Discos para história: Crucificados pelo Sistema, do Ratos de Porão (1984)

História do disco

“‘Crucificados pelo Sistema’ é o álbum de estreia da banda de hardcore punk brasileira Ratos de Porão”, diz o curto e pouco elucidativo artigo na Wikipedia em português sobre trabalho, que celebra 40 anos neste ano. O texto traz o básico do básico e pouco ajuda a entender qualquer coisa sobre o disco em si ou a época, quando nenhum dos integrantes da banda tinha perspectiva de gravar um disco, muito menos viver de música.

“O Crucificados a gente gravou e não sabia se ia ter outro disco depois daquele ali”, disse ao site da revista “NOIZE” o hoje guitarrista Jão, que na época tocou bateria na estreia em estúdio.

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Tudo ficou ainda mais difícil quando trocaram o punk pelo hardcore e metal na seleção das 16 músicas espalhadas em pouco menos de 20 minutos. Foram considerados traidores do movimento. “Aquele pé de galinha na capa, a gente começou a ser chamado de traidor ali”, contou o vocalista João Gordo, ao “Estado de S. Paulo”, último integrante a entrar na formação da gravação e um dos primeiros a sair quando movimento começou a arrefecer. “Quando o disco foi lançado, já não havia mais movimento punk. Acabou em briga, as bandas acabaram, outras ficaram mais pop. Até eu saí do Ratos”, continuou.

A vida não era simples para esse pessoal saído da periferia e indo para o centro de São Paulo se encontrar para trocar informações, fitas, usar drogas e beber muito álcool. Por exemplo, Jabá, primeiro baixista, havia saído da FEBEM (antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor, hoje Fundação Casa) por assalto a mão armada. Para eles, a música era uma maneira de sair por aí, lutar contra as pressões de dentro de casa e zoar por aí. Zoar muito por aí. Muito mesmo.

O início de tudo foi no começo dos anos 1980, quando Jão, guitarrista e vocalista, formou a banda com o baterista e primo Betinho, Jabá no baixo. Ninguém sabia de nada. Jão, após insistir muito, ganhou uma guitarra do pai e, com muito esforço próprio, conseguiu comprar de uma igreja evangélica uma bateria usada. E Jabá virou baixista por ter um visual parecido com Sid Vicious, ocupante da mesma posição no Sex Pistols. Organização de ensaios, cronograma e agenda de shows eram coisas inexistentes nesses primeiros dias. E durante alguns anos.

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A história do Ratos do Porão e dos integrantes é 100% ligada ao movimento punk em São Paulo, com a compilação “Grito Suburbano”, o festival “O Começo do Fim do Mundo”, no Sesc Pompeia, e o livro “O que é Punk”, de Antônio Bivar, sendo o triunvirato para entender uma época em que a informação chegava no Brasil uns oito meses atrasada.

Todo mundo era conhecido um dos outros, então formar uma grande galera era o normal e não era incomum uma mesma pessoa estar em duas ou três bandas ao mesmo tempo. Uma das pessoas que fazia parte desse grande grupo nada homogêneo era João Gordo, filho de policial militar recém-expulso de casa que estava escrevendo letras para a banda Extermínio. Ele conheceu o pessoal do Ratos durante a gravação da hoje cultuada coletânea “Sub”, também com Cólera, Psykóse e Fogo Cruzado — a produção era de um dos líderes do movimento, o vocalista Redson. Um dia, ele subiu no palco para fazer o vocal de apoio para a banda e mostrou desenvoltura e talentos incomuns para quem estava na plateia. Calhou de Bentinho, aos 16 anos, resolver casar e optar por trabalhar na borracharia do pai e abriu uma vaga. E quem eles queriam? João Gordo, mas ele teve dois convites para entrar em outras bandas.

Redson o convidou para tocar baixo no Cólera e ainda abriu a vaga de vocalista no Psykóse. Ele estava disposto a aceitar ambas até ser praticamente convocado para entrar no Ratos de Porão em março de 1983 — a estreia aconteceu três meses depois. O jeito de cantar e a influência do hardcore e do metal mudaram a história da banda, que logo começou a escrever as músicas do que seria o primeiro LP da carreira. E já com Mingau na guitarra e Jão na bateria.

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Um momento definitivo do grupo foi uma viagem malfadada até Salvador para um show. De fumar maconha ao longo de dois dias de viagens, tretas com desconhecidos e falta de pagamento, essa “excursão” foi a primeira grande experiência fora de São Paulo como banda. E foi um fracasso total. Mesmo assim, o Ratos era cada vez mais respeitado ao ponto de Fabião, da Punk Rock Discos, convidá-los para gravar um compacto. Como o preço de duas ou dez músicas era praticamente o mesmo, ainda mais para quem tinha poucas músicas no repertório, fecharam a gravação de um LP inteiro.

“Crucificados pelo Sistema” foi gravado com instrumentos emprestados de diversos artistas e com um técnico de som que não entendia picas de como gravá-los. Eles fizeram tudo em seis horas — para efeito de comparação, os Beatles gravaram o álbum de estreia no dobro do tempo. Mixaram no dia seguinte. Assim, contra todas as possibilidades e uma cena morrendo por inanição, o disco foi lançado em março de 1984, um ano depois da entrada de João Gordo.

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O excesso de brigas de gangues, principalmente a rivalidade entre o pessoal de São Paulo contra os punks do ABC, minou o movimento. Matérias e críticas pesadas na imprensa foram jogando a opinião pública, polícia e o governo contra todo e qualquer jovem que gostava e se vestia como os ídolos ingleses ou americanos. De saco cheio, João Gordo deixou o Ratos por querer cantar em uma banda de metal, Mingau ficou desiludido com a cena e se bandeou para o lado da new wave, e Jão reformou a banda com outras pessoas. O álbum nem teve festa de lançamento, como outros da época fizeram.

Apesar desse momento ruim e cheio de problemas pelo caminho, “Crucificados pelo Sistema” foi um marco importante na música nacional e para eles também, que retornariam pouco mais de um ano após o lançamento. O LP acabou sendo distribuído na Europa e nos Estados Unidos, sendo o marco zero do sucesso do Ratos de Porão em turnês pelo mundo e reconhecimento como uma das bandas mais importantes do rock brasileiro. E eles voltariam ainda mais pesados, com a influência do metal cada vez mais forte e importante em outro momento fundamental do rock brasileiro.

Crítica de “Crucificados pelo Sistema”

O repertório de “Crucificados pelo Sistema” é curto em tempo, mas uma porrada nas letras. Nos momentos finais da ditadura militar e com a abertura cada vez mais próxima, eles conseguiram tocar em feridas sensíveis e, em certo ponto, desabafar sobre determinadas situações. É importante lembram: eles eram jovens de 20 e poucos anos e sem estudo formal, preparados para ter uma profissão, ter um emprego das 8h às 17h e sobreviver com dignidade como muitos nos bairros onde eles nasceram fizeram e ainda fazem.

Com tudo isso, além da vida levada com muita bebida, drogas e noitadas, é difícil não os imaginar escrevendo letras como a de “Morrer” (“Tenho medo do presente/ Tenho medo do futuro/ E de tudo que nos cerca/ Sigo meu caminho/ Meu caminho é morrer!”) e a de “Caos” (“Esse mundo é um caos/ Essa vida é um caos/ Só nos resta morrer pra nos livrar desse caos/ Caos”) — tudo isso em menos de dois minutos. Por mais que eles não tivessem o conhecimento político e ideológico de Redson, eles tocaram em temas sensíveis em “Guerra Desumana” e, principalmente, em “Agressão/Repressão” (“É preciso mudar o sistema policial/ Porque eles estão matando a pau/ Gente inocente”).

Se a ditadura é assunto em “Obrigado a Obedecer”, “Asas da Vingança” e “Que Vergonha!” são um apanhado do noticiário da época. Nas três, o tom raivoso fica ainda mais evidente. A primeira parte termina com o grito “Poluição Atômica” (“O homem polui o ar/ Porque ele não consegue pensar/ O ser humano quer se autodestruir/ Não há solução, não há solução/ Pra essa poluição atômica!”).

O início da segunda parte faz uma conexão importante entre “Pobreza” e o “F.M.I.” (“O dólar aumenta e nossa dívida também (x2)/ E não há jeito de pagar/ Não adianta se desculpar”) — essa sigla causa arrepios para quem viveu os anos 1980 e 1990. A morte, como uma dos temas principais do álbum, retorna na quase instrumental “Só Pensa em Matar”, a mais longa com os pouco mais de dois minutos de duração. E os gritos de “Sistema de Protesto” e “Não Me Importo” são desabafos que condizem com a idade da época da gravação, em que gritar palavras de ordem era o mais importante.

Os três minutos finais do álbum apresentam “Periferia”, um retrato de como as coisas funcionavam em São Paulo nos anos 1980, o desabafo da faixa-título (“Nascer para liberdade e crescer para morrer”) e um dos retratos ainda condizente com a realidade atual em “Corrupção” (“A corrupção está acabando com a Nação/ E todo mundo está fingindo ser irmão”).

A diferença deles para quem começou junto ou até mesmo antes era a gana de vencer e viver de música quando todas as probabilidades jogavam contra, seja pelo preconceito das pessoas, desconfiança da própria família e uma cena que viveu aos solavancos e morreu sem qualquer organização. O Ratos de Porão é um sobrevivente, um monumento de uma época em que a força de vontade era o motor para fazer as coisas acontecerem. Estar aí até hoje é uma prova de amor pela música. E por eles mesmos.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - “Morrer” (1:24)
2 - “Caos” (0:16)
3 - “Guerra Desumana” (1:22)
4 - “Agressão/Repressão” (1:21)
5 - “Obrigado a Obedecer” (1:02)
6 - “Asas da Vingança” (1:12)
7 - “Que Vergonha!” (Olho Seco cover) (0:50)
8 - “Poluição Atômica” (0:59)

Lado B

1 - “Pobreza” (1:02)
2 - “F.M.I.” (1:13)
3 - “Só Pensa em Matar” (2:15)
4 - “Sistema de Protesto” (1:36)
5 - “Não Me Importo” (1:19)
6 - “Periferia” (1:01)
7 - “Crucificados pelo Sistema” (1:23)
8 - “Corrupção” (0:34)

Gravadora: Punk Rock Discos
Produção: Fábião
Duração: 18min45

João Gordo: vocal
Jão: bateria
Jabá: baixo
Mingau: guitarra

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