Discos para história: Peperina, do Serú Girán (1981)


História do disco

Uma das bandas argentinas mais importantes da Argentina durou apenas cinco anos, mas o suficiente para influenciar toda uma geração de músicos e fãs ao longo de mais de 40 anos. O Serú Girán nasceu de, entre outras coisas, da frustração de Charly García com o fracasso da banda de rock progressivo La Máquina de Hacer Pájaros — o reconhecimento veio tardiamente, quando o grupo não existia mais.

O Brasil tem muito a ver com o nascimento da banda, já que García e David Lebón, ambos ex-Sui Generes, ficaram dois meses no País e, entre muita música e outras coisas, formataram um novo projeto musical ainda sem nome. Quando retornou à Buenos Aires para assinar um contrato com Oscar Lopez e Billy Bond, futuro integrante da banda brasileira Joelho de Porco e atual produtor de musicais, viu um show do Pastoral. Nesse dia, se apaixonou pelo jeito de tocar baixo de Pedro Aznar e o convidou para ir ao Brasil fazer parte do grupo em gestação, já com o baterista Oscar Moro acertado. O Serú Girán estava para nascer.

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Com influências do rock, do jazz fusion e de música brasileira, o Serú Girán fez muito sucesso entre o público com o disco de estreia, mas as críticas começaram a aumentar muito pelo rebuscamento dos arranjos, dos shows de má qualidade e chegaram a ser chamados de "o que havia de pior na música argentina", com toda carreira de García sendo questionada pela imprensa. Só com o lançamento do segundo álbum, "La Grasa de las Capitales", de 1979, que eles reverteram a situação, com "Bicicletas", de 1980, os shows ganhariam um caráter épico pelo cenário acima da média e, no mesmo ano, chegariam ao auge nas apresentações com o sucesso na edição brasileira do Monterrey Jazz Festival, realizada no Rio de Janeiro.

Em abril de 1981, a banda estava preparando um novo álbum de estúdio, o quarto em quatro anos de existência. Em um período em que as mortes de John Lennon e Bob Marley aconteceram com cinco meses de diferença, Queen e Police estavam explorando o mercado sul-americano, o Serú Girán conseguia se destacar ao ponto de ser chamado "Beatles argentino". Eles mal sabiam, mas estavam muito próximos do fim.

Em um país que tentava varrer os problemas da ditadura militar para debaixo do tapete, uma banda com esse sucesso era um perigo, ainda mais quando eles estavam muito mais próximos da sociedade civil do que do poder. O resultado viria em canções críticas ao governo, que usaria a censura prévia para alterar as letras e suspender o lançamento de algumas outras. A consequência disso acabou sendo a mudança forçada do projeto de disco duplo para um simples.

Mas isso não foi um problema, porque a banda uniu-se para entregar um álbum que dialogava e muito com os jovens da época, que encontraram uma salvação no rock e alívio para encarar os problemas sócio-políticos e econômicos da Argentina. E eles eram amados pelo público, a despeito das críticas por não conseguirem colocar nos discos o ímpeto dos shows incendiários.

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Lançado em agosto de 1981, "Peperina" virou um clássico do rock argentino e um dos melhores trabalhos da curta e influente carreira do Serú Girán. Apresentado ao vivo pela primeira vez em setembro do mesmo ano, acabaria sendo uma das últimas apresentações do grupo. Aznar foi convidado pelo guitarrista americano Pat Metheny para fazer parte da banda e, além disso, ele havia conseguido uma bolsa para estudar na Berklee College of Music, nos Estados Unidos.

"Peperina" foi o último álbum de estúdio, uma despedida em grande estilo. García voltaria ao Brasil para formatar um novo projeto musical, talvez o mais importante deles: a carreira solo.

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Resenha de "Peperina"

O disco abre com a faixa-título, que tem uma história um tanto controversa, para falar o mínimo. A canção foi composta em vingança por uma série de críticas shows, considerados ruins, feita pela então jovem jornalista Patricia Perea. Não dá para falar que é uma canção ruim, ao mesmo tempo não dá para esquecer o péssimo contexto, uma vingança pessoal de Charly García logo na abertura ("Quiero contarles una buena historia/ La de una chica que vivió la euforia/ De ser parte del rock, tomando té de peperina/ Típicamente mente pueblerina/ No tenía hue-*bip* para la oficina/ Subterráneo lugar de rutinaria ideología"). Ela precisou conviver com isso até 2016, quando morreu.

Dá para entender o sucesso do Serú Girán com o público. Os arranjos são muito bem escolhidos para contar histórias identificáveis com os jovens da época. A melancólica "Llorando En El Espejo" fala sobre o uso de drogas e as consequências, "Parado En El Medio de la Vida", de David Lebón, é bem suave para contar uma história pessoal do compositor.

A instrumental "Cara de Velocidad" chega para aquecer o ouvinte para o que vem pela frente para finalizar a primeira parte do álbum. Primeiro vem "Esperando Nacer", uma das melhores canções da história do rock argentino. De arranjo espetacular, é uma balada sem defeitos com todos os instrumentos destacados em algum momento, mostrando a força do coletivo para criar a faixa. O lado A encerra com "20 Trajes Verdes", uma homenagem a Erick Satie — reza a lenda que, quando ele morreu e entraram na casa dele, encontraram 20 ternos verdes.

O lado B abre com "Cinema Verité", um depoimento sincero sobre a situação da Argentina. Semelhante ao Brasil, eles sofrem muito com a inflação e outros problemas terríveis que impedem o país de colocar para fora todo potencial. É outra faixa com um arranjo sensacional e emenda com a alegre "En la Vereda Del Sol", mostrando que a banda também explorava muito bem o pop da época.

García criticou o consumismo das classes sociais mais abastadas em "Jose Mercado", faixa que começa cheia de tambores e com influência da música brasileira, mas logo parte para aquilo que marcou a música dos anos 1980: o uso do sintetizador. Em uma canção que lembra os melhores momentos do synth-pop, ele parte para o experimental de um jeito que faz parecer ser outra banda, mas não é.

Em "Salir de la Melancolía", o Serú prova ser genial em uma faixa com menos de dois minutos de duração. Também inspirada na música brasileira, a canção só peca em uma coisa: é muita curta. Mas é genial mesmo assim. O disco encerra com a melancólica "Lo Que Dice la Lluvia", essa um soco no estômago daqueles bem dados e inesquecíveis, uma paulada sonora feita para os corações partidos. Um golaço em final de Copa do Mundo.

Tirando a faixa de abertura, uma picuinha entra cantor e crítica que pegou mal para Charly García, o restante de "Peperina" é simplesmente genial. Bem gravado, com arranjos incríveis e letras espetaculares, é a obra-prima do Serú Girán, um trabalho para encerrar a carreira da melhor maneira possível de uma das melhores bandas da história do rock latino.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - "Peperina" (3:39) (Charly García)
2 - "Llorando En El Espejo" (4:05) (García)
3 - "Parado En El Medio de la Vida" (2:21) (David Lebón)
4 - "Cara de Velocidad" (2:40) (Lebón)
5 - "Esperando Nacer" (5:48) (García/Lebón)
6 - "20 Trajes Verdes" (2:02) (García)

Lado B

7 - "Cinema Verité" (4:50) (García)
8 - "En la Vereda Del Sol" (4:19) (García/Lebón)
9 - "Jose Mercado" (3:06) (García)
10 - "Salir de la Melancolía" (1:52) (García)
11 - "Lo Que Dice la Lluvia" (5:08) (Pedro Aznar)

Gravadora: SG Discos
Produção: Serú Girán
Duração: 40min02

Charly García: piano digital Yamaha CP-70, piano acústico, piano Wurlitzer, piano Fender Rhodes, órgão, Clavinet, sintetizador Mini Moog, síntetizador Moog Opus 3, Moog Satellite e vocal
David Lebón:
guitarra, violão, tumbadoras, timbales, percusão e vocal
Pedro Aznar:
baixo, baixo fretless, contrabaixo, módulo Oberheim, sintetizador polifónico Oberheim OB-X, piano acústico, violão e vocal
Oscar Moro:
bateria e percussão
Amílcar Gilabert:
engenheiro de som

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