Discos para história: Cartola, por Cartola (1976)


Disco do sambista o consolidou como um dos grandes compositores brasileiros de todos os tempos

História do disco

Apenas dois anos antes, Angenor de Oliveira (1908-1980) havia lançado seu primeiro disco como intérprete. O mangueirense Cartola teve sucesso e reconhecimento na velhice, coisa que raramente acontece no Brasil. Importante compositor carioca por muito tempo, ele precisou apenas sobreviver durante boa parte de sua vida. Foi pedreiro, lavador de carro e contínuo (popularizado anos depois como office boy). Tudo para ganhar uns trocados e colocar comida na mesa, realidade de muitos brasileiros até hoje.

Em entrevista ao jornal 'O Globo', no ano do lançamento de seu segundo disco, Cartola explicou o motivo de ter ficado tanto tempo sumido. "Eu estava com uns 30 e tantos anos. Trabalhava como pedreiro e compunha meus sambas. De repente, veio a meningite. Fiquei dois ou três dias em estado de coma, e depois passei um ano e meio andando de muletas, sem firmeza nas pernas. Foi uma fase difícil. Eu nunca fui chegado a viver socado em rádio ou televisão. Nunca fui de procurar cantor pra pedir gravação das minhas músicas. Acho que quando a pessoa grava sem sentir, não sai bom", contou.

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Depois de toda essa dificuldade, ele e a mulher, a Dona Zica (1913-2003), abriram o restaurante Zicartola, ponto de reunião de alguns dos principais nomes do samba e outros nomes importantes da música daquele tempo, fervilhava. Fechado em 1974, não deixou uma herança financeira para os donos, só lembranças eternas para quem esteve lá e viu muita coisa acontecer. Foi nesse ano que aconteceu o lançamento do primeiro disco do então estreante nos vocais, aos 66 anos, muito bem recebido pela crítica, público, amigos e incentivadores. O trabalho foi eleito o melhor daquele ano.

Se o primeiro LP passou pela vontade do produtor João Carlos Botezelli, o Pelão, um craque que colocou como objetivo de vida gravar Cartola, e do diretor artístico Aluizio Falcão, é impossível também não lembrar de Marcus Pereira (1930-1981). Com seu nome, a gravadora era uma maneira de realizar seu sonho de disponibilizar discos para celebrar a música regional brasileira. Iniciada em oficialmente em 1973 – Pereira já gravava discos, mas para presentear seus clientes da agência de publicidade na qual trabalhava –, a gravadora lançou mais de 140 LPs e entrou para história pela independência, ousadia e sucesso. As atividades acabaram em 1982, um ano depois da morte de Pereira. Hoje, o acervo de Cartola está sob controle da EMI.

Para o segundo disco de Cartola, Juarez Barroso (1934-1976) foi convidado para produzir, muito pelo fato de Pelão e Falcão terem deixado a Marcus Pereira no ano anterior. Formado em ciência jurídicas e sociais pela Universidade Federal do Ceará, Barroso nunca se interessou muito em ser advogado. Segundo amigos próximos, ele sempre teve disposição para as letras – poesia e jornalismo. Entre idas e vindas, de Fortaleza ao Rio de Janeiro, foi parar n'O Globo' graças ao interesse em música brasileira e ficou conhecido no meio por ser uma enciclopédia ambulante no assunto. Quando convidado a ser o produtor do LP, trabalhava no caderno de cultura do 'Jornal do Brasil'.

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O novo nome na produção não significava uma mudança brusca de pensamento. Ao contrário, Barroso era amigo de Cartola e conhecia bem os trabalhos do sambista nas composições – certo dia, no início dos anos 1970, Cartola esteve na redação do jornal em que Barroso trabalhava e foi reconhecido apenas pelo jornalista. A intenção era manter ao máximo o estilo que o consolidou no primeiro disco, por isso foi fundamental a continuidade de Dino 7 Cordas como arranjador.

Considerado por muitos o melhor disco lançado pelo sambista, o registro de 1976 está em várias listas e é aclamado até hoje como um dos grandes do gênero. Então aos 68 anos, Cartola atingia o auge do sucesso e reconhecimento público de suas geniais composições.



Resenha de Cartola (1976)

Um LP que começa com "O Mundo É um Moinho" já merece palmas logo de cara. Essa composição, uma das mais bonitas da música brasileira, ganha um tom delicado com a flauta no início e o violão fazendo o acompanhamento de forma leve, mas a letra é bem triste e fala sobre uma decepção amorosa. Regravada aos montes por aí, nenhuma bate a interpretação original. Depois a faixa ganha força da presença de mais instrumentos, porém o tom continua seguindo a sobriedade das palavras ditas.

"Minha" é outra também melancólica. O tom mais animado ajuda a dar um tom de resignação do personagem principal, que acreditou em "cartomantes, bolas de cristal e cigana" quando contaram a ele que ela seria dele até o fim. Para exaltar a escola de samba Mangueira, "Sala de Recepção", com a participação de Creuza dos Santos (1927-2002), foi composta em 1940 para homenagear a então novidade no carnaval carioca. No Rio de Janeiro, escola de samba é coisa muito séria – mais importante que time de futebol.



Uma típica faixa composta para reclamar da atitude de uma mulher, "Não Posso Viver Sem Ela" é sobre o homem que sempre perdoa, mesmo sabendo dos defeitos e dos pecados da amada em uma gafieira das mais animadas. A seguinte, a linda "Preciso Me Encontrar", foi um pedido de Barroso ao amigo e também sambista Candeia (1935-1978) para o disco. E ninguém mais do que Cartola conseguiria cantar a angústia de sair por aí sem destino, enquanto a mágoa o corrói por dentro. A saudade é tema de "Peito Vazio", o encerramento do lado A.

E o lado B abre com outra faixa de letra melancólica, "Aconteceu", mas, de novo, o tom animado esconde que o personagem está dispensando a antiga amada por não amá-la mais. Outro clássico, "As Rosas Não Falam" nasceu de uma dúvida de Dona Zica sobre ter tantas rosas logo após serem plantadas. Cartola simplesmente respondeu: "não sei, as rosas não falam". Dessa frase nasceu outra grande composição do sambista sobre a melancolia do amor.



"Sei Chorar" trata de uma pessoa já experiente na arte da decepção amorosa que fica desapontada por um amor platônico, já "Ensaboa" é uma faixa simples sobre o hábito de lavar roupa no rio. E se "Senhora Tentação", de Silas de Oliveira, traz a adrenalina do duelo interno de sucumbir à tentação, "Cordas de Aço" é uma homenagem ao eterno companheiro de composição: o violão.

As composições de Cartola são a fina flor do samba brasileiro. Poucos conseguiram traduzir o cotidiano em canções tão simples de entendimento. Esse disco deveria ser estudado nas escolas de tão bom que é e por trazer letras incríveis.



Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - "O Mundo É um Moinho" (Cartola) (3:53)
2 - "Minha" (Cartola) (2:16)
3 - "Sala de Recepção" (Cartola) (3:24)
4 - "Não Posso Viver Sem Ela" (Cartola, Bide) (2:40)
5 - "Preciso Me Encontrar" (Candeia) (2:57)
6 - "Peito Vazio" (Cartola, Elton Medeiros) (2:50)

Lado B

1 - "Aconteceu" (Cartola) (3:53)
2 - "As Rosas Não Falam" (Cartola) (2:51)
3 - "Sei Chorar" (Cartola) (2:26)
4 - "Ensaboa" (Cartola) (3:24)
5 - "Senhora Tentação" (Silas de Oliveira) (3:03)
6 - "Cordas de Aço" (Cartola) (2:15)

Gravadora: Marcus Pereira Discos
Produção: Juarez Barroso
Duração: 35min52s

Cartola: voz

Convidados:

Altamiro Carrilho: flauta
Canhoto: cavaquinho
Dino 7 Cordas: violão de sete cordas e arranjo
Elton Medeiros: ganzá, tamborim e caixa de fósforos
Gilson de Freitas: surdo
Guinga e Meira: violão
Coro do Joab: vozes
Jorginho do Pandeiro: pandeiro
Nelsinho: trombone
Nenê: cuíca e agogô
Wilson Canegal: reco-reco
Airton Barbosa: fagote
Abel Ferreira: saxofone tenor
Zé Menezes: viola de dez cordas
Creusa: vocal em "Sala de Recepção" e "Ensaboa"



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