Discos para história: Marcos Valle, de Marcos Valle (1983)

História do disco

Em 1975, a ditadura militar brasileira vivia os últimos anos do governo liderado por Ernesto Geisel (1974–1979). Enquanto o falso milagre econômico era vendido como a salvação do país, os números das pessoas com fome só aumentava ao ponto do assunto ser proibido na mídia com risco da perda da concessão. A crise econômica que tomaria o Brasil por quase duas décadas e assassinatos do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho fizeram os militares iniciar gradualmente o movimento de abertura política.

No mesmo ano, Marcos Valle se cansou de tudo isso. Em um dia, ele, Chico Buarque e Egberto Gismonti foram interrogados pela repressão sobre as "intenções" subversivas do repertório. Com mais de uma década de carreira, iniciada um ano antes do golpe de 1965, o gosto pela música e de subir em um palco estavam sendo tomados pelo medo de algo acontecer com ele a qualquer minuto. Como muitos músicos sul-americanos, ir para os Estados Unidos parecia uma boa opção. E ele foi.

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Primeiro, foi para Nova York encontrar o amigo Eumir Deodato, mas foi em Los Angeles, mais precisamente na Califórnia, que pôde chamar a nova terra de lar. Lá, fez amizade com os músicos do Toto e do Chicago, e acabou sendo convidado pelo lendário arranjador Marty Paich e o filho David para gravar um álbum de covers dos Beatles com outra lenda: a cantora Sarah Vaughan. Para quem deixava a terra natal para fugir do sofrimento da ditadura, Valle estava realizando alguns dos sonhos mais profundos de qualquer músico.

Também foi na ensolarada Califórnia que acabou escrevendo a melodia e letras de "Love Is A Simple Thing", de Leon Ware. Convidado para participar da gravação, acabou ficando amigo de Ware, que o convidou para trabalhar no que seria "Rockin’ You Eternally", de 1981, um dos clássicos da carreira do cantor. Foram cinco anos que valeram por uma vida inteira, mas a abertura gradual do Brasil era um convite tentador para retornar. E nada como uma ligação da Som Livre com um contrato para dois álbuns para fazê-lo voltar ao Rio de Janeiro.  

Mais álbuns dos anos 1980:
Discos para história: The Hurting, do Tears for Fears (1983)
Discos para história: O Ritmo do Momento, de Lulu Santos (1983)
Discos para história: Power, Corruption & Lies, do New Order (1983)
Discos para história: Tempos Modernos, de Lulu Santos (1982)
Discos para história: 1999, de Prince (1982)
Discos para história: Peperina, do Serú Girán (1981)

Ao lançar "Vontade de Rever Você", em 1981, o cheiro da esperança pós-ditadura já era vislumbrado pelo músico em um álbum sobre retornar para casa com uma visão de fora sobre o Brasil. Mas foi uma música gravada na mesma época que seria o grande sucesso da carreira de Marcos Valle, dando um reconhecimento do público ainda maior do que ele tinha na época.

O groove do que seria "Estrelar" vinha de uma demo que Ware e Valle gravaram pela primeira vez, em Los Angeles, que acabou sendo guardada sem muito motivo durante as gravações do primeiro disco pela Som Livre. Quando ele mostrou a demo para Max Pierre, então diretor musical da gravadora, e o arranjador Lincoln Olivetti, os dois enlouqueceram completamente pelo ritmo e andamento. Porém, havia um problema: a letra não existia. E daria um trabalhão até música sair completa.

Para as outras nove faixas, o trio se reforçou com Paulo Sérgio Valle na produção, Robson Jorge na guitarra e uma coleção de músicos de estúdio para fazer os arranjos do futuro LP. O estilo vibrante casava com o sonho do fim da ditadura, quando era possível falar de praia em baladas românticas sem ser condenado em praça pública. Durante várias semanas, cerca de 40 pessoas trabalharam no conhecido "horário Lincoln Olivetti".

E o que era isso? Olivetti começava a trabalhar por volta das 20h e os músicos só chegavam no estúdio por volta de 1h da manhã no estúdio disponibilizado pela Som Livre. Ainda levaria mais uma ou duas horas para tudo se ajeitar e começar a gravação, que entraria madrugada adentro até de manhã, quando o sol já estava batendo forte na cabeça das pessoas que trabalhavam no horário comercial. Ajudava muito no ritmo de trabalho o fato de haver uma admiração mútua entre Olivetti e Valle, que conseguiam se completar musicalmente como poucos. Tudo feito sem pressa, privilegiando o tempo para fazer as coisas direito. 

Veja também:
Discos para história: Violent Femmes, do Violent Femmes (1983)
Discos para história: Infame, do Babasónicos (2003)
Discos para história: La Era de la Boludez, do Divididos (1993)
Discos para história: Clics Modernos, de Charly Garcia (1983)
Discos para história: Artaud, do Pescado Rabioso (1973)
Discos para história: An Evening with Billie Holiday, de Billie Holiday (1953)

Quando retornaram o trabalho a "Estrelar", Paulo Sérgio Valle, irmão de Marcos e letrista, estava com sérias dificuldades em conseguir escrever uma letra para esse groove de baixo tão marcante. Pierre colocou ainda mais pressão ao jogar a última cartada: com os prazos apertados, a faixa ficaria de fora se não tivesse uma letra pronta. Colocaram para tocar e alguém falou "energia, energia!". Valle fez uma conexão com exercício e ginástica, e saiu o "tem que correr". Pronto, havia um tema: o verão democrático que estava por vir.

Inspirado pelos anos nos Estados Unidos e o contato com músicos do mais diversos gêneros, "Marcos Valle" traz a alegria e o ritmo do verão, algo marcante para todas uma geração. Com apoio de gente da mais alta prateleira da música brasileira até hoje, Marcos Valle apostou na qualidade musical em um trabalho pop e recheado de boas canções para mostrar que havia ambição, alegria e vontade de viver em uma geração amarrada pelos horrores da ditadura.


Crítica de "Marcos Valle"

O hit sensual "Estrelar" abre o trabalho e mostra como a colaboração entre Marcos Valle, Paulo Sérgio Valle e Lincoln Olivetti foi uma das coisas mais importantes da música brasileira nos anos 1980. A letra, animada e para cima, é esperançosa e cheia de energia, elementos que moldaram parte da música jovem brasileira no período ("Verão chegando/ Quem não se endireitar/ Não tem lugar ao sol/ Domingo é dia/ De um ti-ti-ti a mais/ E de bumbum pra trás") ao também virar um hit das academias da época.

A balada "Fogo Do Sol (Adms Hotel)" mantém a sensualidade do álbum de maneira mais suave e aqui podemos ouvir como os arranjos de Olivetti fazem diferença para impulsionar a letra e o vocal. Era uma época de enorme qualidade de quem trabalhava na produção e de quem dirigia as empresas. Na regravação de "Samba De Verão", é possível quase sentir o cheio dos anos 1980 pelo uso dos teclados e dos sintetizadores.

O samba "Para Os Filhos De Abraão" funciona muito bem para embalar qualquer folia momesca em qualquer ano porque o arranjo não envelheceu nada. E na única faixa composta apenas por Valle, "Naturalmente" é instrumental e ajuda a manter o ritmo do álbum para a otimista "Tapa No Real" ("Deixa o coração sonhar/ Vem comigo quem quiser amar/ É preciso andar dentro do mundo/ Com asas pra poder voar").

A poética "Tapetes, Guardanapos, Cetins" tem um arranjo que brinca mais com elementos não presentes na outras músicas, mas é no hit das discotecas "Dia D" que Valle se solta de vez no trabalho e coloca o pessoal para dançar. O lado sensível aparece com mais força na balada romântica "Mais Que Amor" ("É mais que amor/ Uma paixão sem fim/ Ah, coração.../ Uma explosão em mim") e o álbum encerra com a instrumental "Viola Enluarada".

Um dos clássicos da música brasileira, "Marcos Valle" mudou o patamar do músico para sempre. Mesmo não conseguindo o mesmo sucesso do período, ele marcou toda uma geração - seja pela música, seja pela capa do disco. Quarenta anos depois do lançamento, o disco mostra como o Brasil era competente para colocar nas prateleiras ótimos LPs produzidos por gente de ótimo nível e que realmente gostava, ou gosta, de música.

Ficha técnica

Tracklist:

1 - "Estrelar" (Marcos Valle/ Paulo Sérgio Valle/ Leon Ware)
2 - "Fogo Do Sol (Adms Hotel)" (Marcos Valle/ Paulo Sérgio Valle/ Leon Ware)
3 - "Samba De Verão" (Marcos Valle/ Paulo Sérgio Valle)
4 - "Para Os Filhos De Abraão" (Marcos Valle/ Paulo Sérgio Valle/ Laudir de Oliveira)
5 - "Naturalmente" (Marcos Valle)
6 - "Tapa No Real" (Marcos Valle/ Paulo Sérgio Valle)
7 - "Tapetes, Guardanapos, Cetins" (Marcos Valle/ Ivor Lancellotti/ Laudir de Oliveira)
8 - "Dia D" (Marcos Valle/ Paulo Sérgio Valle/ Leon Ware)
9 - "Mais Que Amor" (Marcos Valle/ Paulo Sérgio Valle/ Leon Ware)
10 - "Viola Enluarada" (Marcos Valle/ Paulo Sérgio Valle) 

Gravadora: Som Livre
Produção: Lincoln Olivetti e Paulo Sérgio Valle
Duração: 41min53

Marcos Valle: voz, teclados, piano, coro e sintetizadores

Lincoln Olivetti:
arranjos, teclados e piano
Robson Jorge: guitarra, sintetizador e teclado
Serginho: trombone, sintetizador e teclado
Claudio Stevenson: violão e guitarra
Eduardo Lages: piano
Max Pierre: bateria eletrônica
Mauricio Einhorn: gaita
Eduardo Lages: condutor do arranjo de cordas
Fernando A. De Souza: baixo
Ana Bezerra De Mello Devos e Eugen Ranewsky: violoncelo
Flávio, Fabiola, Jaine, Leon Ware, Loma, Luna, Márcio Lott, Miriam Peracchi, Regininha, Rosana e Viviane: coro
Picolé: bateria
Ariovaldo e Peninha: percussão
Leo Gandelman, Oberdan e Zé Carlos: saxofone
Bidinho e Marcio Montarroyos: trompete
Adolfo Pissarenko e Nathercia Teixeira Da Silva: viola
Bernardo Bessler, Ernani Bordinhão, Luiz Carlos Campos Marques, Michel Bessler, Nelson Abramento, Robert Eduard, Stanislaw Smilgin, Walter Gomes De Souza: violino

Andy e Antonio "MUG" Canazio: mixagem da faixa 3
Cesar Barbosa, Mario Jorge e Nestor Lemos:
assistente de mixagem
Roberto, Carlos Dantas, Jackson, João Ricardo, Julio Martins, "Leco", D'Orey, Mario e Sergio Seabra:
assistente de gravação
André Paul Mills (Andy):
engenheiro de som

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