mas essa parece ter algo especial que a tocou muito durante a gravação. Outro sucesso presente no lado B é "Resposta". Do bonito arranjo ao potente início ("Ninguém pode calar dentro em mim/ Esta chama que não vai passar/ É mais forte que eu/ E não quero dela me afastar"), é uma das composições mais bonitas da carreira dela.

Depois de "Rindo de Mim", "Adeus" encerra o disco de maneira triunfal. "Adeus, palavra tão corriqueira/ Que diz-se a semana inteira/ A alguém que se conhece/ Adeus, logo mais eu telefono/ Eu agora estou com sono/ Vou dormir pois amanhece" é absurdamente bom e muito triste, algo fundamental para entender carreira e vida pessoal da cantora. E alguém que tem essa música para finalizar um trabalho, é alguém muito especial.

"Convite para Ouvir Maysa" é um trabalho que reflete à época em que foi gravado. Dos arranjos dramáticos até as letras, o primeiro disco de Maysa é algo que só os anos 1950 no Brasil poderiam produzir. O LP serviu para mostrar como ela parecia ter nascido pronta para cantar, algo que não se encontra todo dia. E ela faria história em uma carreira de altos e baixos, e marcada por boas canções.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - "Marcada"
2 - "Não Vou Querer"
3 - "Agonia"
4 - "Quando Vem A Saudade"

Lado B

1 - "Tarde Triste"
2 - "Resposta"
3 - "Rindo de Mim"
4 - "Adeus"

Todas as músicas foram compostas por Maysa.

Gravadora: RGE
Produção: José Scatena
Duração: 24min14s

Maysa: vocal
Roberto Côrte-Real: direção musical
Rafael Puglielli: maestro
Orquestra RGE: instrumentos diversos
Sergio Lara Campos: gravação

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