Discos para história: The Libertines, do Libertines (2004)

História do disco

Quem vê o Libertines liderar a parada musical do Reino Unido pela primeira vez em 20 anos, com “All Quiet On The Eastern Esplanade”, não tem ideia de como a banda de Carl Barât (vocal de guitarra) e Pete Doherty (vocal e guitarra) era conhecida pela instabilidade dentro e fora dos palcos. Não à toa, Doherty entrou e saiu de reabilitações em um período razoável de tempo e, por diversas vezes, quase morreu. Mesmo com todos esses problemas, eles fizeram muito sucesso no início dos anos 2000.

Com os Strokes sendo a cara de uma nova geração de bandas, um movimento importante se consideramos que o pop havia invadido a MTV nos anos anteriores e soterrou o rock na programação a algo esporádico e de nicho, a Inglaterra precisava de uma resposta rápida para “Last Nite”. O Libertines parecia ideal. A conexão entre Barât e Doherty foi quase imediata quando apresentados por Amy-Jo Doherty, irmã de Pete, ao ponto de ambos abandonarem as respectivas faculdades de Artes Dramáticas e Literatura para morarem juntos em um apartamento no final dos anos 1990.

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A busca pelo sonho bateu em administrações ruins, shows fracassados e falta de apoio, até que o sucesso das guitarras nas paradas fez Banny Poostchi, então advogado da Warner Chappell Music Publishing, reconsiderar a posição de empresário deles, abandonada pela primeira vez pouco tempo antes. O nome Libertines, homenagem ao livro do Marquês de Sade chamado “Lusts of the Libertines”, era famoso na cena e a formação com John Hassall no baixo e Gary Powell na bateria começava a ganhar corpo em 2001, quando o antigo baterista foi dispensado.

Poostchi tinha um plano bem ousado para os padrões da época: fazê-los assinar com a Rough Trade, uma das melhores e mais legais gravadoras até hoje. Assim como Andrew Loog Oldham fez com Mick Jagger e Keith Richards ao trancá-los em uma sala até sair com uma música, ele colocou Barât e Doherty para trabalhar até ter canções boas o suficiente. Com apoio de James Endeacott, então trabalhando na prospecção de bandas e artistas, eles fizeram um show para os chefões da gravadora em 10 de dezembro. Duas semanas depois, estavam contratados e lançaram o primeiro álbum, “Up the Bracket”, em 14 de outubro de 2002. Foi um sucesso.

Mas as gravações não foram fáceis, com Doherty começando o uso pesado de drogas, faltas nos ensaios e nos shows. À medida que o tempo avançava, o comportamento dele ficava cada vez mais errático ao ponto de Barât bater o pé: ou ele ficava limpo, ou estava expulso da banda. Em represália, Pete roubou o apartamento do amigo, foi detido e acabou condenado a seis meses de prisão — posteriormente, a sentença foi reduzida para dois meses. E quem estava na porta para recebê-lo de braços abertos? O velho amigo Carl.

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Empolgados com a liberdade, ainda que tardia, eles fizeram apresentação no pub Tap'n'Tin, em Chatham, na cidade de Kent, feita no dia da soltura do vocalista, considerada a melhor do ano pela ‘NME’. Foi o pequeno passo para uma aclamada turnê ao longo de todo ano de 2003, com lugares esgotados e brigas por ingressos. Foi uma ótima despedida para Poostchi que, cansado de lidar com a banda, entregou o cargo com gosto para Alan McGee, fundador da Creation Records e conhecido por assinar com o Oasis alguns anos antes.

Em meio a tudo isso, eles começaram a planejar o segundo álbum de estúdio e contaram com a produção de Bernard Butler, guitarrista do Suede. Os dias passaram, e a relação dele com Doherty só piorava. Barât desenvolveu uma espécie de paciência para lidar com os rompantes do amigo, mas nem todo mundo tinha ou queria aguentar a falta de profissionalismo no estúdio, para falar o mínimo. Após poucas sessões, Butler pediu o boné.

Era difícil controlar o vocalista, ainda mais com toda atenção dada a ele após o grupo receber o ‘NME Awards’ de Melhor Banda do Ano com apenas um lançamento no ano, o single “Don't Look Back into The Sun”. E ele ainda gravou os vocais de “For Lovers”, composta pelo amigo e poeta Peter ‘Wolfman’ Wolfe, que chegou na sétima posição da parada no Reino Unido. Wolfman e Doherty dividiam muitas coisas, principalmente as drogas pesadas, como cocaína e heroína. Barât dava apoio às gravações, mas estava cada vez mais afastado do amigo.

A segunda tentativa para gravar o novo álbum de estúdio teve o retorno Mick Jones, ex-The Clash, produtor de boa parte das músicas da estreia. Agora, além de orientá-los em estúdio e buscar o melhor para cada música, Jones também precisava apartar as brigas entre Doherty e Barât. A solução? A gravadora contratou quatro seguranças para separá-los durante o período e impedir uma tragédia. Apesar dos pesares, o trabalho foi finalizado, mas o vocalista não participou da mixagem ou dos overdubs. Seria a última vez dele em um estúdio de gravação com a banda em mais de uma década.

A partir desse momento, Pete começou as entradas e saídas da reabilitação. Em uma das mais famosas, ele entrou em 14 de maio, saiu poucos dias depois, retornou e saiu novamente em 7 de junho. Isso fez Carl pensar, mas não sem dar uma chance ao amigo: se ele ficasse limpo, o Libertines teria uma chance de continuar na ativa. Mas havia um problema: o sucesso dos Babyshambles convenceu o vocalista de que ele não precisava dos outros para ter uma carreira na música.

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Lançado em 30 de agosto de 2004, “The Libertines” trazia na capa uma foto do primeiro show da banda logo após Pete Doherty sair da prisão e falava sobre o relacionamento cheio de altos e baixos dos dois amigos. O álbum estreou na primeira posição da parada no Reino Unido e é considerado um dos melhores lançados naquele início dos anos 2000. Mas isso não seria suficiente para dar ao grupo a tão desejada longevidade na indústria.

Com mais dúvidas do que certezas, Barât estava tocando a banda sem o amigo, tentando se limpar das drogas em um retiro na Tailândia e se afastando de todos por quase um ano. Em 17 de dezembro de 2004, em Paris, na França, o Libertines fez o último show em quase uma década e encerrava, de maneira melancólica, o novo furacão da música britânica. Era um fim inegavelmente triste, representado pela capa com a fotografia de dois amigos se abraçando, em um tempo que não voltou nunca mais. Mas que, de alguma maneira, foi eternizado em um álbum inesquecível para quem viveu aqueles dias de sexo, drogas e rock.


Crítica de “The Libertines”

Um dos grandes hinos do período, “Can't Stand Me Now” abre “The Libertines” falando do primeiro dos muitos rompimentos entre Carl Barât e Pete Doherty de forma muito sincera um com o outro ao melhor estilo Fleetwood Mac e com um dos melhores refrões daqueles dias, preenchidos com a MTV Brasil, agonias adolescentes e um futuro pela frente (“Oh, you can't stand me now, no you can't stand me now [x4]”).

A inspiração do punk aparece na agitada e simples “Last Post On The Bugle”, já “Don't Be Shy” ganha por começar logo no refrão e jogar o ouvinte na diversão logo de cara com o vocal bêbado de Doherty. E se “The Man Who Would Be King” traz um relato quase em tempo real de como era o Libertines durante o período mais turbulento em uma letra cheia de metáforas e referências, “Music When The Lights Go Out” apresenta o lado mais meloso da dupla.

Uma viagem pelo ego de ambos, “Narcissist” gruda o refrão na cabeça e é o suficiente para agradar (“They're just narcissists/ Well, wouldn't it be nice to be Dorian Gray?/ Just for a day/ They're just narcissists/ Oh, what's so great to be Dorian Gray/ Every day?”) e “The Ha Ha Wall” aborda o cansaço de Carl Barât em lidar com os problemas de Doherty e usa da metáfora de um muro construído pelo governo na época como representação da divisão de ambos na banda.

As poderosas reflexões em “Arbeit Macht Frei” e “Campaign Of Hate” são uma surpresa em meio a um trabalho tão pessoal, que abordar o uso de heroína em meio ao fim de um namoro em “What Katie Did” é um choque, em certo ponto — as duas primeiras poderiam ter sido lançadas em outro contexto, separadas do resto —, quando as coisas voltam ao normal, as referências e estilo tradicional inglês saem vitoriosos em uma balada delicada e melódica. Quase infantis, “Tomblands” e “The Saga” teriam funcionado muito melhor em um EP, ajudando a deixar o álbum mais enxuto, mas era o último grande momento da indústria da música antes de uns bons 15 anos na UTI, então discos muito longos eram normais no período.

O momento “Trainspotting - Sem Limites” do grupo chega em “Road To Ruin”, outra com uma parte melódica e refrão acima da média (“And all the pimps, punks, pederasts, jugglers and fools/ They drive me crazy, are climbing the walls/ Show me the way, the way to the store/ 'Cause I'm so sick, so sick of it all/ But when the penny drops”). Carl Barât e Pete Doherty encerram o álbum refletindo a própria relação e a finitude das coisas, fazendo de “What Became Of The Likely Lads” uma mistura de perdão com dúvidas sobre o futuro (“Oh, what became of the Likely Lads?/ What became of the dreams we had?/ Oh, what became of forever, though? [x2]/ We'll never know”).

Futuramente, o semanário ‘NME’ colocaria “The Libertines” entre os 50 melhores discos britânicos de todos os tempos em 2006 e na lista de 500 álbuns mais importantes da história sete anos depois. Quem viveu aquela época não ficou indiferente a eles e todas as loucuras noticiadas dentro e fora da música. Esse segundo álbum, uma pedrada emocional sobre juventude, amizade e derrocada, é um espelho para Carl Barât olhar para o passado e quase um obituário para Pete Doherty, indo contra todas as possibilidades e ainda vivo. Ouvi-lo duas décadas depois é não ficar indiferente ao Libertines daquela época, uma vitória para a longevidade não perseguida naquela juventude tão conturbada.

Ficha técnica

Tracklist:

1 - “Can't Stand Me Now” (Carl Barât, Mark Hammerton, Pete Doherty) (3:23)
2 - “Last Post On The Bugle” (Carl Barât, Michael Bower, Pete Doherty) (2:32)
3 - “Don't Be Shy” (3:03)
4 - “The Man Who Would Be King” (3:59)
5 - “Music When The Lights Go Out” (3:02)
6 - “Narcissist” (2:10)
7 - “The Ha Ha Wall” (2:29)
8 - “Arbeit Macht Frei” (1:13)
9 - “Campaign Of Hate” (2:10)
10 - “What Katie Did” (3:49)
11 - “Tomblands” (2:06)
12 - “The Saga” (Paul Roundhill, Pete Doherty) (1:53)
13 - “Road To Ruin” (4:21)
14 - “What Became Of The Likely Lads” (5:54)

Todas as músicas foram compostas por Carl Barât e Pete Doherty, exceto as marcadas

Gravadora: Rough Trade
Produção: Mick Jones
Duração: 42min04

Carl Barât: guitarra
Pete Doherty: vocal
John Hassall: baixo
Gary Powell: bateria

Mick Jones: mixagem
Bill Price: engenheiro de som e mixagem
Iain Gore: engenheiro de som assistente

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