Discos para história: Artaud, do Pescado Rabioso (1973)

História do disco

Formado em 1971, o Pescado Rabioso encerrou as atividades como banda dois anos depois. Certo dia, os outros integrantes simplesmente não apareceram mais para os ensaios e Luis Alberto Spinetta estava sozinho, como no primeiro disco solo chamado "Spinettalandia y sus amigos". Aliás, Spinettalandia é uma boa palavra para definir a carreira musical de um dos melhores músicos argentinos de todos os tempos.

Quando soube que ninguém mais seria parte do Pescado Rabioso por discordância da visão musical de Spinetta para a banda, ele tomou o projeto para si e resolveu colocar para fora várias coisas que estavam acontecendo na vida pessoal e na vida política da Argentina. O país já havia enfrentado um golpe em 1966 que retirou do poder o presidente constitucional Arturo Illia, mas o reestabelecimento da democracia e a volta de Juan Domingo Perón à presidência deu esperança aos argentinos — uma década depois, a ditadura militar seria instaurada definitivamente até 1983.

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Fora dos palcos, o cantor conheceu Patricia Salazar, com quem iniciaria uma relação pelos próximos 25 anos e teria quatro filhos. E na mesma época, ele começou a ter contato com a obra do dramaturgo francês Antonin Artaud, um subversivo nas artes, alguém que gostava de provocar e enfrentar o status quo da sociedade francesa no início do século XX e considerado o pai do teatro moderno.

O impacto foi tamanho que o futuro álbum seria uma resposta ao que ele acreditava, um contraponto do argentino às principais obras do escritor e, no contexto da época, qual era o papel dos músicos e do rock naqueles dias tão confusos para todos, ainda mais para um Spinetta de apenas 23 anos. Além disso, ele estava farto do ambiente do rock, das drogas, da falsa espiritualidade e do baixo teor das relações humanas. Foi nesse momento que os outros integrantes, mais interessados no rock puro e no R&B, acabaram pulando fora.

"Quero esclarecer que dediquei esse álbum ao Artaud, mas em nenhum momento tomei suas obras como ponto de partida. O álbum foi uma resposta ao sofrimento que a leitura das obras traz para você. Quem leu não consegue escapar de um certo desespero. Para Artaud, a resposta do homem é a loucura; para [John] Lennon, é o amor. Acredito mais no encontro da perfeição e do sofrimento", explicou ao biógrafo Eduardo Berti no livro "Spinetta: Crónica e iluminaciones", de 2014. 

Mais álbuns dos anos 1970:
Discos para história: New York Dolls, do New York Dolls (1973)
Discos para história: Pérola Negra, de Luiz Melodia (1973)
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Discos para história: Sonhos e Memórias 1941–1972, de Erasmo Carlos (1972)
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Discos para história: La Biblia, do Vox Dei (1971)

Spinetta queria partir para a carreira solo, coisa que ele só faria em 1977 ao deixar o supergrupo de rock progressivo Invisible. Porém, havia um contrato a cumprir com a gravadora Talent-Microfón. Em uma reunião, ele disse que os outros músicos apenas o acompanhavam, já que as ideias das músicas e dos arranjos eram dele. Ele era o Pescado Rabioso, então não seria injusto manter o nome para cumprir o acordo assinado dois anos antes.

Para compor as letras do álbum, Spinetta se refugiou na casa dos pais e ficou imerso na leitura de dois livros de Artaud: "Heliogabalo ou o Anarquista Coroado", de 1934, e "Van Gogh, o suicidado da sociedade", de 1947. As músicas, ele compôs sozinho; as letras, em momentos de pura intimidade, tiveram colaboração de Patricia, com quem praticou pela primeira vez o exercício do desapego ao ego em busca de algo maior para o desenvolvimento do próprio trabalho.

Essa grande experimento pessoal e político precisava de um acompanhamento potente e confiável para encontrar o tom certo para cada canção. Foi aí que Spinetta recorreu ao irmão, Gustavo Spinetta, na bateria, e dois dos ex-colegas do Almendra: o baterista Rodolfo García e o baixista Emilio del Guércio. Acabou que cada contribuição foi fundamental para dar a sonoridade tão conhecida e exaltada no que os argentinos consideram ser o melhor álbum feito na história do país. 

Veja também:
Discos para história: An Evening with Billie Holiday, de Billie Holiday (1953)
Discos para história: Night Beat, de Sam Cooke (1963)
Discos para história: Modern Vampires of the City, do Vampire Weekend (2013)
Discos para história: Elephant, do White Stripes (2003)
Discos para história: Last Splash, das Breeders (1993)
Discos para história: The Hurting, do Tears for Fears (1983)

Considerado especial desde os primeiros dias de produção, "Artaud" ganhou um design muito diferente e reconhecível de longe. Ao invés de uma capa quadrada, a primeira edição tem o formato octogonal irregular de quatro pontas e era impossível guardá-lo de maneira adequada, forçando muitas lojas a devolver o álbum, que tinha uma foto do Artaud mais velho na frente, enquanto no verso tem uma foto do escritor mais jovem.

Lançado em 2 de outubro de 1973, "Artaud" foi o rompimento definitivo de Spinetta com o rock comercial. A partir desse trabalho, ele formaria bandas, projetos e tocaria a carreira solo como uma expressão de si, um espelho que ele sempre pudesse reconhecer quem era aquele homem naquele determinado momento. O rock latino-americano não seria mais o mesmo após esse álbum, um antes e depois admirado por contemporâneos e futuros músicos importantes.

Resenha de "Artaud"

"Todas las Hojas Son del Viento" foi escrita quando ainda namorava Cristina Bustamante, que havia engravidado recentemente, e ainda estava na dúvida se teria ou não o filho. Flaco reflete sobre o possível nascimento e aconselha os futuros pais, e um pouco a si, de como tratar a criança. Mudando de uma futura vida para a morte, Spinetta parte para um blue/jazz melancólico chamado "Cementerio Club" que, para Gustavo Cerati, tem o melhor solo de guitarra da história do rock argentino — ele copiaria esse mesmo solo em "Té Para 3", no MTV Unplugged do Soda Stereo.

A curta "Por" apresenta uma composição cheia de palavras espalhadas, mas que acabam fazendo sentido no arranjo escolhido para ela, e isso faz toda diferença em deixá-la agradável. E feita a partir da inspiração da obra de Artaud, "Superchería" distingue o sonho e o devaneio da crença religiosa, e traz um dos versos mais famosos da discografia do músico ("Siempre temblar, nunca crecer/ Eso es lo que mata tu amor/ Siempre llorar, nunca reír/ Eso es lo que mata tu amor/ Lo mismo da morir y amar").

Para encerrar o lado A, Flaco faz uma reflexão da relação entre público e artista "La Sed Verdadera" ao insistir em nunca se colocar na posição de alguém superior a quem o assiste unicamente por ser famoso. No caso dele, a luta existe para evitar isso ao máximo e não cair na fácil tentação da bajulação e facilidades.

Com mais de nove minutos de duração, "Cantata de Puentes Amarillos" é mais uma 100% inspirada na leitura das obras de Artaud, mas principalmente nas cartas de Van Gogh ao irmão Théo. Dividida em cinco partes, é uma homenagem a todas as pessoas marginalizadas pela sociedade, levanta questões sobre a violência na Argentina desde o final dos anos 1960 e dialoga primeira geração do rock local e como eles estão após essa primeira onda de sucesso.

O rock, já não tão interessante para Spinetta, acaba aparecendo em "Bajan", quando as horas podem trazer excitação e ansiedade e que o caminho para conseguir o desejado precisa ser agradável, não tortuoso. E se "A Starosta, el Idiota" é a tradução dos próprios sentimentos e da vida Spinetta, entre ouvir Beatles e chorar, "Las Habladurías del Mundo", inspirada na passagem do guitarrista Carlos Santana pela Argentina, aborda a relação do músico com a imprensa em outro refrão marcante ("No estoy atado a ningún sueño ya/ Las habladurías del mundo no pueden atraparno").

Tentar classificar "Artaud" em algum gênero musical é uma completa perda de tempo. Spinetta usou o último disco como Pescado Rabioso para mostrar ao mundo que estava pronto para voos mais altos e não ficaria restrito a qualquer etiqueta colocada nele por terceiros. Atemporal, o álbum de capa estranha já chamaria a atenção de qualquer maneira, mas o músico conseguiu fazer uma obra-prima para eternidade.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - "Todas las Hojas Son del Viento" (2:12)
2 - "Cementerio Club" (4:55)
3 - "Por" (1:45)
4 - "Superchería" (4:21)
5 - "La Sed Verdadera" (3:32)

Lado B

6 - "Cantata de Puentes Amarillos" (9:12)
7 - "Bajan" (3:26)
8 - "A Starosta, el Idiota" (3:15)
9 - "Las Habladurías del Mundo" (4:03)

Gravadora: Talent-Microfón
Produção: Luis Alberto Spinetta e Jorge Álvarez
Duração: 36min56

Luis Alberto Spinetta: vocal, guitarra, violão, piano, maracas e prato
Carlos Gustavo Spinetta: bateria em "Cementerio Club" e "Bajan"
Emilio Del Guercio: baixo em "Cementerio Club", "Superchería", "Bajan" and "Las Habladurías Del Mundo"; vocal de apoio em "Superchería" e "Las Habladurías Del Mundo"
Rodolfo García: bateria, sinos e vocal de apoio em "Superchería" e "Las Habladurías Del Mundo"

Norberto Orliac: engenheiro de som

Comentários

  1. Tenho ouvido esse disco recentemente, não o conhecia, e sem dúvida é uma obra de arte.
    Bom ler um texto em português sobre ele, foi difícil achar conteúdos do tipo.
    Parabéns pela iniciativa!

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