Discos para história: Mars Audiac Quintet, do Stereolab (1994)

História do disco

“A música do Stereolab pode frequentemente ser bastante impenetrável e densa no médio alcance. Há muitos detalhes em todos os lugares. Nós dois [ele e o produtor Bo Kondren] estávamos muito interessados ​​em preservar esse aspecto do som e, ao mesmo tempo, tentar melhorar um pouco a resolução e a profundidade”, disse o guitarrista Tim Gane, em texto no encarte da edição remasterizada de “Mars Audiac Quintet”, lançada há poucos meses.

Gane faz uma análise precisa de como é o som do Stereolab, grupo anglo-francês com muita inspiração na música avant-garde e no pop francês. Por isso, acaba sendo impossível definir o som deles de alguma maneira, dada essa mistura de sons tão cativante, aliada com o vocal sedutor da companheira e outra metade Lætitia Sadier. E isso seria importante para traçar uma linha entre antes e depois. No caso, lançado em 2 de agosto de 1994, o álbum marcou o fim da chamada primeira fase.

O terceiro álbum de estúdio vinha em um momento de crescimento dentro e fora do estúdio, principalmente pela união de Sadier e Gane em conceber todas as letras e arranjos. Eles se conheceram em 1988, quando ela foi assistir a banda dele, chamada McCarthy. Desiludida com a carreira musical na França, lugar cheio de tédio e exibicionismo barato para ela, viu no guitarrista alguém com força musical o suficiente para deixá-la encantada.

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“Eu vi o poder da música, através das letras, para mudar o mundo. O rock britânico é muito mais interessante, muito mais rico e mais próximo da realidade: o pub, com um local, e você faz um ‘show’. Na França, você faz um ‘concerto’, e você está em um pedestal”, contou, em entrevista ao site do jornal “The Guardian”.

Para eles, o encaixe era difícil no início dos anos 1990. Tinham uma vocalista francesa e não soavam como as bandas da primeira era do britpop. Quase sem guitarras, não eram grunge para serem encaixados na nova onda da música americana. Também era difícil encaixá-los na música alternativa, já que eles soavam mais artísticos e mais inspirados pelo krautrock alemão dos anos 1970. Mesmo com toda essa dificuldade imposta pelor rótulos dados pelas equipes de marketing, o Stereolab seguia em crescimento. O EP “Jenny Ondioline”, lançado em 1993, estreou na 73ª posição da parada britânica, sendo o primeiro lançamento a conseguir o feito.

Com o estúdio sendo um lugar para brincar o máximo possível, Sadier e Gane começaram como dupla, mas logo viram que ter mais gente poderia encorpar ainda mais o som e as ideias. Foi com uma pequena ajuda dos amigos, principalmente Sean O'Hagan (que trabalharia pela última vez como integrante fixo) e Mary Hansen (morta tragicamente, em 2002, após ser atropelada por um caminhão), que eles entraram em estúdio entre março e abril de 1994 para gravar o novo álbum de inéditas.

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Perto dos 30 anos, ou com a idade já completa, os integrantes do Stereolab entendiam cada vez mais a profundidade dos problemas do mundo na época, com as guerras no Oriente Médio, a guerra civil na Iugoslávia e outras coisas que, infelizmente, ainda não pararam de acontecer. E só o fatalismo de uma geração que começava a ver surgimento de outra que, pronta para dar as cartas, poderia ser usado como mote da maioria das composições. Em entrevista recente ao site da revista “Jacobin”, Sadier explicou a concepção das letras da banda na época.

“É difícil para mim dizer por que escrevo certas coisas, mas, especialmente com Stereolab, havia mais escuridão do que suspeitava inicialmente. Éramos muito sérios sobre o que fazíamos. Era nossa maneira de dar sentido às nossas vidas e de sermos autônomos. E, claro, sempre fui muito, muito sensível à maneira como o mundo está indo e, de fato, desde que nasci, está piorando. Sempre senti que poderíamos nos organizar um pouco melhor, e não estou falando de uma sociedade utópica onde todos são legais e o sol brilha todas as manhãs — só quero dizer: ‘Espere um minuto: podemos fazer isso um pouco melhor para funcionar para mais gente neste planeta’”, contou.

Também em outra longa entrevista, agora para o site “Ele-King”, de 2018, a cantora contou que a tentativa em escrever era conseguir uma mensagem para conectar o mundo privado com o resto das pessoas.

“Sim, há uma dicotomia entre um mundo de egos e a sociedade. E eu queria que o trabalho lírico do Stereolab fizesse a ponte entre o íntimo e pessoal e a sociedade; onde a política começa e onde termina? Porque do jeito que via, era seremos o mais completos que pudermos, e para mim ser completo é falar sobre coisas que importam para mim. Algumas pessoas veem a música pop como um meio de escapar da realidade, então você fala sobre coisas sem sentido, ou ‘acerta as contas’ com alguém, ou expressa o mundo de sentimentos em torno de um relacionamento”, começou.

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“Também exploro coisas emocionais — isso não foi excluído. Pareceu-me apenas que falamos sobre coisas importantes, porque há o suficiente acontecendo lá fora que podemos discutir ou pelo menos questionar, porque muito do que falava nas minhas letras eram apenas perguntas para mim mesma. Mesmo a capitalista, a individualista, tudo isso é algo que eu podia sentir dentro de mim. Era como, ‘não, eu também posso ser esse monstro, e eu gostaria de questionar isso”, finalizou.

A partir de “Mars Audiac Quintet”, o Stereolab decolou de vez nas paradas ao conseguir a 16ª posição na semana de lançamento do Reino Unido e a segunda na parada alternativa. E quarenta anos depois, o álbum ainda tem força e potência nessa transição entre o experimental, a discussão política da época e a inevitável pegada pop que apareceria com força nos álbuns seguintes. Eles eram indefinidos e, ao mesmo tempo, definiam os rumos de uma música que inspiraria centenas de artistas nos anos seguintes.

Crítica de “Mars Audiac Quintet”

É difícil não conectar o Stereolab com o krautrock logo na primeira faixa de “Mars Audiac Quintet”. “Three-Dee Melodie” começa com o teclado dando o tom e o vocal seguindo a onda em uma letra de filosófica e reflexiva. Depois surge “Wow and Flutter” que soa simples a princípio, mas é cheia de camadas para falar que a influência de determinados países no mundo não irá durar para sempre — ela fala, especialmente, dos Estados Unidos. É aquela música que entra na brincadeira em estúdio e em experimentar o máximo possível até chegar em algo satisfatório.

Um dos hits da carreira da banda, “Transona Five” mistura a levada do pop francês com elementos eletrônicos em uma batida insistente ao longo de cinco minutos e meio de duração (“They are one of the same/ Two inevitables, two inevitables/ We can't avoid dying/ Bursting through our barriers/ They are one of the same/ They are one of the same”). Um dos grandes momentos de destaque da vocalista Lætitia Sadier está em “Des étoiles électroniques”, quando a suavidade em que elas diz as palavras é apaixonante.

“Ping Pong” é aquela música animada e feita para dançar, até que você presta atenção na letra e vê uma forte crítica, de forma irônica, ao ciclo da política no capitalismo em guerras sem sentido e alimentando o desemprego para gerar a demanda por salários mais baixos — transformando menos de 1% da população mundial em bilionários. E ninguém pode reclamar (“It's alright, 'cause the historical pattern has shown/ How the economical cycle tends to revolve/ In a round of decades, three stages stand out in a loop/ A slump and war, then peel back to square one and back for more”).

O lado experimental retorna com força total em “Anamorphose” e “Three Longers Later”, em uma sequência de músicas cantadas em francês com tom bastante melancólico, principalmente na segunda — um protesto contra a retirada de homens das famílias para lutar nas guerras. E uma crítica pesada ao moralismo chega em “Nihilist Assault Group”, com uma agitada guitarra aparecendo com força pela primeira vez em uma faixa que tem a cara do período e com uma virada de ritmo surpreendente nos minutos finais.

A homenagem a Lucia Pamela, a primeira compositora a lançar um disco com uma viagem à lua como temática principal, vem na pop “International Colouring Contest”, com o clima sendo mantido na seguinte — a etérea “The Stars Our Destination”. E se “Transporté sans bouger” é um tanto estranha, “L'enfer des formes” retorna ao formato pop experimental grudento sobre como é difícil ser uma garota (“On s'en va comme des poltrons/ Vivant mal leur écartèlement/ Entre émotion et indifférence/ Entre révolte et dérision”).

Nos momentos finais do álbum, “Outer Accelerator” usa do ritmo lento para fazer um apelo contra as ditaduras, “New Orthophony” fala sobre a repressão e o fato do domínio do pensamento acrítico na prosperidade. Em comum, as duas têm letras curtas e longas partes instrumentais. E, para encerrar, “Fiery Yellow” é 100% instrumental, uma grande viagem sonora que condiz com o espírito do Stereolab da época.

“Mars Audiac Quintet” é um álbum sólido em todos os aspectos. Das letras cheias de mensagens fortes até o jeito como eles trabalham os instrumentos, o Stereolab pode se considerar pai e mãe de vários artistas da atualidades, principalmente da quem não tem medo de ser verdadeiro e usar isso para transmitir uma boa mensagem a quem tira tempo para ouvi-los.

Ficha técnica

Tracklist:

1 - “Three-Dee Melodie” (5:02)
2 - “Wow and Flutter” (3:08)
3 - “Transona Five” (5:32)
4 - “Des étoiles électroniques” (3:20)
5 - “Ping Pong” (3:02)
6 - “Anamorphose” (7:33)
7 - “Three Longers Later” (3:28)
8 - “Nihilist Assault Group” (6:55)
9 - “International Colouring Contest” (3:47)
10 - “The Stars Our Destination” (2:58)
11 - “Transporté sans bouger” (4:20)
12 - “L'enfer des formes” (3:53)
13 - “Outer Accelerator” (5:21)
14 - “New Orthophony” (4:34)
15 - “Fiery Yellow” (Gane/ Sean O'Hagan) (4:04)

Todas as músicas foram compostas por Tim Gane e Lætitia Sadier, exceto a marcada

Gravadora: Duophonic/ Elektra
Produção: Stereolab
Duração: 66min57

Tim Gane: guitarra, órgãos Farfisa e Vox, sintetizador Moog e baixo
Lætitia Sadier: vocal, pandeireta, órgãos Mint's e Vox e guitarra
Duncan Brown:
baixo
Katharine Gifford: órgãos Farfisa e Vox, sintetizador Moog; vocal de apoio em “Transporté sans bouger”
Mary Hansen: vocal, guitarra, pandeireta e egg shaker
Sean O'Hagan: marimba, guitarra slide, arranjo de metais; guitarra twang em “Ping Pong”; guitarra tremolo em “International Colouring Contest”; percussão em “Fiery Yellow”
Andy Ramsay: bateria e percussão

Convidados:

Alan Carter: saxofone tenor e flauta
Vera Daucher: violino
Jean-Baptiste Garnero: vocal de apoio em “Transporté sans bouger”
Lindsay Low: trompete
Andy Robinson: trombone

Steve Rooke e Nick Webb: masterização
Stereolab: mixagem
Paul Tipler: engenheiro de som e mixagem

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