Discos para história: Os Afro-Sambas, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (1966)


Álbum completou 50 anos de sua primeira edição no ano passado

História do disco 

A história registra o lançamento de Os Afro-Sambas no início de 1966, poucos dias depois do final da gravação. Entre os dias 3 e 6 de janeiro daquele ano, Baden Powell (1937-2000) e Vinicius de Moraes (1913-1980) já estavam entrosados o suficiente para entrar em estúdio e gravar uma das obras-primas da música brasileira. Quando a bossa nova, a Jovem Guarda e uma profusão de então jovens nomes da música estavam surgindo, Powell e Vinicius foram por um caminho completamente diferente ao explorar as tradições afro-baianas.

Tudo começou quando Vinicius ganhou um LP chamado Sambas de Roda e Candomblés da Bahia, dado de presente pelo futuro Ministro do Tribunal Superior do Trabalho e a amigo Carlos Coqueijo Costa (1924-1988). Entrando em um terreno desconhecido da música, o compositor ficou completamente encantado com o que ouviu. Acostumado com outro tipo de música ao longo de toda sua vida, ter esse disco em mãos mudou completamente seu modo de entender e escrever letras.

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Powell é apresentado ao disco pelo amigo e também se encanta com as faixas, principalmente pelas harmonias feitas pelos músicos. Durante uma turnê na Bahia, mostram a ele rodas de capoeira e terreiros, lugares em que ele tem o contato definitivo com a música. Aliás, era a sonoridade que o encantava, não os temas religiosos. Poucos dias depois, o primeiro encontro entre os dois depois desse encantamento mútuo gera "Berimbau". Disso, nasce a ideia de fazer um LP inteiro com essa temática. À época, Powell estudava canto gregoriano com o maestro Moacyr Santos e conseguiu ver certa semelhança no andamento das faixas, e isso acabou sendo uma peça importante no tabuleiro da construção das canções.

Fundamental é entender essa mistura, porque era a primeira vez que alguém – ou uma dupla, no caso – fazia isso. Eram atabaques, bongô, agogô e afoxé misturados com flauta, violão, sax, bateria e contrabaixo. Era a bossa nova encontrando a música africana que ganhou algo muito próprio com o passar dos anos no Brasil – a raiz é a mesma, mas com certas particularidades e transformações ao longo dos anos. Cynara, do Quarteto em Cy, contou como foram os quatro dias de gravação.

"O Vinicius também quis o Quarteto em Cy para dar um ar mais profissional, vamos dizer assim. E foi bacana. A gravação em si foi ótima, porque foi animada, os arranjos eram do Guerra Peixe e aprendemos todas as músicas na hora, com o Baden mostrando ali mesmo para nós. Foi uma festa, do jeito que o Vinicius e o Baden gostavam de fazer as coisas. Tinha sempre um uísquinho, um burburinho, que não combinava com a realidade de um estúdio de gravação, era como se estivéssemos num local aberto, em que se sentava, conversava e cantava, como eram as festinhas do Vinicius, que ele nos chamava para acompanhar", contou a cantora ao site do projeto 'Som do Vinil'.

Outra coisa peculiar da gravação do álbum era o que ficou conhecido como "Coro da Amizade". O álbum poderia ter a inspiração da música africana de raiz e arranjos suntuosos feitos por músicos do mais alto calibre, mas Vinicius queria dar um ar informal e um tratamento mais à gravação. O conhecido por coro misto nos créditos foi formado por Eliana Sabino, filha do escritor Fernando Sabino, a então atriz iniciante Betty Faria, Tereza Drumond, namorada de Baden, o psiquiatra César Augusto Parga Proença, o médico Otto Gonçalves Filho e Nelita, então esposa de Vinicius.

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Na contracapa do álbum, há um trecho muito importante sobre o trabalho feito."Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia, e em última instância para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar, dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro-brasileiro, dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal".

Escrito por Vinicius de Moraes, vemos que ele e Powell estavam claramente optando por outra linha de pensamento. A impressão é que ambos aproveitaram e usaram esse encantamento para fazer outra coisa, para ousar mais, misturar mais, incluir novas sonoridades em seus repertórios e usar novas palavras para compor as letras. É um belo resumo de como essa parceria conseguiu ir muito longe ao gravar um dos grandes discos da história da música brasileira há pouco mais de 50 anos.



Resenha de Os Afro-Sambas 

Vinicius de Moraes e Baden Powell não sabiam, mas "Canto de Ossanha" viraria um clássico da música brasileira ao ser regravada por cantores e cantoras de todos os estilos e em diversas épocas. No candomblé, nenhuma cerimônia acontece sem a presença de Osanha, então, ao abrir o trabalho com essa faixa, é um recado de que esse álbum é muito mais do que simplesmente música. Os arranjos dão um tom maravilhoso para faixa, transformando-a em um poderoso samba. Era uma bela entrada para o candomblé na música brasileira, colocado de lado e desconhecido por muitos músicos famosos da época.

O nível dos arranjos fica ainda mais impressionante na seguinte, "Canto de Xangô", uma homenagem a um dos principais e mais famosos personagens do candomblé. E duas coisas impressionam: como Vinicius conseguiu descrevê-lo tão bem e a duração da faixa, com mais de seis minutos, dando um tom de ritual mesmo à letra. Já "Bocoché" traz Iemanjá como personagem principal, algo que parece ter sido inspirado nas muitas faixas gravadas por Dorival Caymmi (1914-2008) sobre o tema, além de ter uma estrutura muito diferente das outras ao soar mais alegre.



O lado A encerra exatamente como Caymmi fazia quando falava de Iemanjá: exaltava sua beleza de rainha do mar, mas alertava para seus perigoso se desafiada por pescadores mais audaciosos. "Canto de Iemanjá" é melancólica em tudo, desde os vocais até a melodia suave que entra nos ouvidos bem devagar. A segunda metade é dominada pelos vocais femininos, que só aumentam esse tom.

Ao se deparar com "Tempo de Amor" no início do lado B, a dupla mostra que o lado carioca está bem representado no álbum. Esse é um samba delicioso sobre as contradições do amor e da dor – destaque para o violão afiado de Baden, nessa verdadeira aula de dar outra vida a um instrumento. A mistura entre o mundo do samba e do candomblé fica clara em "Canto do Caboclo Pedra-Preta", uma homenagem ao polêmico pai-de-santo Joãozinho da Goméia (1914-1971), um dos muitos personagens da cena carioca nos anos 1960 – Caboclo Pedra Preta era a entidade que Joãozinho recebia.



"Tristeza e Solidão" remete a uma das muitas procuras na umbanda: a resolução de problemas amorosos. E também cita o babalaô, responsável pela iniciação de quem deseja se aprofundar no conhecimento dos rituais. Mas a faixa também trata de tristeza e solidão (Ela não sabe/ Quanta tristeza cabe numa solidão/ Eu sei que ela não pensa/ Quanto a indiferença/ Dói num coração/ Se ela soubesse/ O que acontece quando estou tão triste assim). O disco é encerrado com "Lamento de Exu", quase toda instrumental muito melancólica – um lamento mesmo. A voz de Dulce Nunes aparece para criar esse clima e para ajudar a complementar o inspirado violão de Baden em uma faixa das mais misteriosas da carreira de ambos.

O encantamento, cada um a seu modo, de Baden Powell e Vinicius de Moraes pela candomblé e pela música afro-baiana uniram esses dois gênios da música brasileira em um álbum histórico. Todas as homenagens feitas ano passado, quando completou 50 anos, foram mais do que justas. É um LP histórico porque ambos estavam incrivelmente inspirados e, com ajuda de colaboradores incríveis, fizeram um disco fundamental.



Ficha técnica

Tracklist:

1 - "Canto de Ossanha" (3:23)
2 - "Canto de Xangô" (6:28)
3 - "Bocoché" (2:34)
4 - "Canto de Iemanjá" (4:47)
5 - "Tempo de Amor" (4:28)
6 - "Canto do Caboclo Pedra-Preta" (3:39)
7 - "Tristeza e Solidão" (4:35)
8 - "Lamento de Exu" (2:16)

Todas as letras foram compostas por Baden Powell e Vinicius de Moraes

Gravadora: Forma
Produção: Roberto Quartin
Duração: 32min42s

Baden Powell: violão
Vinicius de Moraes: vocais

Convidados:

Maestro Guerra Peixe: arranjos e regência
Quarteto em Cy e Coro Misto: vocais e vocais de apoio
Pedro Luiz de Assis: sax tenor
Aurino Ferreira: sax barítono
Nicolino Cópia: flauta
Jorge Marinho: contrabaixo
Reisinho: bateria
Alfredo Bessa: atabaque
Nelson Luiz: atabaque pequeno
Alexandre Silva Martins: bongô
Gilson de Freitas: pandeiro
Mineirinho: agogô
Adyr Jose Raimundo: afoxé



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