Discos para história: The Hurting, do Tears for Fears (1983)

História do disco

"Só percebemos isso [o sucesso do primeiro álbum] nos últimos dois anos, quando tocamos no Bonnaroo, um festival para gente muito mais jovem. Esperávamos talvez mil pessoas, se tivéssemos sorte, e o público ia até perder de vista. Estou olhando para a frente do público, e todos são muito mais jovens do que eu, e todos cantam todas as letras de todas as músicas de 'The Hurting'. Foi chocante para mim", disse Curt Smith, vocalista e baixista do Tears for Fears, em entrevista ao 'Pop Matters'.

"Quando você olha retrospectivamente, faz sentido porque o álbum foi escrito quando éramos jovens. Essas letras ressoam em um público mais jovem", completou.

"The Hurting", o disco de estreia do Tears For Fears, lançado em 7 de março de 1983, colocou "Mad World", "Change" e "Pale Shelter" no top 5 da parada do Reino Unido, chegou no primeiro posto da parada uma semana após o lançamento, ganhou o Disco de Ouro três semanas depois e ficou 12 meses seguidos na lista dos LPs mais vendidos na ilha, conseguindo o Disco de Platina em 1985, ano do segundo álbum da dupla.

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Era difícil entender como dois jovens nada atraentes com um trabalho tão soturno e cheio de nuances fizeram tanto sucesso. O fundamental é, primeiro, quem eles eram; segundo, de onde vinham; e, terceiro, como foram criados. Roland Orzabal nasceu em Portsmouth, foi criado em Bath e viu os pais administrarem uma casa de entretenimento adulto e recebiam cantores, ventríloquos e strippers semanalmente para testes. Mas o que poderia se um clima de festa para uma criança acabou se transformando em um cenário de traumas e horror.

O pai, um veterano da Segunda Guerra Mundial, tinha ataques de fúria que resultavam em violência contra a mãe de Orzabal. O divórcio acabou sendo inevitável, fazendo o então garoto se afundar nos livros para tentar fugir da realidade. Não muito distante dali, Smith também não teve uma infância das mais fáceis: sem o pai por perto, foi criado pela mãe em um conjunto habitacional com pouquíssimos recursos financeiros. A única brincadeira que o animava era roubar qualquer objeto que considerava ter algum valor, apesar do ótimo comportamento na escola.

Eles acabaram se conhecendo na escola, na adolescência, e um admirou no outro coisas opostas: Orzabal achava Smith ousado e atrevido para alguém tão novo, enquanto Smith achava o amigo intelectualmente atraente e acima da média de qualquer pessoa que havia conhecido. Essa atração entre opostos seria fundamental nos anos dourados do Tears For Fears, principalmente nos primeiros cinco anos de sucesso.

Colegas, viraram amigos próximos quando, um dia, Orzabal ouviu Smith tocar "Then Came The Last Days Of May", do Blue Öyster Cult. A relação de aprofundou quando o professor de violão de Orzabal deu a ele uma cópia do livro "O Grito Primal", do psicoterapeuta Arthur Janov. Orzabal, antes mesmo de completar 18 anos, já era um grande fã da literatura existencialista de nomes como o filósofo Jean-Paul Sartre e o dramaturgo Samuel Beckett. Mas foi o livro de Janov a guiá-los por vários anos ao se tornar o livro de cabeceira dos dois - também inspiração para o nome da banda Primal Scream alguns anos depois.

Ambos vindo de lares desfeitos, mais ou menos criados pelas mães e mesclando a experiência das ruas com um profundo conhecimento em literatura, montaram um grupo chamado Graduate, banda mod que conseguiu um enorme sucesso na Espanha com "Elvis Should Play Ska", mas não fez barulho algum no Reino Unido. Os principais aprendizados passaram pelo que não fazer em uma turnê e que eles funcionavam muito melhor como dupla.

Inspirados pelo sucesso de "Are 'Friends' Electric?", de Gary Numan, e fãs de David Bowie, Peter Gabriel e Talking Heads, começaram o desenvolvimento das canções com apoio do produtor David Lord e encontraram em Ian Stanley, um "garoto rico", um estúdio com sintetizadores à disposição para experimentar o quanto quisessem. Em meio a depressão na Inglaterra dos anos Margaret Thatcher, o Joy Division não era do gosto pessoal do agora Tears For Fears, mas as letras cruas sobre as emoções mais primitivas eram vistas como inspiração. 

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Apesar de certeza do bom material em mãos, encontrar uma gravadora não foi fácil. Batendo de porta em porta, apenas A&M e Mercury — subsidiária de Polygram — se interessaram, mas David Bates, diretor da Polygram, quase descartou a banda. Após dispensar o representante deles, se arrependeu, correu atrás dele antes de o elevador fechar as portas e pediu as demos para "ficar o final de semana inteiro ouvindo". Ele ligou de volta com a seguinte proposta: o lançamento de dois singles, sem garantia de um contrato para um álbum cheio. Era um tiro no escuro. 

"Suffer The Children", de 1981, e "Pale Shelter", de 1982, não chegaram nem perto de entrar na parada do Reino Unido. Um dos pontos criticados foi a produção de Mike Howlett que, segundo Orzabal, não entendeu a dinâmica dos dois, nem sabia como trabalhar as letras para destacá-las. Por sorte do destino, uma ligação telefônica o colocou em contato com o produtor Chris Hughes, o Merrick da banda Adam and the Ants.

O trabalho com Hughes fluiu como nunca havia fluido antes com qualquer produtor em estúdio. Ele entendia a banda, queria saber mais sobre as letras e, principalmente, acalmava os dois quando os momentos de estresse surgiam. Um noite, ele ligou para os dois para irem ao estúdio com urgência ouvir o que ele havia feito com uma faixa considerada um lado B. Era "Mad World". E lançada como single, estourou na parada e colocou ainda mais pressão na banda iniciante ao bater na terceira posição da parada britânica logo de cara.

Mas, claro, como em toda produção, as desavenças aconteceram. Smith e Orzabal tinham uma opinião e Hughes e engenheiro de som Ross Cullum tinham outra. E quantidade de opiniões deles sobre cada música e arranjo levava horas, gerando trabalho até às 2h da manhã, sete dias por semana. Qualquer música só era gravada quando os quatro concordavam com a decisão tomada. E deu certo, apesar das críticas que chegaram a chamar "The Hurting" de "mesquinho", "egoísta" e "cheio de traumas freudianos". 

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O Tears For Fears chegou com tudo ao conseguir se conectar com adolescentes e jovens adultos que passavam por problemas semelhantes, aliados com a falta de perspectiva futura, se perguntavam se havia algo para se agarrar e seguir. Um ou dois anos antes, talvez eles não tivessem emplacado na parada tão rapidamente, porém, como a história conta, eles foram a banda certa, no momento certo, no lugar certo e falando com as pessoas certas. 

"A razão pela qual ainda tem tanto apelo é que esses são os sentimentos surgidos. Muita gente passa por essa fase. Ficamos felizes em pegar conceitos semi-intelectuais e tentar transformá-los em sucessos", disse Orzabal à 'Classic Pop Magazine".

"É um álbum muito consistente com sua própria personalidade distinta. Não tenho certeza se fizemos um trabalho tão emocionante, mas gostaria de pensar que atingimos picos musicais mais elevados", explicou, agora para 'Pop Matters'.


 Crítica de "The Hurting"

A faixa-título mostra o uso do sintetizador e dos elementos eletrônicos de maneira pesada em uma letra muito densa sobre a dor de não saber se o sofrimento é real ou não, e como isso vai afetá-lo por toda vida. E o primeiro grande sucesso da dupla, "Mad World", chega logo na sequência para criar uma atmosfera otimista para uma letra bem sombria ("And I find it kind of funny/ I find it kind of sad/ The dreams in which I'm dying are the best I've ever had/ I find it hard to tell you, 'cause I find it hard to take/ When people run in circles, it's a very very/ Mad world (x4)").

A reformada "Pale Shelter" ganhou um violão e um clima mais animado para abordar as incertezas de um envolvimento romântico e as consequências disso em uma faixa dançante e melancólica ao mesmo tempo, já a etérea "Ideas as Opiates" tem um quê experimental, uma batida insistente e um solo de saxofone em uma letra mais falada do que cantada. O lado A encerra com a existencialista "Memories Fade" ("Memories fade but the scars still linger/ Goodbye, my friend/ Will I ever love again?/ Memories fade but the scars still linger").

O vocal dividido em "Suffer the Children" é a certeza de que Curt Smith e Roland Orzabal foram feitos um para o outro nessa canção loteada de melancolia e com o vocal de apoio de Caroline Orzabal, futura mulher de Roland. E se a letra sofrida de "Watch Me Bleed" apresenta outro momento de teor sombrio, "Change" seria o momento de sucesso da dupla fora da Inglaterra no momento mais pop do álbum, com direito ao refrão grudento.

O teclado e o sintetizador chegam de maneira pesada na experimental "The Prisoner", sendo o oposto da anterior, e o disco encerra com a reflexiva "Start of the Breakdown" ("Scratch the earth, dig the burial ground/ Sense of time won't be easily found/ And ten out of ten for the ones/ Who defend, pretend too/ Breakdown is a final demand/ We stand firm with our heads in our hands/ As we love to cry, half alive").

A estreia do Tears for Fears não poderia ser melhor no ainda atual "The Hurting" . Usando os próprios traumas como base e muita psicologia, a dupla conseguiu unir o melhor so synth pop em canções muito emocionais sobre a vida, os percalços e como somos afetados profundamente pelas atitudes e consequências dos nossos pais ao longo da infância até a idade adulta. Quarenta anos após o lançamento, ainda é um álbum capaz de se conectar com qualquer pessoa em qualquer parte do mundo.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - "The Hurting" (4:20)
2 - "Mad World" (3:35)
3 - "Pale Shelter" (4:34)
4 - "Ideas as Opiates" (3:46)
5 - "Memories Fade" (5:08)

Lado B

6 - "Suffer the Children" (3:53)
7 - "Watch Me Bleed" (4:18)
8 - "Change" (4:15)
9 - "The Prisoner" (2:55)
10 - "Start of the Breakdown" (5:00)

Todas as músicas foram escritas por Roland Orzabal

Gravadora: Mercury/Phonogram
Produção: Chris Hughes e Ross Cullum
Duração: 41min39

Roland Orzabal: vocal nas faixas 1, 4 a 7 e 10, vocal de apoio, guitarra, violão, teclado e sintetizadores
Curt Smith: vocal nas faixas 1 a 3 e 8 a 9, vocal de apoio, baixo e teclado
Manny Elias: bateria e sintetizadores
Ian Stanley: teclado e programação

Chris Hughes: sintetizadores, percussão e condução da orquestra
Ross Cullum: orquestra de jazz e percussão
Mel Collins: saxofone Phil Palmer: guitarra
Caroline Orzabal: vocal em "Suffer the Children"

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