Discos para história: Come Away with Me, de Norah Jones (2002)


História do disco

Ao nos depararmos com a história da música em determinados períodos, muitas vezes o choque da estrada percorrida pelo tempo é implacável. Em 26 de fevereiro, "Come Away with Me", o primeiro álbum da carreira de Norah Jones, completa exatos 20 anos do lançamento. Um choque, se pensarmos que passou tanto tempo e ela ainda segue fazendo sucesso.

A carreira dela é dessas que poderia ter ido para qualquer lugar. Nascida no Brooklyn e criada no Texas, ela é filha da produtora de shows Sue Jones e do citarista Ravi Shankar, melhor amigo do ex-beatle George Harrison, e se encantou com as obras de Bill Evans e Billie Holiday ainda na infância. Isso a motivou a estudar música clássica e a se formar pela University Of North Texas, quando começou as primeiras colaborações musicais no country com o músico Richard Julian e o vocalista Jesse Harris, hoje um colaborador de longa data na composição.

Mais Norah Jones:
Resenha: Norah Jones - Pick Me Up Off the Floor
Resenha: Norah Jones - Day Breaks

Em 1999, em busca de um contrato de gravação, Harris e Jones partiram para Nova York. Era o retorno da cantora após tantos anos para correr atrás do sonho de gravar um álbum. Jones começou fazendo shows em clubes com a JC Hopkins Biggish Band e chamou tanto a atenção ao ponto do experiente músico Peter Malick convidá-la para participar das gravações de "New York City", do Peter Malick Group — o álbum saiu apenas em 2003 com o nome da banda sendo The Peter Malick Group featuring Norah Jones.

Enquanto isso, sabe-se lá como, uma demo com três canções, sendo dois standards do jazz e uma composição inédita assinada por Harris, foi parar nas mãos de Bruce Lundvell, o chefe da Blue Note, e Michael Cuscuna, produtor e responsável pelos relançamentos da gravadora. Eles ficaram encantados, mas sabiam que a cantora estava sendo cortejada por outros selos. Eles não sabiam, mas tinham nas mãos um trunfo quase imbatível: estarem na Blue Note.

Estou no Twitter e no Instagram. Ouça o podcast, compre livros na Amazon e fortaleça o trabalho do blog!

Fundada em 1939 por Alfred Lion e Max Margulis, a gravadora virou a casa de alguns dos principais artistas da história do blues e do jazz, virando um lugar icônico para qualquer artista dos gêneros. A áurea da Blue Note encantava Jones desde a infância, quando ouvia as mais diversas histórias sobre os músicos e registros feitos lá. Estar nesse selo, para ela, era praticamente estar em pé de igualdade com os ídolos de uma vida inteira.

"Fiquei absolutamente emocionado quando Bruce assinou com Norah Jones. Ela era uma artista de jazz, tocando piano e cantando standards com um baixo acústico e um baterista de jazz", disse Cuscuna, alguns anos depois.

Com o contrato foi assinado, Jones começou a trabalhar nas demos e no lançamento do EP "First Sessions" (2001), quando gravadora detectou o que poderia ser um problema: as canções tinham muita influência do country e do pop, e pouco do jazz puro exaltado pela Blue Note ao longo dos mais de 60 anos de história até então. Cuscuna conta que chegaram a cogitar a mudança de Jones para outro selo dentro da gravadora, mas ela bateu o pé e negou a possibilidade.

"Quando suas demos começaram a mostrar mais direções pop e country, Bruce, com toda a sua preocupação com a integridade da Blue Note, ofereceu-lhe para assinar com o selo Manhattan, que era mais pop. Mas Norah disse: 'Não. Eu quero estar na Blue Note. Foi com quem eu assinei. Eu amo esse selo. Eu cresci com isso, e é onde eu quero estar'", contou ele.

Mais discos dos anos 2000:
Discos para história: Jessico, do Babasónicos (2001)
Discos para história: Love and Theft, de Bob Dylan (2001)
Discos para história: Ruido Rosa, do Pato Fu (2001)
Discos para história: White Blood Cells, do White Stripes (2001)
Discos para história: Acústico MTV, de Cássia Eller (2001)
Discos para história: Gorillaz, do Gorillaz (2001)

Era um movimento perigoso que poderia dar completamente errado para ambos. A Blue Note arriscava anos de tradição por uma novata, que poderia ser acusada de várias coisas e ver a carreira ainda em estágio inicial afundar com uma mancha ao carregar para sempre o fato de ter gravado um álbum pop na mais importante gravadora de jazz de todos os tempos. A expectativa era tão baixa, que vender 200 mil discos até o final de 2002 seria considerado um ótimo resultado.

A situação só piorou quando Jones mostrou-se desconfortável no estúdio e a primeiras sessões de gravações foram desastrosas. Ela não conseguia cantar direito e o trabalho simplesmente não andava da maneira adequada. Era torturante para ela. "Eu estava no estúdio com um monte de músicos que respeitava muito, mas não conhecia muito bem. Porque eu não estava super confortável, talvez seja por isso que não consegui", explicou ela, ao site do jornal 'The Guardian, em 2020.

Só quando o experiente e renomado produtor Arif Mardin entrou em cena para ajudar a iniciante cantora, a coisa andou com ajuda de músicos de estúdio incríveis. E andou de um jeito que poucos poderiam prever. Ele, com a experiência de quem já havia trabalhado com Bee Gees, Hall & Oates, Queen, Aretha Franklin, Dionne Warwick e outros, conseguiu tirar da cantora de apenas 22 anos o melhor em cada dia no estúdio. As canções foram saindo, uma a uma, com a naturalidade necessária para fazer do álbum de estreia um trabalho gravado da maneira como merecia ser desde o primeiro dia.

"Come Away with Me" foi lançado e estreou na posição número 139 na parada dos Estados Unidos ao vender pouco mais de dez mil cópias na primeira semana. Não foi considerado ruim. O que ninguém esperava era a subida progressiva do trabalho na parada ao longo dos dias culminando, em 26 de janeiro de 2003, na primeira posição. Era inacreditável.

Veja também:
Discos para história: Automatic for the People, do R.E.M. (1992)
Discos para história: 1999, de Prince (1982)
Discos para história: The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de David Bowie (1972)
Discos para história: Jessico, do Babasónicos (2001)
Discos para história: Pelusón of Milk, de Luis Alberto Spinetta (1991)
Discos para história: Peperina, do Serú Girán (1981)

"Ficaríamos emocionados se tivesse feito 200 mil, mas acabou vendendo 10 milhões de cópias por conta própria. Foi muito bizarro, uma daquelas coisas realmente bizarras de se ver acontecer", falou Cuscuna, nas celebrações de dez anos do disco, em 2012. Ao redor do mundo, o álbum vendeu mais de 25 milhões de cópias. No Brasil, a canção "Don't Know Why" fez parte da trilha sonora da novela "Mulheres Apaixonadas" e ajudou a impulsionar a carreira de Jones por aqui.

O álbum menos jazzístico lançado em toda história da Blue Note fez de Norah Jones um fenômeno mundial nos primeiros anos da década de 2000. Íntimo e feito para ser apreciado com calma, "Come Away with Me" transformou a vida dessa mulher, filha de dois ícones da música, ao ganhar vários prêmios ao longo de 2003. Apenas alguns meses mais velha do que Britney Spears e Christina Aguilera, Jones mostrava haver espaço para o outro lado do pop nas paradas em um dos melhores álbuns dos últimos 20 anos.


Resenha de "Come Away with Me"

Primeiro single do trabalho, "Don't Know Why" apareceu pela primeira vez no álbum Jesse Harris & the Ferdinandos, de 1999, banda do compositor Jesse Harris. Parceiro musical de Norah Jones desde a faculdade, ele cedeu a canção para a amiga e, hoje, deve estar feliz com os milhões de execuções da música que representa muito bem a primeira metade da carreira da cantora, quando ela cantou sobre a indecisão romântica.

A delicada "Seven Years", quase uma crônica escrita para qualquer mulher do mundo, vem na sequência e finca de vez Jones como uma intérprete acima da média. Mas é no cover de "Cold Cold Heart", de Hank Williams, o ponto alto do trabalho, quando ela vira praticamente dona desse clássico. E aí surge "Feelin' the Same Way", o segundo single, outro acerto na escolha do repertório.

A primeira de três canções escritas por Jones, "Come Away with Me" é uma balada muito delicada e de arranjo muito simples, mas fundamental para o primeiro passo em conseguir escrever mais letras no futuro. A sequência com "Shoot the Moon", "Turn Me On", quarto single do disco, e "Lonestar" é aquela parte que serve para o artista fincar o repertório no coração dos fãs. Ao conseguir sustentar o ritmo, Jones mostrou uma força musical pouco vista.

"I've Got to See You Again" aparece com a cantora falando em um amor misterioso com uma pessoa que trabalha a noite em uma das melhores canções do trabalho, enquanto "Painter Song" usa a metáfora da pintura para falar sobre romance e muitas outras coisas em uma canção inspirada na música francesa e "One Flight Down" aposta no talento de Jones no piano para trazer a canção da melhor maneira possível.

A parte final reserva espaço para mais duas composições de Jones, "Nightingale" e "The Long Day Is Over", sendo a segunda em parceria com Jesse Harris. E o trabalho encerra com o clássico "The Nearness of You", gravada pela primeira vez em 1938 e, aqui, ganha tons brilhantes na interpretação feminina.

Norah Jones abriu a carreira com um disco espetacular do início ao fim. "Come Away with Me" mescla os melhores momentos do jazz, do pop e do country, as influências de uma vida inteira. Com apenas 22 anos, ela fez uma obra-prima e abriu as asas para voos mais altos para ser consagrada como uma das melhores de sua geração.

Ficha técnica

Tracklist:

1 - "Don't Know Why" (Jesse Harris) (3:06)
2 - "Seven Years" (Lee Alexander) (2:25)
3 - "Cold Cold Heart" (Hank Williams) (3:38)
4 - "Feelin' the Same Way" (Alexander) (2:55)
5 - "Come Away with Me" (Norah Jones) (3:18)
6 - "Shoot the Moon" (Harris) (3:57)
7 - "Turn Me On" (John D. Loudermilk) (2:33)
8 - "Lonestar" (Alexander) (3:05)
9 - "I've Got to See You Again" (Harris) (4:13)
10 - "Painter Song" (Alexander/JC Hopkins) (2:41)
11 - "One Flight Down" (Harris) (3:03)
12 - "Nightingale" (Jones) (4:11)
13 - "The Long Day Is Over" (Jones/Harris) (2:44)
14 - "The Nearness of You" (Hoagy Carmichael/Ned Washington) (3:09)

Gravadora: Blue Note
Produção: Arif Mardin, Jay Newland, Norah Jones e Craig Street
Duração: 45min03

Norah Jones: vocal, piano, piano Wurlitzer na faixa 4
Sam Yahel: órgão Hammond B-3 nas faixas 6, 7 e 11
Rob Burger: Harmônio na faixa 8 e acordeão nas faixas 10
Jesse Harris: violão nas faixas 1, 5, 6, 9, 11, 12 e 13; guitarra na faixa 1
Adam Levy: guitarra nas faixas 3, 5, 6, 9, 11 e 12; violão nas faixas 8 e 10
Kevin Breit: violão nas faixas 2 e 4; guitarra National nas faixas 2; guitarra nas faixas 4 e 13
Adam Rogers: guitarra na faixa 7
Tony Scherr: guitarra slide e violão na faixa 8
Bill Frisell: guitarra na faixa 13
Jenny Scheinman: violino nas faixas 9 e 11
Lee Alexander: baixo
Brian Blade: bateria nas faixas 2, 4, 6, 8, 9, 10 e 12; percussão 2 e 9
Dan Rieser: bateria nas faixas 1, 5, 7 e 11
Kenny Wollesen: bateria na faixa 13

Produção:

Jay Newland: engenheiro de som e mixagem
S. Husky Höskulds: engenheiro de som
Dick Kondas, Mark Birkey e Brandon Mason: assistente de engenheiro de som
Arif Mardin: mixagem
Todd Parker: assistente de mixagem
Ted Jensen: masterização

Continue no blog:

Comentários