Discos para história: Hunky Dory, de David Bowie (1971)


História do disco

David Bowie era um artista praticamente fracassado no início dos anos 1970. Até aquele momento, era um cantor de um hit só, "Space Oddity", e todos queriam saber mais dele sobre a corrida espacial do que propriamente da música que fazia ou pensava em fazer. O álbum que deveria ser responsável pelo salto de sucesso, "The Man Who Sold the World" (1970) foi um desastre. Ninguém tinha ideia da existência do álbum, um fracasso tão grande nos Estados Unidos que só foi lançado seis meses depois no Reino Unido, onde também não chamou atenção de quase ninguém. As duas coisas positivas no trabalho foram ver o produtor Tony Visconti, no posto pela terceira vez seguida, e a estreia de Mick Ronson na produção e como membro da banda de Bowie -- ambos trabalharam intensamente nos arranjos enquanto o cantor estava curtindo os primeiros meses de casamento com Angie e levariam a dupla a não querer mais trabalhar com ele, pelo menos no curto prazo.

Sem conseguir o visto de trabalho para fazer shows nos Estados Unidos, Bowie passou por algumas estações de rádio com a intenção de chamar a atenção para o disco ao falar que era "reminiscências sobre minhas experiências com um travesti* de cabeça raspada". Não funcionou, é claro. Em certo dia, ele estava andando por Nova York com um amigo quando ouviu "Sweet Jane", do Velvet Underground. Sabe quando você tem uma ideia tão boa que todo mundo perto pode ver uma luz no topo da sua cabeça? Isso aconteceu com Bowie. A partir desse momento, tudo que viríamos a conhecer sobre os personagens do cantor de personalidade maleável que não era gay nem hétero, nem homem ou mulher, rock ou qualquer outra coisa, nasceu ali. E tudo com um toque de sensualidade aliada com uma incrível capacidade em contar boas histórias usando uma voz diferente de qualquer outra que havia feito sucesso até ali. Sem saber, ou sabendo, Bowie colocaria um ponto final nos anos 1960 e seria o grande astro da década seguinte ao lado de Neil Young.

Mais David Bowie:
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"Todo o álbum ['Hunky Dory'] refletiu meu novo entusiasmo por este novo continente [América do Norte, especialmente os Estados Unidos] que se abriu para mim. Essa foi a primeira vez que uma situação externa real me afetou tanto que mudou minha maneira de escrever e a maneira como vejo as coisas", contou ele à revista 'Rolling Stone' em 1999.

Um dos pontos fundamentais da transformação de Bowie foi viajar de ônibus pelo país para a turnê de divulgação do álbum fracassado. Assim, ele pôde entender algumas canções de sucesso escritas por Bob Dylan, Lou Reed, James Taylor e Cat Stevens. E também entendeu, pela primeira vez, que jamais seria um astro folk que sairia dos pequenos bares tocando para 50 pessoas rumo ao sucesso avassalador. Não existia espaço para outro Dylan, pelo menos não com o mesmo estilo. "Ele percebeu que o período folk estava morrendo e precisava seguir em frente. Especialmente com bandas glamourosas como T. Rex avançando", disse o baixista Trevor Bolder à 'Rolling Stone'.

Foram pelo menos seis meses de trabalho escrevendo, reescrevendo e montando o quebra-cabeça das novas canções que fariam parte do próximo trabalho. Um dos pontos fundamentais dessa nova etapa da carreira de Bowie era cerca-se de pessoas de nível igual ou melhores do que ele. Montar uma banda com o guitarrista Mick Ronson e o futuro tecladista do Yes Rick Wakeman mostrava não estar para brincadeira -- essa seria a base da formação da Spiders from Mars. Após começar a carreira como um imitador de R&B e do folk de bar, ele finalmente estava descobrindo o próprio som.

Mais discos dos anos 1970:
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"No início dos anos 1970, tudo começou a se encaixar para mim quanto ao que eu gostava de fazer e foi uma colisão de estilos musicais. Descobri que não poderia adotar facilmente qualquer lealdade para qualquer gênero. Eu não era um artista de R&B, não era um artista folk e não via motivo para tentar ser tão purista sobre isso. Meu verdadeiro estilo era adorar a ideia de misturar Little Richard [rock] com Jacques Brel [compositor do clássico francês 'Ne me quitte pas'] com Velvet Underground dando suporte [como banda de apoio]. 'Como isso soaria?' Ninguém estava fazendo isso, pelo menos não da mesma maneira", disse ele à 'Classic Rock'.

A formação de uma banda fixa com integrantes de alto nível, a presença de Ken Scott na produção -- que só topou para ganhar experiência no primeiro trabalho do tipo na carreira -- e total liberdade no estúdio para experimentar fizeram de "Hunky Dory" a gênesis do que o mundo da música viria acompanhar e descobrir ao longo de toda década de 1970. "Entramos no estúdio e tive total liberdade para fazer o que quisesse. Eu ainda a considero a melhor coleção de músicas de um álbum [de David Bowie]", falou Wakeman.

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A cereja do bolo seria a troca de gravadora. Após ficar magoado com o tratamento dado pela Mercury, ele a trocou pela RCA, casa que ficaria por toda década e lançaria os principais discos da carreira. Reza a lenda que o empresário Tony Defries chegou para Dennis Katz, principal nome da RCA nos Estados Unidos, e disse que "eles não tinham nenhum sucesso desde os anos 1950", mas poderiam "possuir os anos 1970 se topassem ter Bowie na lista de artistas, porque David Bowie vai mudar a música, assim como os Beatles fizeram nos anos 1960".

Lançado em 17 de dezembro de 1971, "Hunky Dory" não foi um sucesso imediato e demorou um pouco para ser percebido pelo público no Reino Unido. Os motivos? Já se sabia que tudo mudaria no próximo álbum, já que Ziggy Stardust estava para nascer, e a RCA promoveu pouco o disco ao não gostar da capa. Mas foi com a chegada da nova persona de Bowie que o quarto trabalho de estúdio disparou nas vendas até chegar na terceira colocação. Pela primeira vez na carreira, David Bowie estava sendo notado. Foi a partir disso que ele decolou rumo ao estrelato.

*hoje, o termo mais usado pela comunidade e especialistas é mulher trans.

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Resenha de "Hunky Dory"

Considerado um dos melhores discos dos anos 1970, "Hunky Dory" começa com "Changes", uma espécie de aviso sobre a carreira de David Bowie antes e depois do álbum. É bom lembrar que o cantor estava há poucos dias de completar 25 anos na semana de lançamento do trabalho, então é natural falar com certo tom de arrogância sobre mudar com o passar do tempo. O piano de Rick Wakeman dá o tom de faixa e o vocal de Bowie é impecável para passar essa mensagem. Na faixa seguinte, Bowie assume o piano para cantar a poderosa balada "Oh! You Pretty Things" sobre a poderosa união entre os alienígenas e os jovens, o futuro da nação. É possível perceber certa influência do ocultista Aleister Crowley, autor que o músico mostrou muito interesse ao longo dos anos 1970.

Na sequência vem a balada muito melancólica chamada "Eight Line Poem" em que Bowie está no piano, e a guitarra Mick Ronson surge para chorar no final. É uma bonita faixa, mas superável quando os primeiros versos de "Life on Mars?" surgem. Nascida após o compositor ouvir "My Way", canção de Paul Anka famosa na voz de Frank Sinatra, a letra fala sobre um jovem que vai escondido ao cinema e começa a se questionar se existe outro tipo de vida fora da Terra. Do arranjo clássico ao tom da voz, é dessas canções que fazem qualquer um chorar -- rápido comentário: foi a primeira canção que ouvi, na BBC Radio 6, quando anunciaram a morte dele há cinco anos.

Em homenagem ao nascimento do primeiro filho, Zowie (hoje o famoso diretor Duncan Jones), Bowie escreveu uma faixa à la Neil Young. Os dois músicos competiriam entre si nas paradas de sucesso ao longo de toda década de 1970 -- e Young não ficaria atrás ao tentar "imitar" os passos do concorrente em "Trans". E para fechar o lado A, "Quicksand" surge com as perguntas: o que significa existir? O que vem depois da morte? Basicamente, são perguntas sem respostas, mas não para Bowie, que abre a segunda parte do disco falando sobre isso. A canção traz uma sonoridade muito parecida com "All Things Must Pass" (1970), disco de George Harrison, em que o produtor Ken Scott foi engenheiro de som.

Para responder a pergunta do final do lado A, Bowie lançou mão da única composição não escrita por ele no álbum. "Fill Your Heart", de Biff Rose e Paul Williams, fala sobre ser mais espontâneo, livre e aceitar o desconhecido, algo assustador para todos os seres humanos. É uma bonita canção com tom meio jazz que abre com o verso "Fill your heart with love today / Don't play the game of time / Things that happened in the past / Only happened in your mind / Only in your mind / Oh, forget your mind". Essas reflexões partiram das viagens de Bowie pelos Estados Unidos e também geraram duas homenagens a grandes nomes dos anos 1960 na música e nas artes. A primeira foi para Andy Warhol na canção que leva seu nome. O início estranho e experimental soa como uma prévia do que o músico tentaria no futuro -- ele mandou uma cópia da música ao artista que nunca revelou se havia gostado ou não. A segunda é para Bob Dylan em "Song for Bob Dylan", em que a referência a "Song to Woody", canção de Dylan para o ídolo Woody Guthrie gravada em 1962, é bastante clara.

Uma das motivações para a nova fase de Bowie foi o Velvet Underground. E para homenageá-los, principalmente a Lou Reed, o cantor inglês gravou "Queen Bitch", bastante parecida com as canções da banda. Esse estilo de composição apareceria com mais força em "The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars" (1972). Para encerrar o álbum, a soturna "The Bewlay Brothers" traz o cantor falando um pouco mais sobre a relação com o meio-irmão mais velho. Esquizofrênico, Terry Burns passaria boa parte da vida em casas de recuperação e cometeria suicídio em 1985.

A jornada como músico profissional havia sido cheia de altos e baixos para David Bowie, mas a coisa mudaria de figura a partir de "Hunky Dory". Mais aceito entre o público e cada vez mais reconhecido entre os críticos, a carreira dele daria um enorme salto e partiria para coisas incríveis em uma década que pôde chamar de sua.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - "Changes" (3:37)
2 - "Oh! You Pretty Things" (3:12)
3 - "Eight Line Poem" (2:55)
4 - "Life on Mars?" (3:43)
5 - "Kooks" (2:53)
6 - "Quicksand" (5:08)

Lado B

1 - "Fill Your Heart" (Biff Rose / Paul Williams) (3:07)
2 - "Andy Warhol" (3:56)
3 - "Song for Bob Dylan" (4:12)
4 - "Queen Bitch" (3:18)
5 - "The Bewlay Brothers" (5:22)

Gravadora: RCA
Produção: Ken Scott e David Bowie
Duração: 41min50s

David Bowie: vocal, guitarra, saxofone tenoe e alto; piano em "Oh! You Pretty Things" e "Eight Line Poem"
Mick Ronson: guitarra, vocal, mellotron e arranjos
Trevor Bolder: baixo e trompete
Mick Woodmansey: bateria
Rick Wakeman: piano
Ken Scott: engengeiro de gravação e mixagem

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