Discos para história: Morning Phase, de Beck (2014)

História do disco

Espanto, incredulidade, surpresa, choque, perplexidade... Pode escolher qualquer uma dessas palavras para falar sobre a vitória de “Morning Phase”, em Álbum do Ano, no Grammy de 2015. Kanye West ensaiou repetir o que fez no VMA de 2009 com Taylor Swift, mas recuou e começou a rir. A favorita Beyoncé sorriu amarelo ao acumular mais uma derrota na categoria no currículo. E Ed Sheeran... Se ele vence, era para fechar de vez aquela espelunca.

O fato é que o agradecimento de pouco mais de um minuto de Beck no palco, logo após receber o prêmio das mãos de Prince, foi curto e suficiente para falar sobre as pessoas importantes que trabalharam nesse longo processo, iniciado mais de uma década antes. Era o primeiro álbum do músico em seis anos, o primeiro após deixar a Interscope e mudar-se para Capitol e o primeiro com ele sozinho na produção desde a estreia, “Golden Feelings”, de 1993.

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Apesar de não lançar nenhuma música nesse intervalo, ele trabalhou em vários projetos musicais e passou por problemas de saúde, como uma inflamação nas costas que o deixou de molho em casa por semanas. A ideia de um disco mais lento e de tom grandioso nasceu nos momentos finais das gravações de “Sea Change”, de 2002, considerado um dos melhores trabalhos para conhecer a discografia de Beck. Inclusive, era para ser uma espécie de continuação, quase um álbum duplo separado ao melhor estilo “Kid A”, de 2000, e “Amnesiac”, de 2001 - os três produzidos por Nigel Godrich. Mas uma mala cheia de demos foi perdida durante uma turnê e, sem cópias, pouca coisa foi salva pela memória do músico. Frustrado com o ocorrido, ele abortou o projeto e partiu para trabalhos mais experimentais ao longo dos anos seguintes.

Esse período foi importante para fazer algo diferente e exercitar a criatividade, mas a ideia de retomar o trabalho mais elaborado, com violões, arranjos de cordas, pianos e elementos que, juntos, transformam uma música em algo grandioso foi ganhando força. Quando fez um show surpresa com a banda da gravação de “Sea Change”, em 2012, e revisitou muita coisa do repertório sem tocar há muito tempo, resolveu reuni-los em estúdio para gravar um novo álbum de estúdio. O mais incrível era a sensação de nunca ter separado desses caras, como se eles apenas continuassem o trabalho de uma década antes. Em uma longa entrevista para o site ‘The Quietus’, Beck falou sobre a produção de “Morning Phase”.

“Basicamente, comecei a fazer o disco há cerca de um ano [2013], mas algumas das músicas já existiam. A ideia do disco existe há muito tempo. ‘Morning Phase’ foi algo em que eu poderia ter trabalhado e lançado [rápido], mas senti que, pelo longo intervalo [depois de ‘Modern Guilt’] queria algo com alcance um pouco mais musical, com algumas músicas melhores para apresentações ao vivo”, explicou.

“Mas por diferentes razões o outro projeto em que estava trabalhando não deu certo, não era o momento certo. Então retomei o trabalho. Após tentar fazer isso em Nashville em 2011... Era algo em que estava trabalhando por vários anos, mas, finalmente, comecei a fazer isso no início do ano passado”, continuou.

Uma das pessoas mais importantes nesse processo de retomada foi o baixista Justin Meldal-Johnsen, experiente músico de estúdio e amigo de longa data de Beck. Ele explicou a relação dele, com o cantor e os outros músicos de estúdio em um longo perfil para revista ‘Billboard’.

“É a mesma sala com os mesmos caras, com os mesmos microfones, muitos dos mesmos equipamentos e o mesmo engenheiro [de som]. Nós nem conversamos quando começamos essas músicas, apenas ouvimos e respondemos. Esses são os tons, sons e abordagens que surgem desses cinco caras. Acho que Beck responde à música de uma forma confiante, onde ele deixa as coisas acontecerem sem julgamento”, contou.

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Aos 43 anos e sem a pressão da famosa crise dos 40, já que, segundo ele, a vida profissional dele sugere mais o ritmo de balanço do que de uma gangorra, ele pôde concentrar forças nesse primeiro álbum pela nova gravadora. E, diferentemente dos primeiros anos de carreira, vinha tentando confiar mais nos próprios instintos ao invés de seguir sugestões de terceiros. Era algo parecido do período de “Odelay”, quando torrou US$ 200 mil na gravação e sofreu forte rejeição de diretores da Geffen. O objetivo era fazer algo duradouro, ainda sem o sucesso esperado por quem controla o dinheiro. Mesmo com a repercussão positiva, havia sempre um freio de mão puxado e relutância em seguir os próprios instintos. Ao trabalhar com velhos amigos e ter uma relação extremamente profissional com todos eles, acabou criando um ambiente favorável a criatividade e ideias.

“Gostaria de ter mais confiança. Acho que esse é provavelmente o meu calcanhar de Aquiles. Se tivesse mais, provavelmente teria me sentido encorajado a fazer músicas mais interessantes antes. Já vi esse tipo de confiança ir muito com outras pessoas. Admiro isso. Espero que meus filhos tenham esse tipo de confiança que permite que você corra riscos”, falou, na mesma entrevista para a ‘Billboard’.

Gravações aqui e ali foram acontecendo ao longo de 2012 em estúdios diferentes, em países diferentes e com uma série de amigos e músicos convidados. No início de 2013, tudo engatou de verdade quando reservou três dias em um estúdio em Los Angeles com Meldal-Johnsen, Joey Waronker (bateria) e Roger Joseph Manning Jr (piano) para gravar a primeira parte de “Morning Phase”. Ao longo dos seis meses seguintes, com ajuda do pai e maestro David Campbell, trabalhou nos arranjos de corda com a orquestra da segunda parte.

Lançado em 21 de fevereiro de 2014, o 12º álbum de estúdio foi catapultado direto ao terceiro lugar da parada nos Estados Unidos e para quarta colocação no Reino Unido. Era um retorno e tanto. As críticas foram esmagadoramente positivas ao destacar os arranjos e cadência das faixas, espalhadas em pouco mais de 47 minutos. O triunfante retorno recolocou uma atenção a Beck, capa de revistas especializadas e atração principal dos melhores e maiores festivais pelo mundo pelos meses seguintes. A consagração inesperada veio no Grammy, mas ele não faz músicas para ganhar prêmios. Quem garante isso é Greg Thompson, então vice-presidente da Capitol e responsável por levá-lo para gravadora.

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“Beck tem uma história incrível de fazer discos que redefiniram o que iria funcionar naquele determinado momento – álbuns em que, enquanto o resto do mundo virava à direita, ele virava à esquerda; deu certo e as pessoas foram com ele”, contou para ‘Billboard’.

Da complicação a salvação de si, Beck fez de “Morning Phase” um dos melhores e mais grandiosos trabalhos da carreira no aspecto musical. Ter fôlego para fazer algo assim quando a maioria começa a curva descendente só mostra que ele pode não ter tido confiança, mas conhece de música. Porque só alguém que sabe das coisas lança discos duradouros.


Crítica de “Morning Phase”*

Revisitar um álbum mais de uma década após o lançamento é como rever um conhecido antigo e sem muito contato. Se na época, o olhar inexperiente olhava apenas os defeitos e encarava as qualidades como obrigação, hoje tudo soa diferente. Um fone e qualidade de som melhores fizeram mudar totalmente a reavaliação de “Morning Phase”, um dos melhores álbuns da carreira de Beck.

Escrevi na época que era “um trabalho muito bom, com arranjos belos e letras romântico-melancólicas muito boas, mas ele fica um pouco repetitivo na parte final”. Não digo que foi um erro, mas era apenas o olhar de uma época diferente e sem a experiência necessária para conseguir fazer uma avaliação adequada e pegar todas as referências necessárias para conseguir escrever um bom texto sobre o assunto.

Os arranjos de “Cycle” e “Morning”, as duas faixas iniciais, são belíssimos e com um vocal muito inspirado em uma calmaria encontrada nas melhores baladas do estilo dos anos 1970. Outro trunfo do álbum está na harmonia vocal ao melhor estilo Beach Boys e Simon & Garfunkel, presente em boa parte do álbum em uma combinação perfeita com os instrumentos. Além disso, o uso de pequenos elementos musicais aqui e ali ajuda a preencher o espaço de cada música, não deixando aparas.

As letras são acima da média e apaixonantes, indo do folk puro (“Don't Let It Go” ) a um pop barroco, como na ótima “Blue Moon” (“So cut me down to size/ So I can fit inside/ Lies that will divide/ Us both in time”), ou ainda em experimentos musicais que rementem levemente aos trabalhos anteriores (“Unforgiven”), passando pelo acréscimo dos arranjos de corda grandiosos (“Wave”) e na simplicidade do pop de refrão grudento (“Blackbird Chain”). O final traz a ótima “Waking Light”, uma das melhores músicas da carreira de Beck. Dá quase para chamá-la de perfeita, tamanho cuidado para colocá-la como encerramento do álbum (“No one sees you here/ Roots are all covered/ There's such a length to go/ And how much can you show?/ Day is gone/ On a landslide of ribbon/ I've seen your lamplight burning low”).

Um disco com essa qualidade merece ser revisto pela crítica atual. Dez anos após o lançamento e quase isso daquela vitória inesperada no Grammy, Beck segue fazendo música e, principalmente, segue fazendo o que acredita para si na hora da gravação. Definitivamente, “Morning Phase” tem um enorme potencial para virar um clássico na próxima década.

*na época do lançamento, escrevi uma crítica do disco que você pode ler clicando aqui

Ficha técnica

Tracklist:

1 - “Cycle” (0:40)
2 - “Morning” (5:20)
3 - “Heart Is a Drum” (4:32)
4 - “Say Goodbye” (3:30)
5 - “Blue Moon” (4:03)
6 - “Unforgiven” (4:35)
7 - “Wave” (3:41)
8 - “Don't Let It Go” (3:10)
9 - “Blackbird Chain” (4:27)
10 - “Phase” (1:08)
11 - “Turn Away” (3:06)
12 - “Country Down” (4:01)
13 - “Waking Light” (5:01))

Gravadora: Capitol/Fonograf
Produção: Beck
Duração: 47min08

Beck Hansen: vocal, violão (faixas 2–5, 8–9, 11–12), teclado (faixa 2), guitarra (faixas 9, 13), piano (faixas 3, 5–6, 13), colagem sonora (faixa 3), pandeireta (faixa 4), baixo (faixas 5, 11), ukulele (faixa 5), charango (faixa 5), celesta (faixa 9), dulcimer (faixa 11), gaita (faixas 12), sintetizadores (faixa 13), glockenspiel (faixa 13) e órgão (faixas 13)
Joey Waronker: bateria (faixas 2–3, 5, 8, 12–13) e percussão (faixas 2–3, 5, 9)
Roger Joseph Manning, Jr.: piano (faixas 2–3), sintetizadores (faixa 2), vocal de fundo (faixas 2–3, 5, 9), piano Rhodes (faixa 3), clavinete (faixas 3, 5, 9, 13), órgão B3 (faixa 12) e piano elétrico (faixa 12)
Stanley Clarke: contrabaixo (faixa 2) e baixo (faixa 3)
Bram Inscore: baixo (faixa 4)
Cody Kilby: guitarra (faixa 4)
James Gadson: bateria (faixas 4, 6)
Fats Kaplin: banjo (faixa 4)
Justin Meldal-Johnsen: baixo (faixas 6, 8–9, 12–13)
Smokey Hormel: violão (faixas 6, 8), ebow (faixa 6) e guitarra (faixa 9, 12)
Stephanie Bennett: harpa (faixa 6, 11)
Roger Waronker: piano (faixa 8)
Steve Richards: violoncelo (faixa 8)
Greg Leisz: pedal steel (faixas 9, 12)
Jason Falkner: guitarra (faixas 9, 12–13)
Matt Mahaffey: órgão (faixas 9, 13)
Matt Sherrod: bateria (faixa 9)
Joel Derouin, Charlie Bisharat, Mario De Leon, Julian Hallmark, Gerry Hilera, Razdan Kuyumjian, Natalie Leggett, Alyssa Park, Tereza Stanislav, Josefina Vergara, Sara Parkins, Kevin Connolly, Tammy Halwan, Grace Oh, Michele Richards, Sarah Thornblade, Nina Evtuhov, Songa Lee, Joel Pargman: violino
Denyse Buffum, Andrew Duckles, Matt Funes, Roland Kato, Jeanie Lim: viola
Steve Richards, Stefanie Fife, Rudy Stein, John E. Acosta, Suzie Katayama:
violoncelo
David Stone: contrabaixo
David Campbell: condutor da orquestra

Darrell Thorp, Cole Marsden Greif-Neill, Cassidy Turbin, David "Elevator" Greenbaum, Florian Lagatta, Joe Visciano e Robbie Nelson: engenheiro de som
Tom Elmhirst: mixagem
Ben Baptie: assistente de mixagem
Bob Ludwig: masterização

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