Discos para história: Ain't That Good News, de Sam Cooke (1964)

História do disco

Em 12 abril de 1965, apenas quatro meses após a morte de Sam Cooke, as Supremes lançaram o álbum “We Remember Sam Cooke”, trabalho com dez músicas gravadas pelo cantor ao longo de quase 15 anos de carreira. A grande surpresa do álbum foi Florence Ballard, não Diana Ross, encerrar com a potente “(Ain’t That) Good News”, um dos sucessos do trabalho de mesmo nome lançado pelo cantor pouco mais de um ano antes. Elas chegaram na quinta posição da parada R&B com a homenagem e mostraram a força de composições eternizadas na cabeça das pessoas pelos anos seguintes.

“Na Igreja Batista Mount Sinai, em Los Angeles, uma multidão de 5 mil pessoas, algumas das quais chegaram cinco horas antes da última cerimônia programada, invadiu as instalações projetadas para acomodar 1.500 pessoas. Num ambiente cheio de emoção, super carregado pelo canto de Lou Rawls, Bobby Blue Bland e Arthur Lee Simpkins, as mulheres desmaiaram, as lágrimas correram pelas faces dos homens e os espectadores gritaram. A cantora gospel Bessy Griffin, que apareceria no programa fúnebre, ficou tão angustiada que teve de ser carregada. Ray Charles saiu da plateia para cantar e tocar ‘Angels Keep Watching Over Me’”, publicou a ‘Ebony Magazine’, na edição de fevereiro de 1965.

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Foi a primeira de muitas homenagens pelos meses e anos seguintes de fãs famosos e admiradores ferrenhos de uma obra que ganhou tons políticos e melancólicos com dois acontecimentos marcantes para Cooke: a luta pelos Direitos Civis e a morte do filho de três anos, afogado na piscina de casa. O período sem trabalhar, de luto pela perda, o fez olhar com atenção os movimentos políticos na música americana. O então jovem Bob Dylan o impressionou profundamente com “Blowin' in the Wind”, presente no LP “The Freewheelin' Bob Dylan”, de 1963. Dessa inspiração, saiu “A Change Is Gonna Come”, feita quando ele foi preso após uma confusão com um gerente de hotel que recusou a recebê-lo com a banda.

A canção, assim como as muitas outras preparadas para um novo disco, vinha na esteira do contrato assinado antes da gravação de “Night Beat”, outro grande sucesso da carreira. Com mais liberdade na gravadora, ele decidiu, ao retornar ao trabalho em novembro de 1963, que o controle criativo significava ousar mais no estúdio. Além dos amigos de longa data, Cooke queria arranjos de cordas, naipe de metais e falar mais do que apenas ficar com mulheres a noite toda em boates em baladas românticas. O repertório passou 100% por ele pela primeira vez na carreira, convencido de ser uma grande chance para falar de outros assuntos e explorar outros gêneros musicais.

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Por todos esses motivos, o estúdio da gravadora RCA estava sempre cheio de gente no horário agendado pelos produtores Hugo Peretti e Luigi Creatore, ambos parte do novíssimo acordo, assinado pouco mais de um ano antes. Eles passariam os dias gravando standards, soul, R&B, country, gospel e tudo mais que eles quisessem fazer, inspirados pelos dois volumes de “Modern Sounds”, lançados por Ray Charles em 1962.

Se no estúdio ele estava cada vez mais ousado nas temáticas, a luta pelos Direitos Civis também era assunto fora dali. Amigo do boxeador Muhammad Ali, o ativista Malcolm X e do jogador de futebol americano Jim Brown, ele era cada vez mais ativo e pronto para usar a fama para conseguir atrair mais gente por mais direitos e menos repressão da comunidade afroamericana. Ao mesmo tempo, ele temia alienar o público branco devido ao posicionamento político.

Lançado em fevereiro de 1964, “Ain't That Good News” chegou apenas na 34ª posição da parada americana, nem perto do sucesso dos trabalhos anteriores. Em certa medida, Cooke acertou quando sentiu que os brancos não receberiam bem as novas músicas. Por outro lado, ele não viveu para ver o sucesso de “A Change Is Gonna Come”, hino das passeatas pró-Direitos Civis e lançada como single duas semanas após a trágica morte dele em 11 de dezembro de 1964.

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“Em muitos aspectos, este é um tributo aos talentos desenvolvidos de Sam Cooke. Como intérprete habilidoso e polido que era, Cooke poderia pegar qualquer tipo de material musical e trazê-lo para o público, de modo que significasse alguma coisa”, escreveram Hugo & Luigi, nas notas de relançamento de “Ain't That Good News”, publicadas pela primeira vez em 2003.

O último álbum de Sam Cooke vislumbrava, ao menos em um primeiro momento, um artista livre para criar e cada vez mais presente na luta política por mais direitos para a própria comunidade. Seis décadas após o lançamento, a música dele ainda vive e ressoa em cada vez mais gente, mostrando ao mundo que os gênios são eternos.

Crítica de “Ain't That Good News”

A faixa-título abre o LP de maneira animada, com ritmo e letras contagiantes do início ao fim (“Ain't that news?/ Ain't that good news?/ Man, man, man ain't that news?/ My baby's comin' home tomorrow/ Ain't that good news?/ Man ain't that news?”). A seguinte, “Meet Me at Mary's Place”, foi inspirada em um promotor gospel em Charlotte, Carolina do Norte, onde grupos gospel costumavam ficar e traz a mistura do gênero religioso com uma pitada de soul.

“Good Times” (“Come on and let the good times roll/ We gonna stay here till we soothe our souls/ If it take all night long/ One more time/ Come on and let the good times roll/ We gonna stay here till we soothe our souls/ If it take all night long”) e “Another Saturday Night” apresentam o lado mais nostálgico do compositor, em canções que poderiam fazer parte de qualquer trabalho anterior com facilidade, mas, aqui, ganham um tratamento especial pelo arranjo encorpado em estúdio.

“Rome Wasn't Built in a Day” foi gravada pela primeira vez em 1959 por Johnny Russel, mas Cooke só gravou essa balada lançante de tons românticos em 1964 e conseguiu fazer parecer inédita aos olhos e ouvidos dos fãs. De Pee Wee King e Redd Stewart, o country de “Tennessee Waltz” é a grande surpresa do lado A do disco por ganhar um tratamento especial e também por soar como se fosse de Cooke, um feito e tanto para uma música lançada pela primeira vez em 1948.

Quando a orquestra toca as primeiras notas, é hora de preparar os lenços para “A Change Is Gonna Come”, abertura da segunda parte do disco. Inspirada em Bob Dylan e fruto de seu tempo, a letra é profundamente melancólica ao usar muito bem a mistura de gospel e soul que colocou o cantor entre os melhores de todos os tempos. É muito difícil não sair emocionado da audição (“It's been a long/ A long time comin', but I know/ A change gon' come/ Oh, yes it will”).

Depois dessa pedrada emocional, ele opta por manter o tom sóbrio no lado B apenas com standards da música americana, uma bela homenagem ao cancioneiro popular de quando ele era criança. Começando com a melancólica “Falling in Love”, passando pela releitura de “Home” até chegar em outro grande momento do trabalho: “Sittin' in the Sun”, de Irving Berlin.

Os arranjos clássicos de “There’ll Be No Second Time” dão ao álbum a elegância que só Sam Cooke teve na música, deixando para a versão de “The Riddle Song”, uma canção de ninar dos colonos ingleses que acabou adotada pela tribo dos Apalaches e uma homenagem ao filho do cantor, encerrar o LP (“I gave my love a cherry that had no stone/ I gave my love a chicken that had no bone/ I gave my love a ring that had no end/ I gave my love a baby with no cryin'”).

O sucesso tardio de “Ain't That Good News” colocou Sam Cooke no panteão dos gigantes da história da música popular americana. Considerado um dos grandes ainda em vida e elogiado por gente do calibre de Aretha Franklin, ele conseguiu unir as influências de sempre com ousadia nos arranjos e um repertório eclético. Infelizmente, foi o último álbum da carreira dele, mas uma despedida em grande estilo para alguém que poderia fazer mais. Muito mais.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - “Ain't That Good News” (Sam Cooke) (2:30)
2 - “Meet Me at Mary's Place” (Sam Cooke) (2:44)
3 - “Good Times” (Sam Cooke) (2:28)
4 - “Rome Wasn't Built in a Day” (Sam Cooke, Beverly Prudhomme, Betty Prudhomme) (2:34)
5 - “Another Saturday Night” (Sam Cooke) (2:42)
6 - “Tennessee Waltz” (Pee Wee King, Redd Stewart) (3:12)

Lado B

1 - “A Change Is Gonna Come” (Sam Cooke) (3:13)
2 - “Falling in Love” (Harold Battiste) (2:45)
3 - “Home” (Jeff Clarkson, Harry Clarkson, Peter van Steeden) (2:32)
4 - “Sittin' in the Sun” (Irving Berlin) (3:18)
5 - “There’ll Be No Second Time” (Clifton White) (3:03)
6 - “The Riddle Song” (Traditional) (2:30)

Gravadora: RCA Victor
Produção: Hugo & Luigi
Duração: 33min25

Sam Cooke: vocal
Chuck Badie, Buddy Clark, Ray Pohlman, Clifford Hils, Eddie Tilman: baixo
Joseph Gibbons: banjo
Hal Blaine, John Boudreaux, Edward Hall, Earl Palmer: bateria
Norman Bartold, Le Roy Crume, Barney Kessel, John Pisano, Allen Reuss, Howard Roberts, Clifton White: guitarra
Emil Richards: marimba, percussão e timpano
Linwood Mitchell: percusssão
Harold Battiste, Ray Johnson: piano
Lincoln Mayorga: piano, celesta
William Hinshaw: trompa
Jewell Grant, William Green, Plas Johnson, Edgar Redmond, Red Tyler: saxofone
Milton Bernhart, Ernest Tack, David Wells, John Halliburton, Harry Betts, Louis Blackburn, Streamline Ewing: tromobne
John Anderson, Melvin Lastie: trompete
Jesse Ehrlich, Emmet Sargeant: violoncelo
Harry Hyams, Alexander Neiman: viola
Israel Baker, Robert Barene, Arnold Belnick, John DeVoogdt, William Kurasch, Irving Lipschultz, Leonard Malarsky, Jack Pepper, Ralph Schaeffer, Sid Sharp, Darrell Terwilliger, Tibor Zelig: violino
James Bryant, Gwenn Johnson, Carol Lombard, Robert Tebow, George Tipton, Jackie Ward e The Soul Stirrers:
vocal de apoio
René Hall: maestro

Dave Hassinger: engenheiro de gravação

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