Discos para história: Gita, de Raul Seixas (1974)


A edição 145 da seção fala de um dos grandes momentos da parceria entre o cantor e Paulo Coelho

História do disco

O fim dos anos 1960 e início dos anos 1970 foram bem estranhos no quesito misticismo. Quase todo músico buscou alguma fonte em alguma crença, religião ou culto. O beatle George Harrison se aprofundou no movimento Hare Krishna, Cat Stevens se encontrou nos islã, Jimmy Page estudou o ocultismo de Aleister Crowley (1875 – 1943) por anos. No Brasil, Jorge Ben Jor lançou a Tábua de Esmeralda (1974), baseado no texto mais importante da alquimia. Influenciado por Paulo Coelho, Raul Seixas também estava seguindo um caminho parecido. Ambos foram o mais longe possível nisso.

O agora escritor mundialmente famoso apresentou ao cantor a filosofia de Crowley baseada na Lei de Thelema. O principal conceito era "Faze o que tu queres será o todo da Lei." Dessas ideias e da utopia de um mundo baseado na irmandade entre todos, a dupla e fundou a Sociedade Alternativa, altamente divulgada durante as apresentações de Raul e sua banda pelo Brasil – não só em músicas, panfletagem e discursos ao longo dos shows eram comuns. Era o auge da contracultura no Brasil que, por uma coincidência, pegou justamente o período da ditadura militar (1964 – 1985).

Mais discos dos anos 1970:
Discos para história: Construção, de Chico Buarque (1971)
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Discos para história: “Heroes”, de David Bowie (1977)
Discos para história: Led Zeppelin III, do Led Zeppelin (1970)
Discos para história: Tonight's the Night, de Neil Young (1975)

"Paulo Coelho apareceu com ele usando uma capa preta, falando em 'demonismo'... Era curioso, porque o Raul estava empolgado com aquilo, mas me via meio cético, meio irônico, e ele entrava um pouco na minha", contou Caetano Veloso no documentário Raul - O Início, o Fim e o Meio (2012).

Considerados subversivos pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), Raul e Paulo foram presos e torturados pelo regime. Quando ambos chegaram no DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna), os torturadores começaram a perguntar sobre o material de Krig-ha, bandolo! (1973) e a tal da Sociedade Alternativa – Coelho apanhou muito na prisão. Como eles sabiam? Gita estava na prensa quando aconteceu tudo isso – todo material era monitorado antes de ir às lojas. Além da mensagem das músicas, Raul Seixas estava de boina e guitarra vermelha na capa – um verdadeiro guerrilheiro para alguns. Em julho de 1974, os dois foram exilados e foram para os Estados Unidos.

Veja também:
Discos para história: Da Lama ao Caos, de Chico Science & Nação Zumbi (1994)
Discos para história: Dois, da Legião Urbana (1986)
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Discos para história: Bloco do Eu Sozinho, do Los Hermanos (2001)
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Discos para história: Exile on Main St., dos Rolling Stones (1972)

Gravado ao longo do primeiro semestre de 1974, Gita foi inspirado nesse misticismo que envolvia as vidas de Raul Seixas e Paulo Coelho. O título veio do livro sagrado Bhagavad Gita, a história de quando Krishna encontrou o guerreiro Arjuna no campo de batalha em Kurukshetra para lhe passar os ensinamentos sagrados durante uma importante guerra à época. O livro tem diversas passagens importantes sobre o cumprimento do karma por parte das pessoas e outros ensinamentos sobre a vida, morte, adoração a Deus e outras coisas. E Paulo Coelho seguia a risca os ensinamentos de Crowley. Natural sair uma mistura de tudo isso.

O exílio de Raul durou pouco nos Estados Unidos. O motivo? Gita foi lançado no Brasil e atingiu 600 mil cópias rapidamente. A mensagem da Sociedade Alternativa estava se espalhando com muita rapidez, então os militares não tiveram outra alternativa a não ser trazer o cantor de volta ao Brasil. O sucesso era muito grande para ignorá-lo. No final daquele ano, ele estava de volta para colher os louros de um enorme sucesso que foi seu terceiro disco de estúdio.



Resenha de Gita

Muito mais do que qualquer influência do ocultismo ou do Movimento Hare Krishna, é necessário entender as influências musicais de Raul Seixas ao longo de sua discografia (1968 – 1989). A primeira apresentada é o rockabilly de "Super-Heróis", uma faixa cheia de referências a alguns personagens de sucesso da cultura pop do Brasil. A balada romântica "Medo da Chuva" (Eu perdi o meu medo/ O meu medo, o meu medo da chuva/ Pois a chuva voltando/ Pra terra traz coisas do ar) virou um imenso sucesso. Muito pela letra, mas deveria ter sido pelos belos arranjos – tem uma harpa e tudo mais que Raul tinha direito.

"As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor" é um repente muito interessante sobre o próprio Raul e o momento que ele estava vivendo no Brasil entre direita e esquerda, entre sem saber em quem confiar e sobre a tentativa de adivinhar o significado de algumas de suas letras. Outra que merecia mais atenção é "Água Viva", faixa acústica que também tem um arranjo absurdo. Se "Moleque Maravilhoso" tem um clima de boate de jazz dos anos 1940, "Sessão das 10" é um bolero melancólico daqueles para não colocar nenhum defeito.



Reparem bem: não nenhuma canção igual a outra, todas são diferentes em todos os aspectos. Raul Seixas era ou não um gênio? Só esse lado A já responde a pergunta. Mas a coisa pega mesmo no lado B, que abre com o clássico "Sociedade Alternativa". O hino ao que ele e Paulo Coelho acreditavam virou algo absurdo, algo ainda vivo nos tempos atuais. A letra prega tudo que Crowley ensinava, além das referências a personagens da cultura pop. É um dos grandes sucessos da música popular brasileira em todos os tempos.

As violas caipiras na balada "O Trem das 7" podem ser o maior motivo para se prestar atenção, mas há mais. Aqui, explicitamente, Raul fala sobre o 'Velho Aeon' - Crowley falava sobre o 'Novo Aeon', a era de Thelema. Mas o compositor fez algo tão brasileiro aqui, que poucos realmente vão atrás do real significado sombrio da chegada do profetizado pelo ocultista na letra. O country-blues de "S.O.S." é, como dizia Raul, uma "homenagem" (um roubo deliberado é a tradução disso) a outros artistas – no caso, a banda Byrds e a ótima "Mr. Spaceman". "Prelúdio" tem um arranjo grandioso em cima de uma letra densa e triste, bebendo muito na 'música de fossa' feita entre o fim dos anos 1950 e início dos anos 1960 no Brasil. Gravada ao vivo, "Loteria da Babilônia" é uma faixa autobiográfica sobre o próprio Aleister Crowley.



O auge vem no encerramento com "Gita", que contou com 62 pessoas no estúdio para gravar os arranjos – Seixas tocou piano. É possível ouvir exatamente aquilo que Krishna disse para Arjuna no campo de batalha: que ele era tudo e estava em tudo (Eu sou a luz das estrelas/ Eu sou a cor do luar/ Eu sou as coisas da vida/ Eu sou o medo de amar). Raul Seixas conseguiu traduzir a complexidade de um livro estuado por anos no ocidente e no oriente sem dificuldade. Os dois versos iniciais são o homem em crise sem saber o que fazer. Na sequência, a divindade dá as respostas – ainda que não claras. Ele insiste em receber perguntas e insiste que é tudo e está em todo lugar. O fim reserva um clássico da Bhagavad Gita em que Krishna diz que é "o início, o fim e o meio".

Não há dúvida: é um dos grandes discos da música brasileira. Raul Seixas ficou conhecido como o cara engraçado, o tal maluco beleza. Mas ele era muito mais. Quem no Brasil conseguiu unir tantas influências musicais em um mesmo trabalho? A união com Paulo Coelho rendeu um disco incrível e de ótimas canções do início ao fim, sem sobras e sem erros. A música popular brasileira nunca mais foi a mesma depois desse álbum.



Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - "Super-Heróis" (Raul Seixas / Paulo Coelho) (3:11)
2 - "Medo da Chuva" (Raul Seixas / Paulo Coelho) (3:00)
3 - "As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor" (Raul Seixas) (3:40)
4 - "Água Viva" (Raul Seixas / Paulo Coelho) (2:02)
5 - "Moleque Maravilhoso" (Raul Seixas / Paulo Coelho) (2:16)
6 - "Sessão das 10" (Raul Seixas) (2:20)

Lado B

1 - "Sociedade Alternativa" (Raul Seixas / Paulo Coelho) (2:55)
2 - "O Trem das 7" (Raul Seixas) (2:40)
3 - "S.O.S." (Raul Seixas) (3:06)
4 - "Prelúdio" (Raul Seixas) (1:12)
5 - "Loteria da Babilônia" (Raul Seixas / Paulo Coelho) (2:30)
6 - "Gita" (Raul Seixas / Paulo Coelho) (4:50)

Gravadora: Philips
Produção: Marco Mazzola
Duração: 33min42

Raul Seixas: piano, violão, guitarra e arranjos

Convidados:

Luis Cláudio, Rick Ferreira, Tony Osanah e Alexandre: guitarra
Alex Malheiros, Luizão, Ivan, Sérgio Barroso, Juan Roberto Capobianco e Paulo César Barros: baixo
Mamão, Paulinho e Gustavo Schroeter: bateria
José Roberto Bertrami, Miguel Cidras e Jay Vaquer: teclado
Neco e Tony Osanah: violão
Miguel Cidras: orquestração
Orquestra da Phillips: instrumentos diversos



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