Discos para história: Circo Beat, de Fito Páez (1994)

História do disco

“Acho que ‘Circo Beat” é uma marca registrada. É lisérgico. É uma metáfora da ilusão com esse mundo muito decadente e marginal”, disse Fito Páez, em entrevista publicada pela Folha de S. Paulo em 28 de novembro de 1994. Falar que a Argentina passava por um momento difícil é quase colocar uma mensagem fixada na entrada o aeroporto de Buenos Aires, mas Páez vinha da consagração de “El amor después del amor”, lançado em 1992, que o colocou definitivamente como um dos grandes daquela geração.

Com apresentações lotadas, reedições dos discos anteriores e vendas astronômicas que transformaram o álbum no mais vendido da história da música local, o céu era o limite para ele naqueles tempos. Era hora de fazer um novo disco, quase dois anos após um tremendo sucesso? Não era para Fito, mas gravadora e o empresário não tinham dúvidas: ele precisava aproveitar o embalo e lançar mais um trabalho de inéditas.

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“É um álbum feito sob a máxima pressão possível. O mercado da indústria fonográfica e meu empresário de plantão quase me forçaram a fazer esse álbum em 1994”, escreveu o músico no Instagram, ano passado, no aniversário de 29 anos de “Circo Beat”.

“Além da evidente carnificina a que fui submetido pela minha própria ignorância e pela ganância dos verdadeiros donos do circo, aprendi uma coisa maravilhosa: com esforço, inteligência e muita determinação fiz um dos melhores discos da minha carreira”, finalizou, celebrando o trabalho feito na época.

Ao longo dos anos 1980 e início da década seguinte, cheios de alto e baixos, ele conseguiu fazer sucesso e ter o suficiente para viver de música. Era uma boa vida, transformada completamente pelo arrasa-quarteirão lançado meses antes. Páez deixa de ser um artista para ser uma celebridade em que tudo que dizia e fazia era repercutido nas páginas dos jornais e nos programas de fofoca na TV. A relação com a atriz Cecilia Roth era alvo constante especulações e comentários quase diários.

Era um sentimento misto, afinal ele sempre buscou o sucesso sem saber que o excesso de fama é massacrante e pode acabar com qualquer um que se deixa dominar pelo ego e falta de cuidado consigo próprio quando se está no topo do mundo. Essa ideia de fama o atormentava, ainda mais ao lembrar das tragédias pessoais: nunca conheceu a mãe (morta em consequência de um câncer quando ele tinha oito meses de vida), o pai, a tia-avó e a avó (assassinadas juntas e a sangue-frio sem qualquer motivação) morreram em um curto período, o levando ao vício em álcool e uma profunda depressão. Todo sucesso não o fez esquecer esses momentos e, com uma exposição exagerada, se viu sendo tragado para esse mundo sem querer fazer parte dele.

“Tudo o que aconteceu ao meu redor agora foi muito explosivo por fora. Todo o meu dia a dia mudou, ou seja, não posso ir ao bar da esquina, tomar uma cerveja em paz, nem passear, nem andar à noite como andei a vida toda”, falou, em entrevista para MTV Latina, na época da divulgação do álbum.

Pressionado para lançar um novo álbum, Páez pegou esse sentimento e voltou para Rosário, a cidade natal e local onde começou a carreira, um retorno ao básico e para as histórias da própria infância e os caminhos que o levaram ao sucesso, incluindo todo contexto da música folcórica local. Para isso, ele mais uma vez contou com ajuda dos amigos Gabriel Carámbula, Gringui Herrera, Guillermo Vadalá, Pomo Lorenzo, Tweety González, Fabiana Cantilo (ex-namorada de Páez que também vivia grande fase na carreira solo após também passar por um período turbulento), Claudia Puyó e outros na Circo Beat Band, uma banda de apoio de respeito. Com dinheiro para investir na concepção do álbum, ele convidou Phil Manzanera para ser o produtor. Guitarrista histórico da formação clássica do Roxy Music, ele havia trabalhado recentemente com as bandas Héroes del Silencio (“El Espíritu del Vino”, 1993) e Os Paralamas do Sucesso (“Severino”, 1994). E, diferentemente de muitos contemporâneos, Páez optou por um álbum sem sintetizadores ou recursos da música eletrônica.

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Essa escolha ia contra a modernização de uma Argentina a poucos anos de completar uma década do fim da ditadura militar e contra a política neoliberal liderada por Carlos Menem (1930–2021) para supostamente colocar o país na vanguarda da América do Sul e liderar o continente rumo ao futuro — nem preciso falar no que deu. Até mesmo a temática do circo tem a ver com esse momento de valorizar as tradições e a simplicidade do que essa falsa felicidade vinda de um novo aparelho de TV ou comer no McDonald’s — a opção por gravar em estúdios diferentes na Inglaterra, Estados Unidos e Argentina também casa com isso.

O casamento com Roth o colocou de vez no mundo das artes e passou a ter contato com obras diversas. O resultado é um trabalho inspirado por Frida Kahlo, pelo comediante Alberto Olmedo, pelos filmes de Pedro Almodóvar, Stanley Kubrick, Walt Disney, Woody Allen, Pier Paolo Pasolini. Ele faz homenagens à atriz Gena Rowlans e ao filme “E o Vento Levou”, além de citações diretas aos Beatles, Rolling Stones e Chico Buarque. O teatro não fica de fora ao entrar na concepção dos clipes, e os trabalhos dos escritores Charles Bukowski e Thomas Mann entram na escolha da abordagem das temáticas.

Páez uniu as referências de uma vida inteira e as canalizou em um único álbum, destinado a acontecer por pressões de fora do que pela vontade em fazê-lo. Talvez ele nem soubesse quem era, mas essa viagem ao passado o fez perceber que o garoto de Rosário e o astro do rock argentino eram, no fundo, a mesma pessoa apaixonada por música e com muita coisa para dizer. A pressão fez a criatividade florescer.

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“As pessoas de quem gostamos entenderam a Argentina como um país periférico do mundo. E para a periferia como espaço onde se sente confortável. Sem territórios demarcados; um espaço livre onde você não precisa estar de nenhuma maneira especial e onde não haveria um decálogo para responder a certas perguntas de uma determinada maneira. Nesse aspecto, ser argentino é uma vantagem”, falou, em entrevista para Rolling Stone em agosto de 1998.

Lançado em 22 de novembro de 1994, “Circo Beat” foi o álbum mais vendido na Argentina no ano seguinte, com 350 mil cópias. Muito longe do sucesso do anterior, o disco é importante por mostrar as feridas de um astro da música e todos os momentos que o fizeram chegar até ali. Imaginativo, experimental, pop, triste, alegre, tudo isso é Fito Páez, um argentino de Rosário que conseguiu viver de música quando até ele mesmo chegou a duvidar nas piores horas. Se a vida é feita de momentos importantes, o oitavo álbum de estúdio é um lembrete de quando ele escalou o topo da fama, viu como era e optou por ficar em terra firme para contar mais histórias sobre ele e o próprio país.

Crítica de “Circo Beat”

A abertura do álbum com a faixa-título mostra um Fito Páez revivendo o passado e, ao mesmo tempo, em que está pronto para uma nova aventura com o lançamento do novo disco de inéditas (“Psicodélica star de la mística de los pobres/ De misterio, de amor, de dinero y soledad/ Yo no vine hasta acá a ayudarte buscando cobre, eh/ Mi pasado es real y el futuro libertad”). Aqui temos uma prévia do uso do naipe de metais, dos vocais de apoio e de refrões grudentos.

Provavelmente a música mais famosa de toda discografia de Páez, “Mariposa Tecknicolor” ganhou um novo arranjo com o passar do tempo e virou uma suave balada tocada no piano. A versão original traz a potência da experiência ao relembrar o passado (“Todas las mañanas que viví/ Todas las calles donde me escondí/ El encantamiento de un amor/ El sacrificio de mis madres, los zapatos de charol/ Los domingos en el club/ Salvo que Cristo sigue allí en la cruz/ Las columnas de la catedral/ Y la tribuna grita ‘Gol’ el lunes por la capital”) cheio de marcas na pele, mas, sem ele, não seria a pessoa que é hoje. O tom pessoal é incrivelmente conduzido por uma letra veloz, um pequeno resumo de uma vida e tanto. O fim, vários tons abaixo, caminha o ouvinte para a calmaria daquele momento de estabilidade e menos problemas, sem se esquecer de onde veio.

O arranjo de “Normal 1” mostra o capricho da produção, contrastando com o pouco tempo para escrever, gravar e lançar o álbum. A temática pessoal permanece, mais suave e mais lúdica do que a anterior, com a criança interior ganhando voz. Segunda maior em duração, a balada romântica “Las Tardes del Sol, las Noches del Agua” traz um personagem mais melancólico e reflexivo, algo que veríamos mais na discografia de Páez pelos anos seguintes. Outra balada, “Tema de Piluso” homenageia o comediante Alberto “El Negro” Olmedo ao falar de Rosário, cidade Natal de ambos (“Cerca, Rosario siempre estuvo cerca/ Tu vida siempre estuvo cerca y esto es verdad/ Vida, tu vida fue una hermosa vida/ Tu vida transformó la mía y esto es verdad”).

“She's Mine” traz um compositor imitando John Lennon em uma canção de amor para a mulher amada, com arranjos e letra muito delicados e com cada elemento entrando cuidadosamente para fazer parte de algo grandioso e bonito. O jardim da casa onde foi criado é citado diretamente em “El Jardín Donde Vuelan los Mares”, outra canção cheia de referências ao que Páez fazia na infância e do medo da ditadura militar, enquanto as complexidades do amor são expostas na curta “Nadie Detiene al Amor en Un Lugar”, momento que o cantor opta por um jazz suave para uma letra bem direta.

Páez usa com habilidade as mudanças no cinema ao longo das décadas em “Si Disney Despertase” para falar da passagem do tempo e como as coisas nunca mais serão como antes. Cheia de referências a grandes diretores da história, a canção é um recado sobre como a magia dos tempos de infância e adolescência não voltam mais, mas ficam para sempre na memória como um filme inesquecível. A animada “Soy Un Hippie” apresenta uma história de um famoso perseguido pelos fãs e conta que prefere uma vida simples a ser esmagado pela fama. O hábil uso do bom humor funciona bem para apresentar um desabafo do músico sobre o peso da exposição excessiva pelos meios de comunicação (“Llevo todo el día escapando de los fans/ Salen de la sopa, de los taxis, del placard/ Preferiría andar borracho en el subte”).

A quebra de ritmo chega com a triste “Dejarlas Partir”, uma homenagem direta as duas mulheres que o criou após a morte da mãe. A tragédia marcou Páez para sempre, o deixando confuso, com raiva do mundo e preso ao acontecimento. É um desabafo sobre a hora de deixar as pessoas queridas partirem e praticar o desapego, com um olhar para o futuro sem se prender ao doloroso passado. Essa mudança de atitude aparece em “Lo Que el Viento Nunca Se Llevó”, quando o poder do amor e de viver a vida suplanta todos os momentos tristes. E assim acaba o espetáculo do circo imaginário, que ainda ganha uma reflexão em “Nada del Mundo Real” — viver a vida plenamente é melhor do que qualquer coisa criada pela imaginação.

Fito Páez estava inspiradíssimo quando escreveu as letras de “Circo Beat”. Embalado pelo sucesso, ele conseguiu refletir sobre esse momento com calma, usando tudo que tinha a disposição para fazer desse álbum mais um importante marco da carreira. Do lirismo ao uso do teatro, passando por homenagens e momentos a própria vida, ele conseguiu mostrar ao mundo que a fama pode trazer benefícios, mas é fundamental não se esquecer de onde veio para manter o coração e cabeça no lugar.

Ficha técnica

Tracklist:

1 - “Circo Beat”(5:44)
2 - “Mariposa Tecknicolor” (3:43)
3 - “Normal 1” (3:00)
4 - “Las Tardes del Sol, las Noches del Agua” (5:46)
5 - “Tema de Piluso” (4:11)
6 - “She's Mine” (4:33)
7 - “El Jardín Donde Vuelan los Mares” (6:00)
8 - “Nadie Detiene al Amor en Un Lugar” (2:20)
9 - “Si Disney Despertase” (3:47)
10 - “Soy Un Hippie” (4:26)
11 - “Dejarlas Partir” (3:06)
12 - “Lo Que el Viento Nunca Se Llevó” (4:19)
13 - “Nada del Mundo Real” (Fito Páez e Carlos Villavicencio) (4:42)

Gravadora: Warner Music
Produção: Fito Páez & Phil Manzanera
Duração: 55min12

Fito Páez: voz, violão, piano hammond, clarinete e teclados
Gabriel Carámbula: violão e guitarra
Gringui Herrera: guitarra, violão e pedal steel
Guillermo Vadalá: baixo, violão e contrabaixo
Pomo Lorenzo: bateria (para la “Gira de Presentación”).
Geoff Dugmore: bateria; bumbo; pandereta en Dejarlas partir; bateria em “Mariposa Tecknicolor”
Tweety González: acordeão, piano e teclado

Fabiana Cantilo: voz em “El jardín donde vuelan los mares”; vocal de apoio
Fena Della Maggiora: voz em “El jardín donde vuelan los mares”
Liliana Herrero: voz em “Las tardes del sol, las noches del agua”
Claudia Puyó: voz em “El jardín donde vuelan los mares”
Fabián Gallardo: violão em “Dejarlas partir”
Laura Vázquez e Alina Gandini: teclados
Pilo: gaita em “Circo Beat”
Toots Thielemans: gaita em “Las tardes del sol, las noches del agua” e “She's Mine”
Osvaldo Fattoruso: bateria em “Las tardes del sol, las noches del agua” e “Nadie detiene al amor en un lugar”
Simon Clark: saxofones alto, barítono e flauta
Tim Sanders: saxofone tenor
Simon Gardner e Neil Sidwell: trombone
Roddy Lorimer: trompete
Orquestra Filarmônica de Londres: instrumentos diversos

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