Discos para história: Voo de Coração, de Ritchie (1983)


Primeiro disco do cantor superou Roberto Carlos em vendas

História do disco

Depois de mais de 30 anos do lançamento do LP Voo de Coração, ainda causa estranhamento a lembrança de que Ritchie é inglês. Esses anos todos me fizeram ter quase a certeza de que o cantor é tão brasileiro quanto qualquer um que nasceu aqui. E tenho certeza que o sentimento dele é o mesmo ao ter fincado raízes por aqui desde sua chegada, no longínquo 1972.

Nascido em 1952, Richard David Court foi um cidadão do mundo por muitos anos. Filho de um militar inglês vinculado à OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), ele passou boa parte da infância e da adolescência estudando em colégios internos na Inglaterra ou viajando pelo mundo. Exposto a diferentes culturas ao longo do processo de crescimento, o gosto pela música veio do blues – mais especificamente o de Chicago, influenciado por um amigo guitarrista que deu ao então garoto uma coleção vasta de grandes nomes daquele cena.

Mais discos dos anos 1980:
Discos para história: Saúde, de Rita Lee (1981)
Discos para história: Remain in Light, do Talking Heads (1980)
Discos para história: Dois, da Legião Urbana (1986)
Discos para história: Daydream Nation, do Sonic Youth (1988)
Discos para história: Nebraska, de Bruce Springsteen (1982)
Discos para história: Moving Pictures, do Rush (1981)

No início dos anos 1970, um encontro mudou a vida de Ritchie. Em um dia de vagabundagem de um recém-ingressado na faculdade, ao ficar amigo de uma banda chamada Everyone’s Involved, ele conheceu Rita Lee e Liminha, que estavam em Londres para comprar equipamento e deram uma passada no estúdio, e a guitarrista Lucinha Turnbull, então morando na Inglaterra. Um "pinta lá em casa quando for ao Brasil" foi levado à sério pelo cantor. Ele começou a juntar dinheiro, chegou no País em 1972 e resolveu mudar completamente de vida ao ficar de vez. O encanto pela música feita aqui nos anos 1970 foi decisivo para isso.

Ritchie passou por muitas coisas, como qualquer um que deseja ter banda, incluindo ser professor de inglês para pagar as contas, mas existiam dois problemas: a língua e ele não ter residência fixa. Sem saber o mínimo de português no início, ainda havia o fato de ter visto de turista e impedir qualquer vínculo legal de trabalho com uma gravadora. No fim, tudo deu certo no aspecto legal e Ritchie pôde começar a trabalhar de fato como músico. Foram dez anos até o lançamento de seu primeiro trabalho solo, incluindo a passagem pela hoje cultuada banda Vímana.

Essa banda, que tinha Lobão, Ritchie, Lulu Santos, Patrick Moraz, ex-Yes, entre seus membros começou a acabar quando Lulu acabou sendo demitido. Disso para o fim das atividades foi um pulo. A experiência de ter um compacto gravado foi tão boa que o incentivou a retomar uma amizade com Bernardo Vilhena, um compositor de mão cheia.

Dessa amizade nasceu uma das parcerias mais bem sucedidas dos anos 1980. A história de ambos ganhou uma oportunidade quando um K7 das canções da dupla foi parar nas mãos de Claudio Condé, então diretor do braço da gravadora CBS no Brasil. Recém-chegado, Condé viveu um tempo em Portugal e, inevitavelmente, teve contato com a cena new wave e toda transformação na passagem de bastão para uma nova geração de músicos. As canções o cativaram de maneira tão forte, que ele ligou para Ritchie querendo saber mais sobre ele.

Veja também:
Discos para história: Os Afro-Sambas, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (1966)
Discos para história: Vagarosa, de Céu (2009)
Discos para história: Caymmi e Seu Violão, de Dorival Caymmi (1959)
Discos para história: Rumours, do Fleetwood Mac (1977)
Discos para história: The Colour and the Shape, do Foo Fighters (1997)
Discos para história: Appetite for Destruction, do Guns N' Roses (1987)

"No dia seguinte ele foi lá em casa. Eu morava num apartamento na Lagoa, morava sozinho, e eram acho que duas horas da tarde, ele apareceu lá. Ele e o Mayrton Bahia, com seu casiotone, tecladinho... Eu achei muito legal aquela postura dele e acho que houve uma empatia imediata. E comecei a ficar absolutamente empolgado com todas as coisas que ele tocou. Eu pensei que ele ia levar uma fita pra ouvir, e não, ele veio lá, plugou, era todo ajeitado, plugou, cantou", contou Condé ao 'Som do Vinil', programa do Canal Brasil.

De contrato assinado, decidiram que o primeiro single seria "Menina Veneno". À época era comum o lançamento de um compacto com duas músicas – "Baby Meu Bem (Te Amo)" estava no lado B. Foi um estouro ao vender mais de meio milhão de cópias. Gravar um disco cheio era o caminho natural desse novo fenômeno de vendas nessa novidade que era a música jovem brasileira. Voo de Coração foi lançado ainda em 1983 e ultrapassaria a barreira de 1 milhão, superando Roberto Carlos. Ritchie foi o grande artista pop de 1983, algo que nunca mais se repetiria por uma série de motivos (André Barcinski, no livro Pavões Misteriosos [2014, Ed. Três Estrelas, 256 págs], conta mais como o "Rei" minou a carreira de Ritchie), mas foi marcante para quem viveu o momento.



Resenha de Voo de Coração

Como em boa parte dos discos de sucesso da época, o sintetizador e o teclado eram partes quase fundamentais da construção de uma canção. A primeira faixa, "No Olhar", é um belo exemplo de algo muito próprio de um período da música brasileira e mundial. A letra, sobre o fim de um romance que deixou marcas no interlocutor, é carregada de tudo que os anos 1980 tinham em tecnologia e moda nos estúdios, e isso dá bastante força ao que é dito pelo cantor.

"A Vida Tem Dessas Coisas" é uma balada que começa no piano, mas também ganha em efeitos pelos sintetizadores e até o vocal tem um pouco. Tudo isso para fixar o refrão grudento na cabeça por um longo tempo, já a "Voo de Coração" tem um inegável quê de Roupa Nova em vários aspectos – desde o arranjo até a melosa letra (Mas eu só, no apartamento, escrevendo/ Memórias num velho computador/ Nas asas do tempo, vertigem do momento/ Voo de coração, meu amor). "Casanova" é estranha, porque não combina com nada do álbum, mas serve para colocar o pessoal para dançar.



Sem dúvida nenhuma, "Menina Veneno" é a grande canção desse disco. Grudenta e fácil de decorar, foi a mais tocada nas rádios em 1983. Para um Brasil que estava se descobrindo, tendo uma nova geração de músicos com muita vontade de mostrar trabalho depois do sucesso da Blitz pouco tempo antes, essa letra é tudo que eles precisavam para se entorpecer de prazer. Diferente das outras faixas, o arranjo aqui é o mais simples possível e permite que a letra brilhe, que todos cantem (Menina veneno/ O mundo é pequeno demais pra nós dois/ Em toda cama que eu durmo/ Só dá você, só dá você/ Só dá você, iê, iê, iê, iê) um refrão conhecido por dez entre dez brasileiros com mais de 20 anos. É um exemplo de música pop de alto nível.

"Preço do Prazer" soa o encontro do Fleetwood Mac com o sintetizador para falar do alto custo de ficar fora muito tempo, mesmo levando em conta toda diversão que isso envolve. "Pelo Interfone" e "A Carta (The Letter)" são outros bons exemplos de como o primeiro disco de Ritchie é um bom objeto de estudo para quem deseja conhecer um pouco mais os anos 1980. Bateria eletrônica, teclado, sintetizadores e até o estilo do saxofone são muito de uma época.



A animada "Parabéns Pra Você" e sua letra sobre libertação de convenções sociais e "Tudo Que Eu Quero (Tranquilo)", uma balada muito caprichada com arranjos muito diferentes do resto do disco – mostrando outro lado de Ritchie, um lado mais melódico em que consegue destacar a boa voz do cantor em uma canção que precisava de suavidade para casar com a proposta da letra – fecham o disco.

Voo de Coração é um disco que ganhou muita força pelo hit "Menina Veneno". Cheio de baladas e feito com a concepção musical da época, é um registro datado que traz certa nostalgia ao pensarmos que foi o primeiro e único sucesso grandioso de Ritchie. Ao final da audição, a conclusão é: ele merecia mais do que isso, merecia ter conseguido mais com sua música. Havia muito potencial aqui, principalmente por ele não estar preso a determinadas coisas da maioria dos cantores brasileiros, mas não aconteceu. E isso mostra como a indústria musical, especialmente a brasileira, é muito cruel com as pessoas.



Ficha técnica 

Tracklist: 

1 - "No Olhar"
2 - "A Vida Tem Dessas Coisas"
3 - "Voo de Coração"
4 - "Casanova"
5 - "Menina Veneno"
6 - "Preço do Prazer" (Ritchie)
7 - "Pelo Interfone"
8 - "A Carta (The Letter)" (Wayne Carson Thompson / adaptação: Ritchie)
9 - "Parabéns Pra Você"
10 - "Tudo Que Eu Quero (Tranquilo)" (Ritchie)

Todas as músicas foram escritas por Ritchie e Bernardo Vilhena, exceto as marcadas

Gravadora: Epic/Sony
Produção: Aníbal e Vitor
Duração: 40min46s

Ritchie: voz, Casio MT40 e flauta

Convidados:

Lulu Santos: guitarra
Liminha: guitarra
Steve Hackett: guitarras
Lauro Salazar: piano e sintetizadores
Liminha: baixo
Lobão: bateria
Zé Luis: sax
Chico Batera: percussão
Ana Leuzinger, Marisa Fossa, Paulinho Soledade e Sonia Bonfá: vocal de apoio



Saiba como ajudar o blog a continuar existindo

Gostou do post? Compartilhe nas redes sociais e indique o blog aos amigos!