História do disco
“A fome ensina a gente a caçar. A gente viu que a situação estava feia. Foi a época das metáforas. A gente falava por meio das metáforas. E o público entendia”, disse Ednardo, em entrevista para o blog de Augusto Diniz no site da revista ‘Carta Capital’. O cantor, que ganhou um piano aos cinco anos, foi arrebatado pela música desde então, não parou mais e acabou sendo um dos artistas fundamentais da música brasileira nos anos 1970.
Quando os pais descobriram que ele largaria o curso de Engenharia Química a dois meses da formatura e um emprego na Petrobras, desses de ficar a vida inteira e garantir estabilidade e uma boa aposentadoria, eles não ficaram nada satisfeitos. Mas José Ednardo Soares Costa Sousa parecia estar destinado a fazer música desde a infância, talento aprimorado ainda na adolescência com aulas particulares. Ainda aprendeu a tocar violão sozinho e, aos 23 anos, já era um músico quase completo.
Ao começar a tocar na noite, conheceu uma série de artistas da mesma idade no Bar do Anísio, no bairro do Mucuripe, em Fortaleza. Fausto Nilo, Augusto Pontes, Fagner, Belchior, Amelinha, Rodger Rogério, Téti e Petrúcio Maia e Jorge Mello faziam parte dessa efervescência musical que transformou a vida da cidade e deles próprios em um futuro não muito distante, com muito encorajamento, compartilhamento de histórias e, principalmente, música.
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Foi essa galera da pesada, que não queria aprontar altas confusões, que partiu para região sul do país. Uns foram para Brasília, outros para o Rio de Janeiro e o restante fixou residência em São Paulo. E residência era uma palavra forte, porque todos eles chegaram nos lugares para morar de favor nas casas alheias. Ednardo passou pela capital carioca e uma das moradas era a casa da família da então jovem Fafá de Belém. Quando chegou em terras paulistas, em 1972, ele foi um dos muitos a ficar hospedado na casa do cineasta Mário Kuperman, na Oscar Freire, em Pinheiros. Um dia, nessas idas e vindas, conheceu o homem que mudaria a vida dele para sempre.
O produtor Walter Silva foi o responsável por colocá-los em contato com o radialista Júlio Lerner, apresentador do ‘Proposta’, da TV Cultura. Pela falta do MPB-4, acabou convidando Ednardo, Teti, Rodger Rogério e Belchior, todos residentes em São Paulo, como atrações pelas semanas seguintes. Como o próprio nome do programa diz, a ideia era ter até dez músicas prontas e gravadas para apresentar durante as entrevistas. Pela alta demanda, foi um período muito produtivo para todos eles. Lerner é o responsável por chamá-los de “Pessoal do Ceará”, nome que pegou para designar esse grupo de jovens músicos fortemente influenciados pelo regionalismo e pelo rock e folk vindo dos Estados Unidos e Inglaterra.
O resultado foi tão satisfatório, que Silva queria gravar um disco com todos eles, incluindo Fagner, mas ele e Belchior fecharam com Polygram e Chantecler, respectivamente, para os álbuns de estreia. Sobrou para Ednardo, Teti, Rodger Rogério e outros gravarem o hoje clássico “Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto Na Viagem”, gravado em 1972 e lançado no ano seguinte pela Continental, chamado à época de “Sgt. Peppers cearense”.
Para surpresa geral, ao longo daquele ano, o LP de estreia do trio vendeu 40 mil cópias. Assim, a carreira deles ganhou um impulso, ajudada pelos primeiros trabalhos de Fagner (“Manera Fru Fru, Manera”, 1972) e Belchior (“Belchior”, 1974). Ednardo pôde, durante boa parte de 1973, trabalhar no repertório do álbum de estreia, inclusive se inspirando na literatura de cordel ao lembrar de um conto chamado “Pavão Misterioso”.
Mais álbuns dos anos 1970:
Discos para história: Kimono My House, dos Sparks (1974)
Discos para história: Lóki?, de Arnaldo Baptista (1974)
Discos para história: Diamond Dogs, de David Bowie (1974)
Discos para história: Artaud, do Pescado Rabioso (1973)
Discos para história: New York Dolls, do New York Dolls (1973)
Discos para história: Pérola Negra, de Luiz Melodia (1973)
“Eu me lembrei que quando eu era pequeno eu tinha lido o cordel, o romance do Pavão, que falava justamente de um homem e o mecanismo de voo para alcançar uma princesa lindíssima, enclausurada. Quem é essa nossa princesa inacessível no momento, é a liberdade”, disse o cantor, em entrevista quando recebeu o Troféu Sereia de Ouro, uma homenagem para personalidades que contribuem para o desenvolvimento e projeção do Ceará.
Com o amigo Walter Silva na produção e gente do calibre do guitarrista Heraldo do Monte e os arranjadores Hareton Salvanini e Isidoro “Bolão” Longano, ele entrou em estúdio para gravar o primeiro LP da carreira solo, futuramente chamado “O Romance do Pavão Mysteriozo”, com músicos de altíssimo nível, lançado em 1974, pela RCA.
Naquele ano, Brasil vivia o último ano do governo de Emílio Garrastazu Médici, terceiro presidente da ditadura militar brasileira, responsável por caçar direitos políticos, torturar e matar opositores em quase 20 anos, e o primeiro de cinco anos de Ernesto Geisel no cargo. A censura apitava forte, com vários artistas e intelectuais ainda no exílio, mas isso não impediu Ednardo de gravar um álbum contando como um artista migrante, apesar de todas as dificuldades, tinha gana e coragem para vencê-las sem, segundo ele, caracterizar o trabalho como algo apenas nordestino.
“Hoje a música é universal, e quem vive numa grande capital, como eu, acaba recebendo todo tipo de influência. Além disso, estou sempre procurando informações novas e, embora conserve as raízes, creio que tenho muito mais a ver com o espírito de liberdade e o romantismo da lenda do cordel do pavão. E o espírito de liberdade é uma coisa que envolve todos nós”, falou, em entrevista para ‘Revista Amiga’, em outubro de 1974.
Veja também:
Discos para história: Clifford Brown & Max Roach, de Clifford Brown & Max Roach (1954)
Discos para história: Ain't That Good News, de Sam Cooke (1964)
Discos para história: Morning Phase, de Beck (2014)
Discos para história: The Libertines, do Libertines (2004)
Discos para história: Diary, do Sunny Day Real Estate (1994)
Discos para história: Ocean Rain, do Echo & the Bunnymen (1984)
Na época do lançamento, por falta de divulgação da gravadora, “O Romance do Pavão Mysteriozo” passou batido pelo público e recebeu poucas críticas, acabando com qualquer chance de sucesso imediato. Mas, dois anos depois, “Pavão Mysteriozo” foi tema de abertura da novela “Saramandaia”, mais um sucesso da Globo, e catapultou o LP e o artista aos primeiros lugares da parada - o álbum vendia algo próximo das 50 mil cópias por semana.
O produtor André Midani dizia que exista um tempo certo de maturação para cada artista, com o sétimo ano sendo fundamental para a carreira. E foi justamente esse período, dos encontros com outros artistas de idade próxima na terra natal até chegar em São Paulo de maneira definitiva, que Ednardo estourou para o Brasil com um álbum espetacular e marcante na criativa música brasileira dos anos 1970.
Crítica de “O Romance do Pavão Mysteriozo”
“Carneiro” abre o “O Romance do Pavão Mysteriozo” alimentando o sonho de deixar a terra natal em busca de uma oportunidade de alguma fama no Rio de Janeiro ao sonhar com o prêmio no jogo do bicho. Ao apresentar a faixa em ritmo de forró, Ednardo mostra os ritmos regionais muito presentes nas composições nesse primeiro momento da carreira. Em “Avião de Papel”, ele traz a despedida de casa sob a perspectiva da mãe, que dá conselhos e explica como as coisas funcionam nas “ruas largas”, nas coisas que os “homens práticos vão modificar” e que a “força maior está em você que nasceu”. E ainda pede para ele voltar para visitar porque “a gente sente saudades”.
A melancólica “Mais Um Frevinho Danado” é animada no ritmo, mas é quase um lamento ao ficar com a expectativa de reencontrar uma pessoa, com todo um fingimento de felicidade apenas pelo momento. A tristeza ganha um tom mais pesado com “Ausência”, uma balada para homenagear uma moça, com quem o cantor teve um caso ligeiro um dia, morta na guerrilha do Araguaia. A participação de Amelinha só aumenta o pesar da letra em uma homenagem emocionalmente brutal.
O jeito como Ednardo canta em “Varal” soa como uma poesia adaptada para uma música. O arranjo delicado, com a flauta, traz o lado tradicional do cancioneiro brasileiro misturado com a potência do naipe de metais e uma guitarra muito presente de Heraldo do Monte. O lado A termina com a sensual “Dorothy Lamour”, um tango em homenagem para atriz de mesmo nome, citada pela escritora Rachel de Queiroz como a “verdadeira personificação da beleza” no conto “Tangerine Girl”. Aqui, é quase uma ode adolescente a uma das mulheres mais bonitas da primeira metade do século XX.
Se a primeira parte são as lembranças da terra natal, a segunda começa com “Desembarque”, momento da chegada na nova cidade e quando os sentimentos ficam a flor da pele (“só queria saber onde se encontravam aqueles sonhos que a gente sonhava”) e o passado começa a virar uma lembrança distante, consumido pela batalha do dia a dia para conseguir o sucesso. O tom sombrio aumenta em “Trem do Interior”, porque o personagem principal está perdido na noite e “sem norte” - os arranjos de corda são lindíssimos.
O lado lúdico e sonhador aparece em “Alazão (Clarões)”, complementado pela dura realidade movida pela pressa, pouco dinheiro, esperança e falsas promessas, representados por um cavalo que ainda não está morto ao lutar por algo melhor. A busca por uma identidade própria é representada por uma versão cheia de guitarra, um piano bem presente de “A Palo Seco”, de Belchior, e de vocal mais lento ao pontuar cada estrofe (“Tenho vinte e cinco anos/ De sonho e de sangue/ E de América do Sul/ Por força deste destino/ Ah você sabe e eu também sei/ Um tango argentino/ Me vai bem melhor que um blues”).
O deslumbramento por São Paulo aparece em “Aguagrande”, quando ele fica parado “esperando que o povo parasse”, enquanto a saudade batia forte ao “ver a praia de Iracema na minha mente”. Na segunda parte, a melancolia é trocada pela alegria de saber que “está chovendo nas bandas de lá”, um aviso da boa situação e um alento para seguir firme. O encerramento chega com “Pavão Mysteriozo”, canção de protesto contra a ditadura militar, uma maneira de resistir em meio ao caos e problemas de um dos piores períodos da história do Brasil (“Pavão misterioso/ Pássaro formoso/ Tudo é mistério/ Nesse teu voar”), um pedido para “desmanchar o que não é certo, não”.
O migrante nordestino foi responsável por levantar praticamente toda grande cidade do sudeste nos últimos 100 anos, sempre em busca de uma vida melhor para si e a família. Ednardo conseguiu resumir bem esse sentimento com “O Romance do Pavão Mysteriozo”, retrato de uma época difícil para os artistas e, ao mesmo tempo, cheia de criatividade em todos os aspectos da vida: para comer até escapar da censura. Divido em duas partes, é possível chamar esse LP de estreia de trabalho conceitual dividido em duas partes, um antes e depois na tentativa de realizar o próprio sonho. É um dos melhores discos do período e merece um reconhecimento além da música título.
Ficha técnica
Tracklist:
Lado A
1 - “Carneiro” (Augusto Pontes/ Ednardo) (2:33)2 - “Avião de Papel” (Ednardo) (4:07)
3 - “Mais Um Frevinho Danado” (2:05) (Ednardo)
4 - “Ausência” (Part. Amelinha) (Ednardo) (3:26)
5 - “Varal” (Ednardo/ Tania Cabral) (4:04)
6 - “Dorothy Lamour” (Fausto Nilo/ Petrucio Maia) (4:08)
Lado B
1 - “Desembarque” (Ednardo) (2:45)2 - “Trem do Interior” (Ednardo/ Fausto Nilo) (3:13)
3 - “Alazão (Clarões)” (Brandão/ Ednardo) (4:18)
4 - “A Palo Seco” (Belchior) (3:57)
5 - “Aguagrande” (Augusto Pontes/ Ednardo) (4:11)
6 - “Pavão Mysteriozo” (Ednardo) (4:24)
Gravadora: RCA
Produção: Antônio de Lima/Walter Silva
Duração: 42 minutos
Ednardo: vocal, violão, percussão e arranjo
Hareton Salvanini: arranjos e regências
Heraldo do Monte: arranjo, regência, viola e guitarra
Isidoro Longano (Bolão): arranjos, regências, flauta e sax tenor
Luiz de Andrade: banjo
Gabriel J. Bahlis: contra baixo (acústico e elétrico)
Antonio de Almeida (Toniquinho): bateria
Ernesto de Lucca: tímpanos
Rubens de S. Soares: tumbadoras
José Eduardo P. Nazário, Jorge H. Silva, Dirceu S. de Medeiros (Xuxu): percussão
José Hareton Salvanini: piano cravo (elétrico)
Demétrio S. de Lima: flauta e pícolo
Eduardo Pecci: flauta e sax alto
Franco Paioletti: clarinete
Benito S. Sanchez: oboé
Drausio Chagas: baixo tuba
Sebastião J. Gilberto (Botina) e Settimo Paioletti: pistons
Roberto J. Galhardo e Antônio Secato: trombone
Ezio Dal Pino e Flabio Antonio Russo: violoncelo
Jorge G. Izquierdo, Oswaldo J. Sbarro, Caetano D. Finelli, Dorisa Soares, Antonio F. Ferrer, German Wajnrot, Alfredo P. Lataro e Joel Tavares: violino
Amelinha: vocal da faixa “Ausência”
Osmar Zandomenigui: supervisão geral
Walter Silva: técnico de mixagem
Stelio Carlini, G. João Kibelkstis (Joãozinho): técnico de Som
Edgardo Alberto Rapetti: técnico de mixagem e de som
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