Discos para história: Autobahn, do Kraftwerk (1974)

História do disco

Em 1964, o pesquisador e inventor Robert Moog lançou ao mundo o sintetizador Moog, um trambolho enorme que ocupava um espaço razoável em qualquer sala. Era um parto vendê-lo e apenas pessoas com muito dinheiro, viciados em tecnologia ou universidades podiam comprá-los. Por isso mesmo, boa parte dos experimentos com o instrumentos começaram com estudantes de matemática e física, que faziam contas e mais contas para conseguir tirar algum som do instrumento. Não havia nada artístico nisso. Era pura ciência.

O lucro das vendas só viria mesmo no início dos anos 1970, com o revolucionário Minimoog. Como o próprio nome diz, era uma versão menor do sintetizador e abriu um mundo de possibilidades para músicos e curiosos explorarem o instrumento conectado ao teclado. Foi uma verdadeira revolução na indústria. E isso bateu lá na Alemanha Oriental, com uma dupla de amigos que trabalhava junta há algum tempo, mas ainda lutava por uma identidade musical.

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“Kraftwerk não é uma banda. É um conceito. Nós o chamamos de ‘Die Menschmaschine’, que significa ‘a máquina humana’. Nós não somos a banda. Eu sou eu. Ralf é Ralf. E Kraftwerk é um veículo para nossas ideias”, explicou Florian Schneider, em entrevista para revista “Rolling Stone”, em 1975.

Ralf Hütter e Florian Schneider se conheceram no Conservatório de Dusseldorf quando ainda eram estudantes de música clássica e não demoraram muito para formar o Kraftwerk. Entre idas e vindas com diversos outros músicos, os primeiros álbuns de estúdio foram lançados (“Kraftwerk” e “Kraftwerk 2”) e eram muito mais experimentos musicais instrumentais do que qualquer outra coisa que os deixariam conhecidos no futuro. A coisa só mudou mesmo com “Ralf und Florian”, de 1973.

“Ouvíamos muita coisa eletrônica. Fomos criados na escola clássica de música de Beethoven, mas estávamos cientes de uma cena musical contemporânea e, claro, uma cena pop e rock. Mas onde estava nossa música? Encontrar nossa voz, foi para isso que usamos o gravador. Ele nos fez usar vozes sintéticas, personalidades artificiais, todas essas ideias robóticas”, contou Hütter à “Uncut”, em 2016.

Eles não abandonaram o lado experimental, mas partiram para uma nova abordagem com o uso da bateria eletrônica, do sintetizador e do vocoder, instrumento que sintetiza a voz humana. A influência dos Estados Unidos batia forte neles, com MC5 e The Stooges sendo os preferidos daquele momento em que a música eletrônica ainda engatinhava no âmbito comercial. Em 1974, dois passos fundamentais ajudariam a mostrar ao mundo o poder dessa música.

Há pouco mais de 50 anos, Konrad Plank, muito mais do que um simples engenheiro de som, comprou um sintetizador Minimoog, fundamnetal para a dupla conseguir unir a própria sonoridade com o apoio de Klaus Röder nos instrumentos de cordas e Wolfgang Flür na bateria — Röder entrou no grupo por um motivo muito peculiar: ele construiu o próprio violino, que tinha um som muito diferente do habitual. O outro passo foi a mudança de visual. Saiu o uso de roupas desleixadas para um corte de cabelo formal, acompanhado por um belo terno e gravata. A elegância da música clássica e o teor pop começavam a ganha mais e mais força dentro e fora do estúdio.

“Ralf tinha uma espécie de ideia alemã em mente. A Alemanha também precisava de algo como os Beach Boys. Algo com autocompreensão e presença imaculada, depois das guerras feias que nossos pais infligiram ao mundo. Algo positivo e jovem, que nos libertasse do fedor do passado”, revelou Flür, também para revista inglesa.

No verão daquele ano, o agora quarteto se mudou de Düsseldorf para o estúdio de fazenda recém-comprado por Plank, em Wolperath, na região sudeste de Colônia, para trabalhar nas músicas e concepção do novo disco, que já trazia a base da faixa-título — pensada durante a última turnê da ainda dupla.

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“Estávamos em turnê e aconteceu que acabamos de sair da autobahn depois de uma longa viagem e quando chegamos para tocar, tínhamos essa velocidade em nossa música. Nossos corações ainda batiam tão depressa que todo o ritmo ficou muito rápido”, contou Schneider para o site “The Quietus”. Assim, ruídos, barulhos e todo tipo de som na autoestrada foram gravados ao longo dos meses.

Com total liberdade no estúdio, eles puderam experimentar e brincar com Minimoog, um sintetizador EMS, um ARP Odyssey e outros sintetizadores antigos que, unidos com instrumentos analógicos, criaram uma sonoridade ainda não explorada na Alemanha da época. Segundo eles, o país era muito americanizado depois da Segunda Guerra Mundial, com os pais e avós com vergonha de mostrar qualquer sentimento alemão mais profundo. Isso se reflita na música pop local, cheia de músicas em inglês e com temática genérica.

“Autobahn era sobre encontrar nossa situação artística. Onde estamos? Qual é o som alemão [do pós-guerra]? Porque naquela época as bandas tinham nomes em inglês e não usavam a língua alemã.”, disse Hütter, ainda para “Uncut”.

Para mostrar como existia um sentimento de não esquecer o passado, mas tirar o peso para seguir em frente, a capa original traz um Mercedes preto, carro preferido da elite nazista, saindo da imagem, enquanto o fusca, usado pelo povo da época, parte em direção ao horizonte — cheio de possibilidades para a nova geração nascida no pós-guerra.

“O entretenimento alemão foi destruído e o povo alemão foi roubado de sua cultura, colocando uma cabeça americana nela. Acho que somos a primeira geração nascida após a guerra a se livrar disso”, explicou Hütter, em entrevista ao jornalista Lester Bangs.

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Lançado em 1º de novembro de 1974 na Alemanha, “Autobahn” era o terceiro disco com a Philips e conseguiu chegar na sétima posição das paradas. Ao ser disponibilizado no Reino Unido e nos Estados Unidos no início do ano seguinte, eles ficaram ainda maiores com a quarta e quinta posição nas paradas, respectivamente, devido ao sucesso de uma versão de pouco mais de três minutos e meio da faixa-título. A grande curiosidade é que a edição britânica, da Phonogram, recebeu uma capa com o logotipo de uma rodovia nas cores azul e branco, não o desenho original. Posteriormente, essa edição seria o padrão dos relançamentos.

A popularização da música eletrônica estava começando e “Autobahn” foi fundamental nesse processo. Desprezado pelos críticos alemães e cheios de comentários xenófobos nos Estados Unidos em entrevistas e resenhas do álbum, o Kraftwerk fez a sincera escolha de fazer música para si e se desenvolver a partir disso, não em agradar aos outros. Acabou virando um fenômeno duradouro e inspiração para todo um movimento musical que colocava um pouco de lado as guitarras e partia para novas sonoridades em possibilidades infinitas. A invenção de Robert Moog encontrava na juventude alemã do pós-guerra um propósito muito maior do que ele jamais pensaria uma década antes.

Crítica “Autobahn”

Inspirados pelos Beach Boys que, para eles, é o símbolo eterno dos anos 1960 na Califórnia, “Autobahn” é uma representação da Alemanha na época, do surgimento de uma nova geração sem os traumas das anteriores, para sempre abaladas pelas guerras do início do século XX. A mistura de elementos eletrônicos, como o sintetizador Minimoog e o vocoder, com a flauta e a guitarra ajudam a tornar a faixa mais pop do que qualquer outra coisa feita por eles no período, além de conseguir apresentar o elemento da viagem de várias maneiras — no sentido de deslocamento e no sentido musical.

A letra em alemão também é outro fator fundamental, algo pouco feito na música pop local da época, por vergonha da origem do próprio povo. Ao unir tudo isso em uma música com mais de 22 minutos, a primeira parte do álbum fez do Kraftwerk um sucesso inesperado na Europa e nos Estados Unidos graças ao lançamento de single bem mais curto — algumas rádios tiveram a ousadia de tocá-la na íntegra nessa grande homenagem ao povo alemão, a indústria local e aos sons do dia a dia do país.

O lado B, diferentemente da primeira parte, dialoga muito mais com os três primeiros álbuns de estúdio. Mas, ao ouvir essas faixas, é possível perceber o passo além no trabalho de composição. Há certo peso no uso dos instrumentos, mas, com mais possibilidades em estúdio, eles avançaram no entrelaçamento sonoro. “Kometenmelodie 1” é sombria, já “Kometenmelodie 2” traz um quê de alegria com o uso dos sintetizadores e da bateria eletrônica dando o tom do início ao fim.

“Mitternacht” apresenta o lado clássico da formação de Ralf Hütter e Florian Schneider em uma peça claramente inspirada em uma ópera, com início, meio e fim. Barulhos e uso dos efeitos colocam o ouvinte dentro desse ambiente, como se estivessem esperando a entrada dos cantores para dar início ao espetáculo. E a flauta é bem presente em “Morgenspaziergang”, com traços de música medieval e do folclore alemão.

Um antes e depois na música alemã, “Autobahn” mostrou que o uso dos sintetizadores na música pop era um caminho sem volta. Para o Kraftwerk, foi o início de uma longa e firme carreira, cheia de admiração e inspiração para quem veio depois deles ao mostrar que não era impossível lançar e fazer sucesso com uma música com mais de 22 minutos de duração. O mundo das possibilidades musicais ganhava uma nova estrada.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - “Autobahn” (22:47)

Lado B

2 - “Kometenmelodie 1” (“Comet Melody 1”) (6:26)
3 - “Kometenmelodie 2” (“Comet Melody 2”) (5:47)
4 - “Mitternacht” (“Midnight”) (3:45)
5 - “Morgenspaziergang” (“Morning Walk”) (4:02)

Gravadora: Philips
Produção: Florian Schneider & Ralf Hütter
Duração: 42min27

Ralf Hütter: vocal, efeitos, sintetizadores, órgão, piano, guitarra e bateria eletrônica
Florian Schneider: vocal, vocoder, sintetizadores, efeitos e bateria eletrônica.
Wolfgang Flür: percussão; bateria eletrônica em “Kometenmelodie 1-2”
Klaus Röder: violino e guitarra; violino elétrico em “Mitternacht”

Konrad Plank: engenheiro de som

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