Discos para história: La Biblia, do Vox Dei (1971)


História do disco

"Sua banda é especial, mas, por que tendo todo esse idioma à disposição, vocês cantam em inglês?". Quem disse isso foi o então jovem Luis Alberto Spinetta quando, ao ver o que seria o Vox Dei em uma apresentação ao vivo, ficou chocado com o talento deles mesmo cantando em inglês. O vocalista Willy Quiroga deu razão ao rapaz. E foi o início de uma transformação.

O nome do grupo não nasceu de cara. Como tantas outras histórias pelo mundo, eles seriam lembrados por um nome diferente daquele inicial. Mas, definitivamente, Mach 4 não era um bom nome. Até que Quiroga leu a frase em latim "a vox populi, voz Dei", algo como "a voz do povo é a voz de Deus — há controversas, claro. Ele gostou e convenceu os colegas a mudar. Eles aceitaram.

Nascido em 1968, o grupo começou cantando em inglês inspirados por Beatles, Rolling Stones, Kinks e Byrds, mas os produtores Jorge Álvarez e Pedro Pujó viram potencial neles para músicas em espanhol. E assim veio o primeiro álbum, chamado "Caliente", lançado em 1970, pelo selo Mandioca.

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Naquela época, a Argentina estava vivendo as consequências do quinto golpe de Estado em 70 anos do século XX — o que explica, e muito, a instabilidade no país até hoje. Bandas eram perseguidas, havia a chamada "fuga de cérebros", tentativas de revoluções populares e o surgimento de guerrilhas para lutar contra junta militar no poder.

Com tudo isso acontecendo nos últimos anos, definitivamente, não era hora de lançar um disco conceitual tentando explicar a Bíblia, certo? Mas essa era a ideia do Vox Dei, capitaneada pelo vocalista e guitarrista Ricardo Soulé. "O milagre da Bíblia é apresentado a mim pelo meu sogro. Percebi ter muitas mensagens que podiam ser entendidas à primeira vista e outras que exigiam muita dedicação para serem entendidas", disse Soulé ao site do jornal 'Los Andes', no início de 2021.

"Então, na minha pequenez, tentei levar para uma linguagem explicativa e, fundamentalmente, que eu mesmo pudesse entender. A Bíblia tem um conhecimento tão grande que reúne valores de todos os pontos de vista e disciplinas", completou.

Ler a Bíblia e conseguir traduzir de maneira a deixá-la mais atraente para leitura e para a criação de uma música, era um trabalho complicadíssimo de oito meses de dedicação intensa não só para ler o livro sagrado do cristianismo e também de leituras adicionais para tentar entender determinados trechos, parábolas, conversas e momentos importantes.

Tudo isso com anuência de Álvarez, mais uma vez convidado para ser o produtor. Em um tempo em que bandas e artistas eram perseguidos por qualquer motivo, a liberdade criativa era um bem a ser conservado. As mais de 150 horas de gravação no estúdio TNT eram outro milagre, dado que as horas em estúdio eram um investimento pesado para uma gravadora independente. E ficou ainda maior quando decidiram lançar um disco duplo. Era um risco enorme.

Risco que quadruplicou de tamanho quando a gravadora faliu e as fitas gravadas, as demos e potenciais ideias simplesmente desapareceram. Contornar tudo isso faria do lançamento um milagre — é por isso que a última canção, "Apocalipsis", ficou sem voz e letra. E ainda havia um último obstáculo: a censura em vigor.

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Aliados da ditadura, a Igreja Católica local fez questão de ouvir o disco e ler as letras para corrigir o que julgava não estar "correto" ou "nas normas eclesiásticas". O caso do grupo ficou com o Monsenhor Emilio Teodoro Graselli, que elogiou o trabalho das composições e fez poucas correções. "Eu teria levado três horas para explicar o que é Deus e você acabou de entender com um silogismo" [a argumentação lógica perfeita, segundo Aristóteles], disse ele, no que é hoje uma frase clássica da história do rock argentino.

Toda banda muito famosa teve um grande momento transformador que mudou tudo de uma hora para outra. Umas demoram mais, outras menos, mas, geralmente, isso chega para todas. O Vox Dei conseguiu esse momento em um dos momentos mais difíceis da história da Argentina ao abordar um assunto espinhoso de extrema importância na vida de muitas pessoas. O resultado é um dos álbuns mais importantes do rock latino em todos os tempos.

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Resenha "La Biblia"

O rock progressivo surgiu em meados dos anos 1960 e foi crescendo enquanto gênero musical ao influenciar diversos artistas. O que nunca ficou muito claro até hoje é: existe um jeito certo para fazer uma música ou um álbum inteiro no estilo? Se é assim em 2021, em 1971 também não estava muito claro.

Por isso mesmo, o Vox Dei usou uma base de blues para construir as canções. E não só no andamento, mas também nas interpretações. Ao longo de quase 60 minutos de duração, "La Biblia" encanta por mostrar uma banda que ainda estava explorando a própria musicalidade ao mesmo tempo em que não tinha medo de arriscar em um álbum duplo sobre uma questão muito sensível para sociedade.

Canções como "Génesis" ganham muito com a guitarra ditando o ritmo e em belos solos ou na leveza do instrumento na bonita e reflexiva "Moisés". Depois o ritmo aumenta bastante em "Las Guerras", que lembra muito o motivo das bandas argentinas se destacarem pela energia e quase insanidade em um palco. E é na curta "Profecías" que eles mostraram também ter talento para canções mais simples.

A terceira e quarta parte do álbum reservam espaço para um dos versos mais bonitos da música argentina na linda e tocante "Libros sapienciales" ("Porque habrá siempre / Tiempo de plantar y de cosechar / Tiempo de hablar, también de callar / Hay tiempo para guerra y tiempo de paz / Tiempo para el tiempo y un rato mas").

Para fechar, duas canções instrumentais de alto nível ("Cristo - Nacimiento e "Apocalípsis" ) e "Cristo - Muerte y Resurrección", essa uma faixa que os fãs precisam dar o devido valor pelo clima country cheio de guitarras e viradas de tirar o fôlego.

"La Biblia" merece ser ouvido e reouvido ao longo dos anos. Por ser um trabalho independente, sobre um assunto difícil de ser tratado, lançado por uma gravadora independente e feito na base da raça, merece ainda mais respeito. O Vox Dei, no segundo álbum de estúdio da carreira, fez uma obra-prima de valor inestimável para qualquer um que goste de música.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - "Génesis" (6:38)
2 - "Moisés" (7:30)

Lado B

3 - "Las Guerras" (13:14)
4 - "Profecías" (2:17)

Lado C

5 - "Libros sapienciales" (7:35)
6 - "Cristo - Nacimiento" (Instrumental) (3:19)

Lado D

7 - "Cristo - Muerte y Resurrección" (10:34)
8 - "Apocalípsis" (Instrumental) (4:47)

Gravadora: Disc Jockey
Produção: Jorge Álvarez
Duração: 55min59s

Todas as músicas foram escritas por Ricardo Soulé

Willy Quiroga: voz e baixo
Rubén Basoalto: bateria e percussão
Ricardo Soulé: voz, guitarra, gaita, violino e piano
Juan Carlos "Yodi" Godoy: vocal de apoio e guitarra

Convidado:
Roberto Lar: regente da orquestra e do coro

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