Discos para história: Gabriel O Pensador, de Gabriel O Pensador (1993)

História do disco

Em 1992, o Brasil estava passando pela primeira grande crise da Nova República. Pouco mais de dois anos após assumir a presidência, na primeira eleição geral para presidente em 26 anos, Fernando Collor de Mello enfrentava o processo de impeachment por corrupção e tráfico de influência. Aberto em 1º de outubro e concluído nos últimos dias daquele ano, ele perdeu o mandato e os direitos políticos por oito anos.

Durante todo processo, uma rádio do Rio de Janeiro começou a tocar uma música chamada "Tô Feliz (Matei o Presidente)", de um rapper da cidade chamado Gabriel Contino. Rapidamente, a canção chegou no topo das mais tocadas, mas, cinco dias depois, ela foi censurada pelo Ministério de Justiça, então sob o comando de Célio Borja, com justificativa de "incentivar o assassinato do presidente da República". Claro, a atenção ao músico cresceu pelo caso e aumentou ainda mais quando, menos de um mês depois, Collor foi afastado do cargo.

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Gabriel Contino nasceu no Rio de Janeiro em 4 de março de 1974 e filho de uma jornalista com um médico, teve a vida transformada quando descobriu o hip-hop e passou a ter contato com rappers, DJs e músicos do estilo da Zona Sul. Foi em 1992, aos 18 anos, quando mandou a demo de "Tô Feliz (Matei o Presidente)" para a rádio que a vida dele mudou de vez. Então estudante de comunicação social na PUC-RJ, ele passou a dar entrevistas para os principais veículos de comunicação do país, que queriam entender o sucesso desse jovem.

Mais álbuns dos anos 1990:
Discos para história: Everybody Else Is Doing It, So Why Can't We?, do Cranberries (1993)
Discos para história: 7 Desejos, de Alceu Valença (1992)
Discos para história: Automatic for the People, do R.E.M. (1992)
Discos para história: Pelusón of Milk, de Luis Alberto Spinetta (1991)
Discos para história: Blue Lines, do Massive Attack (1991)
Discos para história: Os Grãos, dos Paralamas do Sucesso (1991)

Mas, apesar do sucesso, nenhuma gravadora queria assinar com ele. A ditadura militar havia acabado recentemente e o medo ainda pairava sobre muitos diretores de gravadora, principalmente das menores. Como bem disse Carlos Eduardo Miranda uma vez sobre o Planet Hemp: eles precisavam de alguma major por trás para soltá-los da cadeia. Por coincidência, quem assinou com Gabriel o Pensador foi a Sony Music, que também assinaria com o grupo carioca anos depois.

Para produzir o primeiro álbum da carreira de um jovem sem experiência, a gravadora contratou Fabio Fonseca, produtor dos primeiros discos de Ed Motta ("Ed Motta E Conexão Japeri", de 1988) e Fernanda Abreu ("SLA Radical Dance Disco Club", de 1990), e DJ Memê, um desses craques do sampler que fez a transição de tocar nas melhores festas do Rio de Janeiro para ser apresentador de programas de rádio.

Veja também:
Discos para história: O Ritmo do Momento, de Lulu Santos (1983)
Discos para história: Pérola Negra, de Luiz Melodia (1973)
Discos para história: Black Coffee, de Peggy Lee (1953)
Discos para história: Live At The Apollo, de James Brown and the Famous Flames (1963)
Discos para história: Random Access Memories, do Daft Punk (2013)
Discos para história: Room on Fire, dos Strokes (2003)

Ao trabalhar com os dois, Gabriel o Pensador chegou no estúdio com o material praticamente pronto e, com um bom orçamento nas mãos, pôde brincar em estúdio com arranjos, músicos de alto nível e samplers de canções famosas, como "Cálice", de Chico Buarque, "Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores", de Geraldo Vandré, "Music for My Mother", do Funkadelic, e outras.

Lançado em maio de 1993, o álbum de estreia de Gabriel, o Pensador é um desses que um artista estreante faz e nunca mais consegue repetir o resultado pelo fato do frescor das ideias e a falta de medo típica da juventude, para experimentar várias coisas e cantar o que pensa sem meias-palavras, fazem do trabalho algo difícil de fazer. E censurada pouco menos de um ano antes, "Tô Feliz (Matei o Presidente)" aparece no álbum.

  

Resenha de "Gabriel O Pensador"

Após ter "Tô Feliz (Matei O Presidente)" censurada pelo Ministério da Justiça apenas cinco dias depois do lançamento, Gabriel o Pensador fez uma canção-resposta às autoridades da época. Rápida, rasteira e com uma linha de baixo ótima, o preâmbulo "Abalando" abre o álbum de estreia com o rapper usando o sampler de "Cálice", de Chico Buarque, para falar sobre liberdade de expressão - ou a falta dela no Brasil desde sempre.

"Tô Feliz (Matei O Presidente)" surge logo depois, não sem antes uma conversa de Gabriel, o Pensador para explicar a presença da faixa no trabalho. Depois, uma voz imitando Gil Gomes, um famoso repórter policial dos anos 1990, surge para explicar o que aconteceu com o então presidente, com uma "confissão" do acontecido por parte do músico. Cheia de samplers dos discursos de Fernando Collor, a história é contada de maneira heroica e um tanto mórbida em determinadas partes.

Um dos clássicos dos anos 1990, "Lôraburra" traz uma reclamação sobre as mulheres que, segundo ele, não tem nada a dizer e só gostam de exibir o corpo por aí - futuramente, o cantor admitiu que não usaria determinadas palavras na letra. Na seguinte, ele faz uma crítica ao alistamento militar obrigatório em "Indecência Militar" ("Porque o serviço militar obrigatório é uma indecência/Um ano sem mulher batendo continência").

"Lavagem Cerebral" aborda o racismo em uma canção bem calma, mas com palavras ofensivas para criticar quem tem preconceito ("Racismo, preconceito e discriminação em geral/ É uma burrice coletiva sem explicação"). Usando o baião como base, "... E Você?" o rapper apresenta a cultura brasileira e aproveita para fazer uma crítica a quem só consome coisas dos Estados Unidos. O tom crítico cheio de ironia retorna no clássico "Retrato De Um Playboy (Juventude Perdida)", uma crônica de como a juventude rica se comportava nos anos 1990 - spoiler: ainda é assim na imensa maioria dos casos.

Quase um freestyle, "175 Nada Especial" traz Gabriel o Pensador abordando diversos assuntos da época: desde a inflação, violência, o crescimento dos evangélicos e a falta de atenção aos professores. Tudo isso durante uma viagem de ônibus, quando pôde ver e refletir sobre esses assuntos. E se "Esperanduquê" é uma crítica pesada aos políticos da época - e atuais também -, a melancólica "O Resto Do Mundo" trata da pobreza a partir da perspectiva de um morador de rua, em que o maior desejo dele no momento é morar na favela em um arranjo dos melhores.

A estreia de Gabriel, o Pensador em estúdio é uma crônica daquele início dos anos 1990 no Brasil e, infelizmente, muito do discurso ainda funciona para 2023. Recheado de samplers espertos e ótimos arranjos, os músicos em estúdio complementam muito bem os efeitos usados e as letras, muito diretas e simples. Trinta anos após o lançamento, o disco ainda é muito impactante e funciona para nos lembrarmos do dia a dia, nem sempre bom ou justo com quem mais precisa.

Ficha técnica

Tracklist:

1 - "Abalando" (4:49)
2 - "Tô Feliz (Matei O Presidente)" (4:50)
3 - "Lôraburra" (3:55)
4 - "Indecência Militar" (2:29)
5 - "Lavagem Cerebral" (5:38)
6 - "... E Você?" (5:02)
7 - "Retrato De Um Playboy (Juventude Perdida)" (3:57)
8 - "175 Nada Especial" (6:24)
9 - "Esperanduquê" (0:47)
10 - "O Resto Do Mundo" (5:06)

Gravadora: Chaos/Sony Music
Produção: Fabio Fonseca e DJ Memê
Duração: 43min06s

Gabriel O Pensador: vocal, bateria eletrônica, samplers; arranjo em "175 Nada Especial"; produtor
André Rodrigues e Bino Farias: baixo
Paulo Kastrupp, João Castilho, Da Gama e Mauro Swenson: guitarra
DJ Frias: scratches e coro
Trambique: cuíca
Fabio Fonseca: teclado, baixo e coro
DJ Leandro: vocal em "Indecência Militar" e coro
Chico Neves: sampler em "Lavagem Cerebral"; "175 Nada Especial" e "O Resto Do Mundo"
Agostinho Ferreira Da Silva: acordeão
Flávio Guimarães: gaita
Marcelo Mansur: bateria eletrônica, loops, sampler, coro; vocal em "... E Você?"
DJ Memê: samplers e coro
Ary, Bjaba, Dani, Demétrio, Fernando Contino, Laura Malin, Lica, Miguel, Vinicius, Fernandinho, Janaína, Jorge "Tito", Rafael "Risada", Alessandro "Rato", Lúcia Queiroz, Nenô, Serginho, Ronaldo Barcelos, Tiago "O Perigoso" Baltar, Ace Johnny e Del Yuri: coro

Marcos Adriano: mixagem
Guilherme Callichio: assistente de mixagem e coro
Marcelo Hoffer: assistente de mixagem
Andréa Alves: assistente de produção e coro
Ary Sperling: produtor de "Abalando"
Shane Sponagle, Formiga, Marcos Adriano, Sérgio Ricardo: engenheiro de som
Carlão Gurgel: engenheiro de som e coro
João Maria: engenheiro de som e coro

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