Discos para história: Low, de David Bowie (1977)


Primeiro disco da "Trilogia de Berlim" serviu escada para tirar o cantor do vício em cocaína

História do disco

Colhendo os frutos do sucesso dos singles "Fame" e "Golden Years", David Bowie escolheu o pior lugar possível para morar quando se é famoso: Los Angeles. Se a cidade do filme La La Land (2016) é feliz e aberta para quem busca oportunidades, também é o local perfeito para conseguir tudo que deseja. O resultado disso é que o inglês acabou viciado em cocaína. Após repensar um pouco a vida, ele e Angela, sua mulher, acabaram retornando à Europa.

Depois de paradas da Suíça e na França, acabaram fixando residência em Berlim, capital da Alemanha Ocidental, para morar com ninguém menos do que Iggy Pop – outra figura engolida por si mesmo, viciado em drogas e em uma situação pessoal ainda mais caótica do que a de Bowie. "Berlim chamou David de outras maneiras", conta Angela na autobiografia chamada Backstage Passes: Life on the Wild Side with David Bowie. "Ele escolheu morar em uma parte sombria, anônima e culturalmente isolada da cidade: Schoneberg, povoado em grande parte por imigrantes turcos. Ele pegou um apartamento acima de uma loja de autopeças e tomava café com os trabalhadores locais. Isso fala muito sobre alienação [dele para o mundo]", completa.

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A alienação de Bowie serviu para uma fuga do status repentino de celebridade que ele havia alcançado – não dá para esquecer que ele mesmo procurou por isso a vida toda. Ele cortou o cabelo, doou suas roupas e tinha a vida perfeita para quem desejava ficar anônimo. Para ajudar Pop na retomada da carreira, Bowie produziu os discos clássicos da carreira solo do então ex-Stooges: The Idiot e Lust for Life, ambos de 1977. Se ambos estavam melhor em comparação com o antigo uso de drogas, em compensação, bebiam todos os dias.

"Eu estava em declínio emocional e social", disse Bowie, em entrevista ao jornal britânico 'The Telegraph', em 1996. "Estava muito perto de ser apenas outra casualidade no rock. Tenho certeza de que não teria sobrevivido aos anos 1970 se tivesse continuado fazendo o que estava fazendo. Mas tive a sorte de encontrar em algum lugar dentro de mim o que realmente estava me matando, e eu tive que fazer algo drástico para me afastar disso. Eu tive que parar. Foi o que fiz", continuou.

Estava claro que o cantor buscava uma nova direção musical na carreira. No disco anterior, Station to Station (1976), já havia um quê mais experimental, mas muito longe do trabalho feito no que viria a ficar conhecido como "Trilogia de Berlim" – ainda que todo trabalho não tivesse sido feito na Alemanha, os discos acabaram virando uma espécie de símbolo da ressurreição musical e pessoal de Bowie ao morar no país. Duas influências foram fundamentais nesse processo de mudança.

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A primeira foi o krautrock, nome popularizado no Reino Unido para Kosmische Musik (música cósmica, em tradução livre). A cena musical experimental alemã dos anos 1960 e 1970 foi uma das melhores coisas que o mundo da Guerra Fria produziu musicalmente, principalmente por dar ao mundo o Krafwerk, Tangerine Dream, Can, Neu!, entre outros. Essas bandas influenciariam diversas pessoas no futuro. O outro motivo foi Brian Eno. O disco solo de Eno lançado em 1975, Another Green World, era considerado por Bowie uma obra-prima. Da união dessas duas influências, veio a ideia de dar um passo mais além musicalmente. Com isso, veio o convite para Eno participar de algumas sessões de gravações.

Certo dia, no Chateau d'Hérouville, na França, onde boa parte de Low foi gravado, Bowie e Eno ligaram para Tony Visconti. Eles queriam saber se o produtor toparia ficar um mês no estúdio experimentando sons e texturas que não poderiam dar em absolutamente nada. "Gastar um mês do meu tempo com David Bowie e Brian Eno não é perder tempo", respondeu Visconti. Assim os três se juntaram. Com o produtor, vieram Carlos Alomar, Dennis Davis, George Murray, Ricky Gardiner e Roy Young. Cada um de uma parte do mundo, com formações, sonoridades e ideias de música diferentes um dos outros. E foi nisso que o disco ganhou muito.

Visconti levou consigo um Harmonizador Eventide que, segundo ele, "fodia com o tecido do tempo". Foi essa a diferença na música que Bowie conseguiu criar ao lado dele e Eno. E por ter músicos de diferentes partes do mundo, a sonoridade ganhava elementos dos mais improváveis em uma gravação. Foram três semanas experimentando e brincando com sons dentro do estúdio – a banda levou cinco dias para gravar toda parte instrumental. Quando o produtor e o cantor viram, as sessões estavam virando o próprio disco.

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A gravadora RCA implorou para Bowie não lançar o disco por considerá-lo uma virada em 180º do que havia produzido nos anos anteriores. Segundo eles, havia risco enorme de encalhe e de manchar a imagem do cantor perante o público americano recém-conquistado. Ainda bem que diretor de gravadora não entende de público, porque Low, lançado em 14 de janeiro de 1977, foi um sucesso ao chegar ao segundo lugar no Reino Unido e ao 11º nos Estados Unidos.

Enquanto o punk reinava absoluto entre o público jovem, e os cantores mais velhos eram considerados "dinossauros do rock", David Bowie não apenas se reinventou em um período difícil de sua vida, como conseguiu se desafiar musicalmente. O primeiro dos três registros da "Trilogia de Berlim" influenciaria bandas do nível de Joy Division e Radiohead e seria o disco favorito do cantor.


Resenha de Low

"Speed of Life" já consegue mostrar logo de cara todo esse experimentalismo do disco. O sintetizador, efeitos, o harmonizador e a percussão de Denis Davis fazia toda diferença em uma faixa que não deveria ser instrumental, mas acabou ficando assim por Bowie não conseguir fazer uma letra realmente boa para ela. A seguinte, "Breaking Glass", traz uma curta letra quebrada e guiada pela bateria e pelos efeitos. Bowie faz uma citação à sua vida pessoal no trecho "Don't look at the carpet; I drew something awful on it" – ele desenhava a Árvore da Vida no chão, pois estava interessado no ocultista Aleister Crowley (1875-1947) e na Cabala.

A desconexa letra de "What in the World" mostra como, à medida que o disco avançada, mais experimental ele ficava. Eno aparece com os efeitos semelhantes aos conhecidos no jogo Pac-Man e está conectado ao ritmo frenético da faixa, enquanto "Sound and Vision" traz um Bowie mais cantor em uma canção de longa introdução com participação de Mary Visconti, mulher de Tony, na abertura. Por ser o mais próximo de uma faixa pop, acabou sendo a de maior sucesso do álbum.



"Always Crashing in the Same Car" não é das mais populares da carreira de Bowie, mas deveria. O lado futurístico do arranjo ajuda a passar a mensagem de cometer sempre o mesmo erro várias vezes – o cantor usou um exemplo pessoal de um incidente envolvendo ele, Iggy Pop e um traficante em um hotel para contar melhor a história. Destaque para o solo de guitarra na parte final. Outra longe do lado experimental é "Be My Wife", essa com toda estrutura de uma típica faixa do rock do fim dos anos 1960. Para fechar o lado A, ainda que seja instrumental, "A New Career in a New Town" é um dos temas instrumentais mais pessoais da carreira de Bowie.

Para quem não conhece Low, o lado B parece outro disco. Começando por "Warszawa", uma faixa instrumental escrita em parceria entre Bowie e Brian Eno. O uso da influência musical de Eno fica claro pelo tom de ópera experimental que vai aparecendo. São pouco mais de seis minutos da representação da melancolia de Bowie em sua passagem por Varsóvia, na Polônia, em 1973 – a faixa seria inspiração para a criação da banda Warszaw, que mudaria o nome para Joy Division pouco antes do lançamento do primeiro disco.



Mesmo assinando "Art Decade" sozinho, Bowie contou com a fundamental ajuda de Eno na construção sonora da faixa que tem uma brincadeira no título. O cantor achava a arte na Alemanha Ocidental algo muito melancólico – muito por conta do momento político e econômico da época. Essa melancolia também é refletida em "Weeping Wall", sobre o Muro de Berlim e a divisão que colocava berlinenses de lados opostos na mesma cidade. Essas pessoas são representadas em "Subterraneans", faixa que encerra o disco.

Não há faixa-título, o que mostra uma mudança na condução da carreira do cantor nesse momento. A sonoridade importava mais do que um single de sucesso. Se o lado A ainda soa um pouco mais pop, o lado B parte para uma linha completamente oposta. Low foi o resultado da recuperação da saúde mental e corporal de Bowie, um homem então atormentado por demônios que ele mesmo criou. Berlim foi fundamental nesse processo, rendendo três discos históricos. E tudo começou com Low.



Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - "Speed of Life" (2:46)
2 - "Breaking Glass" (Bowie, Dennis Davis, George Murray) (1:51)
3 - "What in the World" (2:23)
4 - "Sound and Vision" (3:03)
5 - "Always Crashing in the Same Car" (3:29)
6 - "Be My Wife" (2:55)
7 - "A New Career in a New Town" (2:51)

Lado B

8 - "Warszawa" (Bowie, Brian Eno) (6:20)
9 - "Art Decade" (3:43)
10 - "Weeping Wall" (3:26)
11 - "Subterraneans" (5:39)

Todas as músicas foram escritas por David Bowie, exceto as marcadas

Gravadora: RCA
Produção: David Bowie e Tony Visconti
Duração: 38min26s

David Bowie: vocais, saxofone, guitarra, bass pump, gaita, vibrafone, xilofone, percussão, teclados, sintetizador e instrumentos diversos
Brian Eno: teclado, sintetizadores, piano, vocais de apoio, guitarra, efeitos e instrumentos diversos
Carlos Alomar: guitarras
Dennis Davis: percussão
George Murray: baixo
Ricky Gardiner: guitarras
Roy Young: piano e órgão

Convidados:

Iggy Pop e Mary Visconti: vocais de apoio
Eduard Meyer: violoncelo
Peter e Paul: piano e sintetizadores



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