Discos para história: Soda Stereo, do Soda Stereo (1984)

História do disco

Pela bagatela de 320 reais no Mercado Livre, é possível comprar o álbum de estreia dos argentinos do Soda Stereo, considerado por muitos a maior e melhor banda da história da América Latina. É não é para menos. Lançado em 27 de agosto de 1984, o álbum foi o primeiro passo da ‘sodamanía’ pela Argentina e, pela facilidade da língua, pelos outros países vizinhos pelos anos seguintes. Gustavo Cerati (vocal e guitarra), Zeta Bosio (baixo) e Charly Alberti (bateria) viraram verdadeiros fenômenos musicais e estão nas coleções e corações dos fãs até hoje.

Como toda banda, alguma coisa aconteceu um pouco antes para dar o impulso decisivo para mudança de vida. E não que eles não estivessem na cena há algum tempo. Em 1980, Cerati fundou o grupo Sauvage, que misturava covers com composições próprias, mas sem muita repercussão. Estudante de publicidade na Universidad del Salvador desde o final dos anos 1970, acabou conhecendo Bosio durante as aulas e acabou entrando na banda dele, The Morgan, que contava com outro futuro grande nome da música argentina: Andrés Calamaro, que ainda entraria em outra banda com ambos, chamada Proyecto Erekto. O Morgan, com um pequeno sucesso, seria a gênesis da banda Los Abuelos de Nada, outro grande grupo de rock do período.

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“Demorou um pouco para nos tornarmos amigos. Ainda saí com meus colegas do ano anterior, mas já percebemos termos muito em comum. Ele era fã de toda a cena new wave e pós-punk, quefazia covers com minha banda”, contou Bosio, em entrevista dada para “Rolling Stone Argentina” em 2012.

Bosio estava cansado do fracasso e de passar de grupo em grupo sem qualquer objetivo ou foco no futuro. Ele queria viver de música e sentiu o mesmo em Cerati. Foi quando a amizade entre eles se fortaleceu. Inspirados pela new wave, com o The Police como o maior e mais famoso trio daquela época, pelo new romantic, movimento cultural e musical nascido na Inglaterra no final dos anos 1980, e com aquele quê de comentário social, eles queriam ir além. Na época, o mundo passava por uma série de transformações importantes em vários setores, afetando a forma de ouvir música e trazendo o termo “consumir” para conversa.

O chamado rock latino soube aproveitar do lançamento de uma MTV Latina para cobrir do México ao Uruguai, gerando uma troca de informações nunca vista. O processo de digitalização das gravações também foi importante ao baratear o lançamento de singles e demos de bandas novas, passo importante para dar esperança a quem buscava uma oportunidade na indústria. E, claro, a chegada (com uns sete anos de atraso) do movimento punk e do pós-punk (uns quatro anos atrasado) contribuíram para efervescência da música local.

Motivados com todos esses fatores, a dupla de amigos saiu em busca de um baterista. Então vem uma das melhores e mais espetaculares histórias, dessas que qualquer roteirista seria prontamente acusado de forçar a barra para encaixar a chegada de um importante personagem. Charly Alberti, filho do baterista de jazz Tito Alberti e famoso por composições infantis de sucesso até hoje, conseguiu o telefone de María Laura Cerati, irmã de Gustavo. Um dia, ao ligar, acaba conversando com Cerati sobre música e a vaga no grupo foi citada. Uma semana depois, ele fez o teste e entrou para formar, até o momento, um trio.

“Nós e tivemos que colocá-lo [Charly] um pouco no ritmo, porque o Gustavo e eu estávamos ouvindo as mesmas bandas, analisando-as, e tínhamos certeza de onde iríamos. Demos a ele para ouvir todas as músicas que gostávamos para que ele pudesse incorporá-las e se desenvolver”, contou Bozio, também para “Rolling Stone”.

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O próximo passo era definir um nome. Taras Bulba, Los Pelitos, Rockefort, Aerosol, Side-Car, Extra, Estéreo e Estereotipos foram citados até o consenso em Los Estereotipos vencer. E outra coisa era definir a sonoridade. Correndo de qualquer comparação com o Police, eles passaram a procurar outro músico. O problema é que nem eles sabiam direito o que queriam. Mais um guitarrista? Um tecladista? Um saxofonista? Um tocador de bongô? O guitarrista Richard Coleman chegou a ser integrante por quatro meses, mas sentiu não haver uma conexão entre eles, pediu para sair e avisou: “tem que ser vocês três”. Ainda assim, uma demo foi gravada com os quatro com uma importante mudança: Soda Stereo, um refinamento de Soda y Stereo, era oficialmente o nome do agora trio.

O primeiro show com o novo nome não deu em nada mais uma vez, frustrando as expectativas. Mas, uma semana depois, acabaram sendo convidados para uma residência no Stud Free Pub, onde podiam tocar covers e aprimorar o material original. Ali, tocando todas as noites, eles aprenderam muito sobre a música underground e o trabalho duro para tentar chamar atenção de alguém. E conseguiram. Horacio Martínez, caçador de talentos da gravadora CBS, viu um show e propôs que assinassem um contrato com eles praticamente em cima do palco. Só havia uma condição: eles precisariam ganhar mais experiência de palco antes de entrar em estúdio. Isso era final de 1983.

“Todos os grupos que surgiram naquela época eram muito diferentes dos que já existiam e também eram diferentes entre si. O Soda Stereo foi um dos últimos a chegar, já que essa ‘renovação’ do rock argentino começou no segundo semestre de 1982. A diferença é que eram decididamente new wave e dentro do estilo tinham muito ska. Mas logo eles sofreram uma mutação [no álbum seguinte, ‘Nada Personal’]”, disse Sergio Marchi, jornalista e biógrafo de Gustavo Cerati, ao site “La Tercera”.

Enquanto isso, as demos com “¿Por qué no puedo ser del Jet-Set?” e “Te hacen falta vitaminas” rodavam a programação alternativa das rádios e começavam a fazer sucesso nas danceterias de Buenos Aires. Com a democracia a ponto de virar uma realidade sólida para substituir a cruel e sanguinária ditadura militar, o Soda Stereo acabou virando um representante dessa nova onda misturada com os ares da liberdade recém-conquistada. Os shows estavam abarrotados a ponto de os contratantes pedirem para o cachê deles subir para cobrar mais caro nos ingressos e evitar a superlotação dos locais.

Um dos diferenciais do Soda Stereo ao longo dos anos foi a imagem passada ao público. Com ajuda de Alfredo Lois, considerado o quarto integrante, eles trabalharam como poucos os visuais de cada um e deram um passo ousado a gravar o clipe de “Dietético” antes mesmo do lançamento do disco. Com relação ao repertório, após horas e horas de conversas, ensaios e apresentações, não havia mais dúvida, mas a CBS encrencou e o acordo ficou por um fio de ir pelo ralo.

A gravadora exigiu um álbum de covers da banda mexicana Los Teen Tops como primeiro álbum de estúdio. A resolução só veio com a interferência de Federico, Marcelo e Julio Moura, integrantes da banda Vírus, e do empresário deles, Carlos Rodríguez Ares. Ao vê-los ao vivo, eles tinham a certeza de algo especial. Ares, fingindo ser representante deles, intercedeu na CBS e ficou tudo bem. Agora era, finalmente, entrar em estúdio para gravar o álbum de estreia. E Ares virou o empresário o trio no dia seguinte.

Como toda banda iniciante, salvo se você é um nepobaby, o estúdio é reservado no horário que dá. Nenhum novato, tirando se você é filho de algum bastião da MPB cheio de influência, tem prioridade. O tempo no local era escasso e não havia um técnico de som fixo para ajudar com qualquer ideia. Por isso, a presença de Federico Moura na produção — ideia de Ares para acalmar os executivos — foi fundamental. E não como algum gênio do estúdio que tirava coelhos da cartola para melhorar as músicas, praticamente prontas. Ele atuava mais como um conselheiro por estar acostumado a trabalhar assim com o Vírus desde sempre. Também fundamentais foram o tecladista Daniel Melero e o saxofonista Gonzalo Palacios. Sugeridos por Moura para encorpar mais o som, os dois se tornaram figuras fundamentais no futuro do Soda Stereo — Melero trouxe “Trátame suavemente”, um dos hits da banda, nos momentos finais da gravação do álbum de estreia para preencher uma lacuna.

“Vimos que os temas estavam muito bem feitos, bem montados. Talvez a contribuição tenha sido ajudá-los na experiência de gravação e também colocar alguns teclados para trazer à tona um pouco daquela coisa de The Police que eles tinham. Acho que eles conquistaram a identidade muito rapidamente”, afirmou Marcelo Moura, para “Rolling Stone”.

Da capa ao som, o Soda Stereo não tinha vergonha de soar pop e mostrar todas as referências. Em 1º de outubro, a festa de lançamento oficial aconteceu na rede de fast food Pumper Nic, um lugar extremamente popular na época. Dois meses depois, a ousada apresentação de “Sobredosis de TV”, no teatro Astros, marcou para sempre uma geração de fãs que abraçou o Soda Stereo para sempre.

“Acho que o Soda Stereo viveu um presente contínuo em 1984, imerso no pop e na estética do momento: tinham um frescor irreverente, pouco ligado ao passado do rock argentino. Não foram os únicos, claro, havia o Vírus e Charly García havia apontado o caminho com os ‘Clics Modernos’. É revelador que Soda apresentou seu álbum de estreia no Pumper Nic, um restaurante fast food, em sintonia com suas músicas que falavam sobre jet set [grupo com poder aquisitivo], overdose de televisão, produtos dietéticos, afrodisíacos e vitaminas. Eles abraçaram sua época, do som do The Police à moda, sem escrúpulos ou culpa”, explicou o jornalista Sergio Cancino ao “La Tercera”.

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Eleitos banda do ano, foram atração do festival Rock in Bali, em Mar del Plata, quando conheceram Alberto Ohanian. Impressionado com a presença de palco e força das músicas, se ofereceu para ser empresário deles e colocá-los em uma turnê nacional como atração principal e mais aparições em programas de TV. Eles toparam. A ‘sodamania’ começava.

Quarenta anos depois, a estreia em estúdio do Soda Stereo mostra um trio jovem, mas pronto para conquistar o mundo. Ainda que o material não consiga representar a força das músicas ao vivo, “Soda Stereo” tem bom humor, crítica social e a estética certa para três pessoas que estavam no momento certo para representar uma juventude inquieta e com uma necessidade de se expressar de alguma forma. Foi o primeiro passo para eternidade.


Crítica de “Soda Stereo”

Logo na abertura do álbum de estreia, o Soda Stereo tira sarro dos ricos argentinos com “¿Por qué no puedo ser del Jet-Set?”, faixa dançante com ar pós-punk de letra repetitiva, inspirada nas colunas de fofoca da TV e nas propagandas de carros de luxo e um dos primeiros sucessos do trio ainda em uma versão inicial, quando ainda nem havia possibilidade do lançamento do trabalho. Outro sucesso inicial, “Sobredosis de T.V.” traz o vício em assistir televisão mesmo após a perda da mulher amada em uma música cheia de ritmo, com a bateria dando o tom do início ao fim e pequenos elementos, como eco e o sintetizador, preenchendo os espaços.

A brincadeira com o cansaço e falta de energia deu a ideia para composição de “Te hacen falta vitaminas”, um rock simples de letra bobinha e inspirado nos primórdios do gênero, lá nos anos 1950, também feita para colocar o pessoal para dançar. Mas a chave vira completamente na balada melancólica “Trátame suavemente”, uma ode ao fato de que o homem também precisa de carinho e atenção para ser feliz. Aqui pode ter sido a inspiração para o álbum seguinte, mais complexo musicalmente e com letras mais profundas. Frederico Moura acertou muito ao sugerir a gravação e ao deixá-los livres para criar em cima da letra pronta, sem exigir apenas uma regravação.

Com o ar new wave da época, “Dietético” tem duas interpretações. A mais óbvia é sobre encerrar qualquer pressão estética vinda da mídia e das modelos na busca pelo corpo perfeito. A outra é que a letra esconde o tom político para falar sobre o fim do regime (atentem a palavra regime) militar e da influência da cultura americana nos jovens para fechar a primeira parte do álbum. E a última parte da letra abre para essa interpretação dúbia ao gritar “¡El régimen se acabó, se acabó!”.

A dança retorna na bobinha “Tele-Ka”, uma ideia de como seria se fosse possível mexer qualquer objeto através da mente, e na potência do baixo com teclado e sintetizadores de “Ni un segundo”, quando a velocidade da mudança é o tema central. E “Un misil en mi placard” chega para avisar que ficar sempre de olho ao redor é importante para não ser passado para trás. Essa sequência traz um Soda Stereo brincando mais com as letras, ironias e piadas ao usar o cotidiano como base. A banda mostra uma solidez incrível nessas três faixas.

A tentação e manutenção do poder, simbolizados por Dorian Gray, fazem de “El tiempo es dinero” uma das letras mais sérias e pesadas dessa primeira leva de canções gravadas. Depois chega a direta “Afrodisíacos”, que não precisa de muita coisa para entender exatamente os acontecimentos. E a divertida “Mi novia tiene bíceps” encerra o álbum em um momento alto-astral e cheio de energia (“Mi novia es dinamita/ Que dulce criatura/ Extraño su belleza/ Yo soy un complemento de sus pesas”).

O Soda Stereo conseguiu fazer do álbum de estreia um marco no rock argentino dos anos 1980. Ainda que mais inexperientes com relação aos contemporâneos, eles conseguiram sintetizar bom humor com grandes momentos musicais e passar uma imagem de uma nova Argentina nascendo após os anos de chumbo.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - “¿Por qué no puedo ser del Jet-Set?” (Cerati/ Alberti) (2:20)
2 - “Sobredosis de T.V.” (4:10)
3 - “Te hacen falta vitaminas” (Cerati/ Bosio) (2:38)
4 - “Trátame suavemente” (Daniel Melero) (3:24)
5 - “Dietético” (3:46)

Lado B

6 - “Tele-Ka”(2:26)
7 - “Ni un segundo” (Cerati/ Bosio) (3:25)
8 - “Un misil en mi placard” (3:04)
9 - “El tiempo es dinero” (2:54)
10 - “Afrodisíacos” (Cerati/ Bosio) (4:20)
11 - “Mi novia tiene bíceps” (Cerati/ Bosio/ Alberti) (2:23)

Todas das músicas foram compostas por Gustavo Cerati, exceto as marcadas

Gravadora: Discos CBS International
Produção: Federico Moura
Duração: 34min46

Gustavo Cerati: vocal, vocal de apoio e guitarra
Zeta Bosio: baixo e vocal de apoio
Charly Alberti: bateria

Daniel Melero: teclado e sintetizadores
Federico Moura: sintetizadores
Gonzalo Palacios: saxofone

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