História do disco
“Nossa estética toca o paradoxal. Reflete a diluição e a fragmentação do indivíduo e a perplexidade dele diante das tecnologias emergenciais. Mas, ao mesmo tempo, trai um isolamento. A gente fala de coisas como estar ligado e, no entanto, o que nos dá mais força é o fato de não estarmos tão ligados assim, de termos que correr atrás da informação. Temos ainda o folclore, mas não conseguimos sintonizar a MTV”, disse o vocalista Fred Zero Quatro para “Folha de S. Paulo”, em entrevista publicada em 25 de fevereiro de 1994.
O início dos anos 1990 foi um marco muito importante para a música brasileira. De um lado, a geração da década anterior tinha poucos sobreviventes para contar a história, casos de Paralamas do Sucesso e Legião Urbana; do outro, havia um pessoal, inspirado no sucesso deles e pronto para voos mais altos. E em diversas partes do Brasil. De Norte a Sul, quase todo garoto ou garota queria ter uma banda, ou participar do efervescente movimento cultural local. No Recife não foi diferente.
A agitação levaria a criação de várias bandas ao longo da década de 1980 por parte de Fred Zero Quatro. Entre elas, a formação de um grupo pós-punk pré-Mundo Livre S/A chamado Serviço Sujo, inspirado pelas bandas do ABC paulista, e a banda de hardcore Câmbio Negro. Todas acabaram sendo massacradas pela mídia local por diversos motivos — roupas e estilo musical foram alguns deles.
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A reação a tudo isso foi a fundação do Mundo Livre S/A, nome inspirado em uma fala do então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, que vivia dizendo que o país era o “líder do mundo livre”, contrastando com a União Soviética. A partir disso, começou o trabalho duro para se firmar na cena, agora rejeitados por serem “traidores do movimento” punk. São três trocas de integrantes até a estabilizar, mas nada de profissionalismo. Tudo era feito do jeito que dava e na raça mesmo.
O tempo passou e duas coisas fundamentais para história do rock de Recife aconteceram, mudando para sempre a vida deles e de outros, caso dos amigos da Nação Zumbi liderada por Chico Science. A primeira foi o manifesto chamado “Caranguejos com Cérebro”, escrito pelo próprio Zero Quatro que, entre outras coisas, abriu caminho para o movimento manguebeat (ou manguebit, como ele mesmo prefere) ganhar tração nacionalmente e se consolidar no âmbito regional. A segunda foi o convite do Banguela Records para lançar o primeiro álbum.
O verbete da Wikipedia sobre a gravadora diz: “Banguela Records foi um selo fonográfico da gravadora Warner Music Brasil criada por integrantes da banda Titãs e pelo produtor Carlos Eduardo Miranda no início dos anos 1990”. Mas não faz jus à loucura que foi aquilo tudo. Para começar, a indecisão inicial levou Miranda a dar uma entrevista para André Forastieri, então editor-chefe da Ilustrada, na “Folha de S. Paulo”, afirmando que o selo estava certo e seria lançado em breve, mesmo sem nada de concreto. Foi o primeiro passo de um projeto muito louco, que não deu em nada comercialmente falando, mas foi fundamental para música brasileira do período.
Tudo começou quando Miranda, então repórter da revista “Bizz”, ganhou a missão de olhar as novas cenas musicais pelo Brasil. Quando recebeu as fitas e as fotos das bandas de Recife, não pensou duas vezes em colocá-los em destaque em uma edição, incentivando ele e os Titãs a partirem para essa aventura. E uma das bandas contratadas foi o Mundo Livre S/A que, na época, estava com tudo certo para gravar um álbum, 100% independente. E todo mundo ali era fã da banda desde o primeiro momento em que a demo chegou. Eles não iriam perdê-los. E não perderam.
Mais discos dos anos 1990:
Discos para história: Diary, do Sunny Day Real Estate (1994)
Discos para história: Calango, do Skank (1994)
Discos para história: Dummy, do Portishead (1994)
Discos para história: La Era de la Boludez, do Divididos (1993)
Discos para história: Last Splash, das Breeders (1993)
Discos para história: Gabriel O Pensador, de Gabriel O Pensador (1993)
A contratação se deu por pura simpatia dos integrantes dos Titãs e de Miranda pela banda, que os viam mais próximos deles do que a Nação Zumbi, contratada pela Sony pouco tempo antes. Além disso, foi consenso que, musicalmente naquele momento, soavam mais interessantes e mais ousados. Quem se ofereceu para ser o produtor de “Samba Esquema Noise” foi o baterista Charles Gavin, uma das pessoas mais presentes no dia a dia do Banguela. Ele queria implementar a mesma atitude de gravação acumulada com anos de experiência, mas não era muito simples, mesmo com o Mundo Livre com um bom repertório em mãos — como o caso do baterista Fábio, que só gravava com a presença de Miranda no estúdio.
Com o tempo e muito trabalho, as coisas foram se ajeitando, principalmente quando a cobrança da Warner, gravadora parceria no negócio, e dos outros integrantes dos Titãs chegaram com força. Eles passaram meses no estúdio, algo completamente fora da curva já naquela época — foram 660 horas de estúdio, o triplo do orçamento inicial. Gavin, ainda que irritado com atrasos, erros e outras coisas, segurou as pontas, sempre com Miranda como uma espécie de fiel escudeiro e fiador do talento de quem estava gravando. E tudo também era uma imensa festa, dado o grande número de participações especiais de amigos, conhecidos e agregados presentes nas gravações, afinal ninguém é de ferro.
“O orçamento era pequeno, e aí quem acabava de gravar o disco ia voltando para Recife. Mas, depois que os Raimundos estouraram (com seu disco de estreia, no Banguela), a gravadora Warner deu carta-branca e fomos fazer mais faixas. Quem gravou o baixo de ‘Sob o calçamento’ foi o Nando Reis (então dos Titãs, que também havia participado da estreia da banda de Brasília). Aliás, para gravar essa música, o Miranda chamou metade dos percussionistas de São Paulo e passou três noites no estúdio, só enchendo a parte percussiva”, contou Zero Quatro, em entrevista ao “O Globo”.
Veja também:
Discos para história: Crucificados pelo Sistema, do Ratos de Porão (1984)
Discos para história: O Romance do Pavão Mysteriozo, de Ednardo (1974)
Discos para história: Clifford Brown & Max Roach, de Clifford Brown & Max Roach (1954)
Discos para história: Ain't That Good News, de Sam Cooke (1964)
Discos para história: Morning Phase, de Beck (2014)
Discos para história: The Libertines, do Libertines (2004)
O grande trunfo dessa nova geração de músicas era a ousadia musical e vontade em querer fazer acontecer. Com as próprias referências e sem medo, eles foram para cima, sem abdicar das próprias convicções. “Samba Esquema Noise” foi considerado o melhor álbum do período, levando os principais prêmios da revista ‘Showbizz” de “Melhor Disco”, “Melhor Letrista” (Fred Zero Quatro) e “Banda Revelação”. Em retrospectiva, eles conseguiram melhor combinar música, protesto e visão de futuro, sendo impossível de definir o que é até hoje.
“É um disco manifesto, difícil de enquadrar em um público ou estilo. Tanto que é impossível definir se se trata de um disco de samba ou de rock. É um samba em outra frequência, em outra linguagem”, explicou o vocalista, também para o jornal de São Paulo.
Crítica de “Samba Esquema Noise”
Com referência ao álbum “Samba Esquema Novo”, de Jorge Ben ainda sem o Jor, “Samba Esquema Noise” apresenta o manguebeat ao mundo com “Manguebit”. Inegavelmente, a produção de Charles Gavin ajudou o Mundo Livre S/A a potencializar dois elementos fundamentais: a percussão e as letras de Fred Zero Quatro. Não tem como não ficar empolgado logo de cara. Um dos pontos não lembrados ou não notados é como eles são muito melódicos nas baladas, caso da romântica com um toque de safadeza “A Bola Do Jogo”.
“Livre Iniciativa”, ainda que discretamente em um samba animado, fala sobre a vida do trabalhador comum e vida imposta pelo capitalismo já selvagem há 30 anos, tema também abordado de maneira mais clara em “Saldo De Aratu” (“Me deito pensando... (x2)/ Me deito pensando em minha namorada/ Mas logo na memória serei três dígitos/ Sinalizando quanto resta/ Me lembram que eu não valho nada”).
A inspiração do punk chega na pesada “Uma Mulher Com W...Maiusculo”, uma declaração de amor para Wania cheia de segundas intenções (“Wania, por exemplo, tinha um W enorme/ Wania tinha um W, mas um W imenso”), enquanto a brilhante “Homero, O Junkie” aborda assuntos reais e brutais com um brilhantismo e uma sagacidade pouco vistas na música brasileira atual. E se a etérea “Terra Escura” leva o ouvinte em uma grande viagem, “Rios (Smart Drugs), Pontes & Overdrives” começa de um jeito e vira um reggae cheio de ritmo e psicodelia.
Mas não tem jeito, mesmo 30 anos depois, “Musa Da Ilha Grande” é a grande música de “Samba Esquema Noise”. É aquela grande canção pop que representa bem a geração dos anos 1990: uma mistura de ritmos sem qualquer pretensão de soar parecido com o que veio antes, mas uma coisa totalmente nova, muito boa e sensual sem ser vulgar. E o acerto é ainda maior quando “Cidade Estuario” chega na sequência e eleva a potência desse pedaço em particular do álbum.
“O Rapaz Do B...Preto” funciona para encaminhar o ouvinte para a parte final, com destaque para o clássico cavaquinho de Fred Zero Quatro a pleno vapor. O clima vira com a pesada, na letra e na melodia, “Sob O Calçamento (Se Espumar é Gente)” (“Por si só não vira asfalto/ Entre o concreto e o Pirelli cheira cola/ Molha a carne, gruda, o sangue escorre/ Onde há calçamento pode crer que havia mangue”) e encerra com a reflexão da faixa-título (“Ou você explora o próximo/ Ou o próximo é você”).
Se o Banguela não teve longevidade por inúmeros motivos, acabou ajudando no desenvolvimento de vários artistas. O Mundo Livre S/A foi um deles ao fazer de “Samba Esquema Noise” um dos álbuns mais importantes do período e fundamental para entender uma época de efervescência musical, criatividade e uma invencibilidade que só a juventude pode oferecer.
Ficha técnica
Tracklist:
1 - “Manguebit”2 - “A Bola Do Jogo”
3 - “Livre Iniciativa”
4 - “Saldo De Aratu”
5 - “Uma Mulher Com W...Maiusculo”
6 - “Homero, O Junkie”
7 - “Terra Escura”
8 - “Rios (Smart Drugs), Pontes & Overdrives”
9 - “Musa Da Ilha Grande”
10 - “Cidade Estuario”
11 - “O Rapaz Do B...Preto”
12 - “Sob O Calçamento (Se Espumar é Gente)”
13 - “Samba Esquema Noise”
Gravadora: Banguela Records
Produção: Carlos Eduardo Miranda e Charles Gavin
Duração: 57min41
Fred Zero Quatro: vocais, guitarra, cavaquinho, bendir, violão, guitarra e vocal de apoio
Bactéria: órgão, piano, sintetizador Mini-Moog e teclados
Chefe Tony: bateria
Otto: bongôs, agogô, pandeiro, ganzá, surdo, tamborim e congas
Fábio Goró: baixo
Miranda: piano, congas, ruídos e efeitos
Charles Gavin: pandeiro, arranjo de metais, batidas e barulhos
James Muller: triângulo, bongôs
Nando Reis: baixo
Syang: guitarra
Naná Vasconcelos: berimbau, efeitos, voz, assobio, caxixi, chocalho,
Malu Mader: vocais de apoio
Chico Amaral: saxofone tenor, arranjo de metais
João Vianna: trompete, arranjo de metais
Gilmar, Ligeirinho e Toca: congas
Dengue: caxixi
Apollo IX: efeitos
Canhoto e Gira: percussão
Sérgio Boneka: rap
Paulo Miklos: sample
Alex Antunes: fita
Nasi, Skowa, Ana Lucia Faria, Gastão Moreira, Johnny Monster, Sérgio Boneka, Tatiana Kwiezynski, Nando Machado: vocais de apoio
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