Discos para história: Clics Modernos, de Charly Garcia (1983)

História do disco

Charly Garcia é considerado um dos grandes músicos da história do rock argentino. Para muitos, ele é o grande músico da história do rock argentino. Nos anos 1970, ele fez parte de duas bandas fundamentais do gênero: Sui Generes e La Máquina de Hacer Pájaros, quando estava imerso no rock progressivo. Ainda no final daquela década, Garcia funda o Serú Giran, no início de uma nova onda que dominou a música local.

Mas ele é desses personagens inquietos, pessoal e musicalmente. Primeiro, descoloriu metade do famoso bigode; depois, aproveitou o fato da proibição das rádios em tocar música em inglês, por conta da Guerra das Malvinas, para lançar o primeiro disco da carreira solo, chamado "Yendo de la Cama al Living", com o hit "No bombardeen Buenos Aires".

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Para o lançamento do álbum, ele lotou o estádio do time Club Ferro Carril Oeste, com capacidade para 25 mil pessoas, em 26 de dezembro de 1982. Foi ali o início da trajetória que solidificou Garcia como um grande músico. Mas ele sabia que precisava de mais. E, vivendo o auge criativo aos 31 anos, sabia exatamente o que fazer para atingir o nível desejado: mudar-se para Nova York.

Espécie de Meca Musical mundial, talvez empatada com Londres, a cidade americana não era um lugar muito receptivo para ninguém no início dos anos 1980. Suja, mal-cuidada e dominada por máfias e gangues, era também um lugar onde a criatividade artística imperava. De Andy Warhol a Madonna, muitos acreditam que aquela época foi o auge da cultura pop em geral. Foi nesse lugar que Charly Garcia se estabeleceu e passou a assistir apresentações dos mais diversos artistas. Diferentemente da facilidade de hoje, ter acesso a bons equipamentos e instrumentos dependia de uma viagem ou de alguém disposto a trazê-los. Instalado, acabou comprando alguns "brinquedinhos": sintetizadores, samplers, gravadores e a bateria eletrônica Roland TR-808. Essa parafernália musical foi o primeiro passo para as demos do que seria "Clics Modernos".

Em uma dessas coisas do destino, reencontrou o amigo e ex-companheiro de Serú Giran Pedro Aznar, já algum tempo nos Estados Unidos, autoexilado por conta da ditadura militar argentina, e estudante na Berklee College of Music. Quando começaram os primeiros ensaios para o disco, os dois perceberam ter um ótimo material em mãos. Porém, sem apoio de uma grande gravadora, restava fazer tudo de modo independente. Ou seja, ele tiraria dinheiro do próprio bolso para pagar as gravações, primeiro em estúdios menores em Nova York e Los Angeles, depois no imponente e importante Electric Lady Studios. 

Mais álbuns dos anos 1980:
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Praticamente vizinho do Electric Lady Studios, Garcia apareceu no local e manifestou o desejo em alugar uma sala para gravar o futuro álbum de estúdio. Mal recebido por quem estava tomando conta do local na hora, rapidamente o cenário mudou de figura quando mostrou que tinha dinheiro para pagar pelo estúdio. Naquele momento, mostraram a ele uma lista com produtores e engenheiro de som disponíveis. Na última posição, contra todas as possibilidades, estava Joe Blaney.

Blaney havia sido engenheiro de som em "Combat Rock", do Clash, e rapidamente atendeu ao chamado telefônico prometendo ir ao estúdio no dia seguinte. A conversa fluiu, Garcia mostrou os álbuns lançados até ali e algumas das demos em que havia trabalhado nos últimos meses. O futuro produtor tinha muitas questões sobre o método de gravação de Garcia, porque, com toda experiência, nunca ouviu nada parecido. Quando soube que ele era argentino, a coisa não ficou muito melhor. Mas topou.

O trabalho começou com Garcia no vocal e instrumentos diversos e Aznar no baixo. A princípio, a ideia era montar uma banda em estúdio para gravar, o que não funcionou. Baterista experiente e parte de banda do virtuoso músico tchecoeslovaco Jon Hammer, Tony Smith apareceu no estúdio e simplesmente não dava liga. Blaney não teve outra escolha a não ser sugerir manter como a demo havia sido feita, com a bateria eletrônica. Garcia concordou rapidamente, para não perder tempo e dinheiro em uma sessão no caro estúdio.

Quem funcionou muito bem e encaixou como uma luva foi o guitarrista Larry Carlton, músico de estúdio de Michael Jackson, Sammy Davis Jr., Quincy Jones, Steely Dan, Joni Mitchell, Paul Anka e John Lennon, mesmo assim, só depois de uma longa entrevista descarada por parte de Charly. "Por que gosto mais dos álbuns em que você toca com Steely Dan ou Joni Mitchell do que o seu como solista ou com The Crusaders?", perguntou, em trecho retirado da autobiografia do músico argentino "No Digas Nada", de 2013.

Veja também:
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"Porque os solos que toco com Steely Dan e Joni Mitchell são escritos por Steely Dan e Joni Mitchell. Faço cinco ou seis versões da mesma música e eles as juntam. Eles usam a primeira parte de um solo, depois os próximos do segundo e assim por diante", respondeu o guitarrista.

Para a bateria, o problema foi resolvido com a contratação de Casey Scheverrell, que até chegou com novas ideias, todas barradas por Garcia. Ele deveria tocar exatamente como estava na demo e pronto. Por fim, o saxofonista Doug Norwine, outro músico de estúdio, recebeu uma única instrução no solo de "Nuevos Trapos": tocar até ficar sem ar. 

Uma semana antes do lançamento, em 30 de outubro de 1983, Raúl Alfonsín vencia as eleições com 51,7% dos votos e a Argentina se preparava para o retorno da democracia após os lamentáveis anos de ditadura. A posse aconteceu em dia 10 de dezembro daquele ano. Nesse período, "Clics Modernos" havia virado um estouro e jogado Charly Garcia ao estrelato definitivo ao ser new wave, new romantic, synth-pop e pop ao mesmo tempo.

Lançado em 5 de novembro de 1983, o álbum foi considerado desde o início algo único, a inauguração dos anos 1980 na música argentina. E era impossível separar o disco da ditadura, afinal, as letras ainda remetiam ao período encerrado semanas antes. Para celebrar o sucesso, em 15 de dezembro, um show no Luna Park foi feito. E, na banda, estava um jovem tecladista de nome Fito Páez e uma cantora chamada Fabiana Cantillo, dois futuros ícones da música local.


Crítica de "Clics Modernos"

A temática política do álbum começa na faixa de abertura, chamada "Nos siguen pegando abajo", falando sobre a invasão de um local de música pela polícia e dois jovens acabam sendo espancados. O estilo pop alegre funciona como pano de fundo para mostrar um cenário comum durante a cruel ditadura entre 1976 e 1983. A censura ainda não aceitou o nome original de "Pecado Mortal", fazendo Charly Garcia mudar em cima da hora.

Claro que o tango não poderia ficar de fora e aparece em "No soy un extraño", quando fala do período em Nova York e como é difícil e empolgante mudar usando o estilo musical consagrado mundialmente pelos argentinos. E as críticas recebidas por estar, segundo os críticos, "esgotado musicalmente" ganha um tom irônico "Dos cero uno". Aqui, o uso da bateria eletrônica para dar o andamento faz toda diferença.

A política retorna em "Nuevos trapos" ao abordar o Processo de Reorganização Nacional, feito pelos generais da ditadura, e a Guerra das Malvinas, então recentemente finalizada. Tudo acontecendo e a vida das pessoas seguindo quase normalmente ("Y mientras todo el mundo sigue bailando/ Se ven dos pibes que aún siguen buscando/ Encontrarse por primera vez"). O lado A encerra com uma celebração aos argentinos em "Bancate ese defecto" em que usar os próprios feitos para ser criativo é o melhor caminho para eles. A linha de baixo na parte final é sensacional.

O apuro passado por Garcia durante a ditadura surge no desabafo "No me dejan salir". Pressionado pela censura, pelos militares e precisando ensaiar escondido no porão de uma oficina, a vida era difícil, mas a vontade de quebrar as regras era ainda maior ("Ya no sirve vivir para sufrir/ ¿Te das cuenta? Sacate el mocasín/ No puedo calmar, no puedo parir/ No puedo esperar mil años que cambie el viento"). A faixa ainda tem o sampler do grito de James Brown, o primeiro do tipo em um álbum.

Canção mais famosa de toda discografia de Charly Garcia, "Los dinosaurios" funcionou como um hino do final da ditadura, uma lembrança de tempos tão horríveis, inescrupulosos e lamentáveis, quando qualquer um poderia sumir e não voltar mais ("Los amigos del barrio pueden desaparecer/ Los cantores de radio pueden desaparecer/ Los que están en los diarios pueden desaparecer/ La persona que amas puede desaparecer").

O sofrimento dos amigos exilados não foi esquecido e aparece em "Plateado sobre plateado", outra faixa que teve o nome original alterado por pressão da ditadura. "Huellas en el Mar" é uma metáfora para explicar que fugir é a única maneira de continuar presente na memória das pessoas ao continuar fazendo a própria arte, ainda que do outro lado do oceano. O álbum encerra com a balada profundamente bonita "Ojos de video tape" para falar das mudanças do mundo no início dos anos 1980 ("Este mundo extrañará por siempre/ La película que ví una vez/ Y este mundo te dirá que siempre/ Que es mejor mirar a la pared").

Com músicos espetaculares, uma produção acima da média e um Charly Garcia inspirado, "Clics Modernos" é considerado o segundo melhor disco de rock argentino de todos os tempos, atrás apenas de "Artaud", do Pescado Rabioso. Reflexo da Argentina dos anos 1980 e de um cantor inspirado em querer evoluir o próprio trabalho, o álbum uma coleção de canções que não envelhece ano após ano e reverenciado desde então.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - "Nos siguen pegando abajo" (3:30)
2 - "No soy un extraño" (3:18)
3 - "Dos cero uno" (2:09)
4 - "Nuevos trapos" (4:08)
5 - "Bancate ese defecto" (4:56)

Lado B

6 - "No me dejan salir" (4:21)
7 - "Los dinosaurios" (3:28)
8 - "Plateado sobre plateado" (5:02)
9 - "Ojos de video tape" (3:37)

Todas as músicas foram escritas por Charly Garcia

 Gravadora: Interdisc/ SG Discos
Produção: Charly García
Duração: 34min29 

Charly García: vocal, teclado, samplers, groovebox, efeitos, rhythm box e guitarra; mixagem
Larry Carlton: guitarra em "No Soy Un Extraño", "Los Dinosaurios" e "Plateado Sobre Plateado"
Pedro Aznar: baixo; vocal e guitarra em "Nos Siguen Pegando Abajo"
Casey Scheuerell: bateria em "Bancate Ese Defecto", "No Me Dejan Salir" e "Plateado Sobre Plateado (Huellas En El Mar)"; bateria Simmons em "Nos Siguen Pegando Abajo" e "No Me Dejan Salir"; tabla em "Dos Cero Uno"
Doug Norwine: saxofone em "Nuevos Trapos" 

Joe Blaney: engenheiro de som, coprodutor e mixagem
Ted Jensen: masterização
Daniel Goldberg e Carlos Pirín Geniso: produtor assistente
Don Koldom e Hal Sacks: engenheiro de som auxiliar

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