Discos para história: Pérola Negra, de Luiz Melodia (1973)

História do disco

"Acho que tinha 19 anos aí. Nunca pensei em ser artista. Eu era apenas um garoto que fazia e tocava umas músicas. Queria mesmo era ser jogador de futebol. Meu sonho era jogar no Maracanã", disse Luiz Melodia, em entrevista ao jornal 'O Dia', na celebração dos 40 anos de "Pérola Negra", em 2013, o primeiro e mais famoso álbum da carreira.

Morto em 2017, aos 66 anos, em consequência de um câncer de medula, Luiz Carlos dos Santos, nascido em 7 de janeiro de 1951, foi desses nascido e criado no Rio de Janeiro. Mais precisamente, era uma cria do Estácio, o berço do samba e do Estácio de Sá. Mesmo rodeado de influências musicais dentro e fora de casa, não tinha o apoio do pai para virar músico. Como muitos daquela época, Oswaldo dos Santos, funcionário público, tocador de viola de quatro cordas e compositor, sonhava em ver o filho doutor, mas o instrumento que tinha em casa era o sonho do pequeno Luiz. Lá, escondido, tirou os primeiros sons. Jovem Guarda, claro. Era a moda da época, bicho. E também Louis Armstrong, jazz, blues, Elvis Presley e baladas românticas. Ele ia aprendendo tudo de ouvido.

O talento se sobressaiu e aos 12 anos começou a dar os primeiros passos em meio a empregos de tipógrafo, vendedor e caixeiro. A noite, dedicava-se a música. E qualquer lugar era lugar para tocar. Mesmo não gostando, acabou herdando o apelido do pai, Melodia, ainda no início da carreira artística. E quanto menos ele gostava, mais o apelido pegava. Acabou vencido pelo cansaço.

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Integrante do grupo Os Instantâneos, ele abandonou os estudos ao terminar o sexto ano do ginásio para focar nas composições. E quando mais trabalhava, melhor tocava e escrevia. Para tirar uma grana, tocava os sucessos da Jovem Guarda e da bossa nova em apresentações pela cidade, sem deixar de lado a influência do samba, presente no ar assim que retornava ao Estácio.

Em uma ida ao morro para ouvir samba, em 1971, o agitador cultural Waly Salomão acabou conhecendo Melodia por uma amiga em comum dos dois. Rapidamente, ele teve contato com as canções do jovem compositor e ficou completamente encantado e, um dia, o apresentou ao poeta e jornalista Torquato Neto, também bastante impressionado com o material. Melodia entrou no grupo dos Tropicalistas e passou a frequentar as reuniões do grupo na casa de Suzana de Moraes, filha do compositor Vinicius de Moraes, ou na casa de Jards Macalé.

Aos 20 anos, Melodia teve a vida mudada ao participar desse seleto grupo. Efervescência cultural pura, ele, cheio de influências, passou a ter ainda mais ideias. Foi por sugestão de Salomão mudar o título de uma música chamada "My Black, Meu Nego" para "Pérola Negra", mostrada para Gal Costa através de Waly, diretor artístico do show "Gal a Todo Vapor". Gal adorou e incluiu no repertório. Assim, com apresentações lotadas, o Brasil acabou conhecendo Luiz Melodia. 

Mais álbuns dos anos 1970:
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A imprensa foi como um bando de gafanhotos atrás do jovem compositor no Estácio, deixando os vizinhos confusos sobre o que estava acontecendo com o filho do Oswaldo e da Eurídice. Foi o primeiro passo do sucesso, consagrado quando Maria Bethânia gravou "Estácio, Holly Estácio", no ano seguinte, no álbum conceitual "Drama – Anjo Exterminado".

A música brasileira estava passando por transformações no início dos anos 1970 com o surgimento de novos artistas e novas abordagens nas composições. Secos e Molhados, Novos Baianos, Milton Nascimento, Raul Seixas, Tom Zé, Som Imaginário, Marcos Valle, Sérgio Sampaio, Sá, Rodrix e Guarabyra, Tim Maia, Cassiano, Fagner e Ednardo são apenas alguns exemplos do frescor de 1973. E Luiz Melodia estava entre eles. Contratado por Roberto Menescal, diretor artístico da Philips/Phonogram, logo foi empresariado por Guilherme Araújo, que trabalhava com Caetano Veloso, Gilberto Gil e a própria Gal. Ele era o mais novo da turma, mas não menos talentoso.

Em dezembro de 1972, Melodia entrou nos estúdios da Polygram para gravar o primeiro álbum da carreira, com músicas inspiradas em uma mulher chamada Deda, namorada de Salomão e primeiro amor adulto. As gravações, com artistas de alta qualidade o acompanhando, começaram no início de janeiro do ano seguinte e o planejamento era trabalhar firme das 9h às 15h, todos os dias, a tempo de lançar o trabalho na época do carnaval. Mas não deu.

A censura, órgão da ditadura militar, barrou duas canções: "Feras que virão" e "Feto, poeta do morro", atrasando em três meses a prensagem e o lançamento do trabalho, frustrando os planos do cantor e da gravadora. "Pérola Negra" foi colocado nas lojas em junho de 1973 e foi muito elogiado pela crítica da época, mas as vendas foram baixíssimas. Naquele mesmo ano, Fagner, Sérgio Sampaio e Raul Seixas também foram lançados como revelações. Só um deles, Raulzito, explodiu em vendas. 

Veja também:
Discos para história: Black Coffee, de Peggy Lee (1953)
Discos para história: Live At The Apollo, de James Brown and the Famous Flames (1963)
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Pressionado a gravar um segundo disco logo em seguida, Melodia não quis por não se sentir preparado para isso, nem querer gravar um álbum só de sambas. A fama de difícil colou, ele acabou deixando a Philips pouco tempo depois e só lançaria o segundo álbum, "Maravilhas Contemporâneas", em 1976, pela Som Livre. Seria só o primeiro exemplo de como ele jamais abandonaria a qualidade artística pela fama fácil.

Essa estreia mostra como ele foi uma dessas estrelas raras da música brasileira. Com um álbum só com composições próprias, ele chegou com moral em um tempo de busca por talentos era pura e simplesmente pela música. Luiz Melodia chegou e deixou um registro inesquecível.

Resenha de "Pérola Negra"

O acompanhamento de Regional de Canhoto e a flauta de Altamiro Carrilho dão o tom de "Estácio, Eu E Você", faixa de abertura de "Pérola Negra". Pela expectativa de ouvir um LP de samba, abrir com um choro deve ter decepcionado muita gente. Mas assim era Luiz Melodia, nada fixo em qualquer regra musical. Ele gravava o que tinha vontade e pronto. E se tem um álbum que começa bem, esse é "Pérola Negra".

O arranjo de "Vale Quanto Pesa" é uma dessas provas de como a música brasileira nos anos 1970 era bem gravada, bem dirigida, bem escrita e bem executada. O início dramático logo vira um samba cheio de qualidade e fica nesse jogo até o final. A balada romântica "Estácio, Holly Estácio", com a gaita dominando as ações, é uma das melhores da carreira de Melodia ("Se alguém quer matar-me de amor/ Que me mate no Estácio/ Bem no compasso/ Bem junto ao passo/ Do passista da escola de samba/ Do Largo do Estácio").

Inspirada pela Jovem Guarda, "Pra Aquietar" brinca com as palavras em pouco menos de três minutos e serve como homenagem àqueles que inspiraram o compositor no início da carreira a ser músico e conta com Hyldon na guitarra. Para fechar o lado A, "Abundantemente Morte" mostra o estilo vocal suave de Melodia, aprimorado ao longo dos anos, em uma letra melancólica e muito bonita ("No dia seguinte/ O seguinte falhou") inspirado no blues.

O lado B abre com a faixa-título. "Pérola Negra" virou um desses clássicos eternos da MPB nas vozes de Gal Costa e do próprio Melodia. Aqui, o arranjo de metais dá força às palavras quase sussurradas. É difícil não ficar emocionado ao ouvi-la, principalmente ao lembrar que os dois principais intérpretes não estão mais entre nós.

O blues retorna em "Magrelinha", outro sucesso do trabalho. É uma dessas declarações de amor que só um homem de 20 e poucos anos consegue fazer sem soar piegas aos ouvidos. A guitarra de Renato Piau é o destaque de "Farrapo Humano", enquanto "Objeto" completa a tríade de canções inspiradas no R&B americano dos anos 1950 ("Um dia volto, digo 'você não foi comigo'/ 'Ninguém mais leu meu signo'"). E com a lendária participação de Daminão Experiença, a primeira em um disco, e de Doninguinhos no acordeon, "Forró De Janeiro" fecha o trabalho no forró mais experimental que você vai ouvir.

Mergulhado em diversos ritmos musicais, Luiz Melodia colocou todas essas influências para jogo no monumental "Pérola Negra". Cinquenta anos após o lançamento, o disco ainda é influente na vida das pessoas e serve como referência até hoje. Esse trabalho é a maior prova de que Luiz Melodia jamais será esquecido.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - "Estácio, Eu E Você" (Part.: Regional Do Canhoto) (2:14)
2 - "Vale Quanto Pesa" (3:08)
3 - "Estácio, Holly Estácio" (2:26)
4 - "Pra Aquietar" (2:10)
5 - "Abundantemente Morte" (3:25)

Lado B

1 - "Pérola Negra" (2:47)
2 - "Magrelinha" (2:06)
3 - "Farrapo Humano" (3:06)
4 - "Objeto" (2:23)
5 - "Forró De Janeiro" (Part.: Daminhão Experiença) (3:10)

Todas as músicas foram escritas por Luiz Melodia

Gravadora: Philips/Phonogram
Produção: Guilherme Araujo
Duração: 28min01

Luiz Melodia: vocal
Perinho Albuquerque: violão e guitarra; direção musical
Hyldon e Renato Piau: guitarra
Rubão Sabino e Fernando Leporace: baixo
Robertinho Silva e Luis Paraguai: percussão
Don Lula Nascimento: bateria; percussão
Antonio Perna e Hugo Bellard: piano
Rildo Hora: gaita
Altamiro Carrilho: flauta
Márcio Montarroyos: trompete
Dominguinhos: acordeon
Daminhão Experiença: vocal de apoio em "Forró de Janeiro"
Arthur Verocai: arranjos

Direção de Estúdio: Sérgio M. De Carvalho
Gravação: Luigi, Luiz Paulo e Yeddo

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