Discos para história: Kimono My House, dos Sparks (1974)

História do disco

“Kimono My House é um disco do qual definitivamente gostamos, musical e liricamente. Isso nos deu a oportunidade de vir para a Grã-Bretanha e ser muito bem recebidos. Foi um álbum muito especial, tanto comercial quanto na crítica, então significa muito para nós. Nunca gostamos de ficar muito nostálgicos... Mas vamos apenas dizer que, sem o recriar, toda vez que fazemos um álbum tem que ser o ‘Kimono My House’ de agora”, afirmou Russel Mael, em entrevista ao site dos Sparks.

Lançado em 1º de maio de 1974, o terceiro álbum de estúdio da banda liderada por Ron e Russell Mael foi um ponto de virada de uma carreira iniciada ainda no final dos anos 1960, quando a dupla conseguiu chamar a atenção de gente do calibre do empresário Albert Grossman e do músico e Todd Rundgren. Os Sparks tinham tudo para dar certo, com as condições ideais para isso, mas não aconteceu. No documentário “Irmãos Sparks”, de Edgar Wright, Rundgren, produtor do primeiro álbum deles, lançado pelo pequeno selo Bearsville, se pergunta até hoje os motivos que levaram a banda a não conseguir o sonhado sucesso nos Estados Unidos.

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Apesar de um destaque menor aqui e ali, eles nunca estouraram de fato na terra natal como imaginado por qualquer um com o mínimo de contato com a música deles. Um dia, acabaram indo fazer uma série de apresentações em Londres e puderam conhecer mais da cena de glam rock que estava rolando, liderada principalmente por Marc Bolan, do T.Rex, e David Bowie. Ficaram encantados, é claro. De volta aos Estados Unidos, olhando a falta de perspectiva e como estavam mudados com os dias na Inglaterra, abandonaram a formação da banda até ali — sem ressentimentos — e partiram com as malas para fixar residência onde foram tão bem recebidos.

Com um sucesso maior do que no outro lado do Atlântico, rapidamente a Island se interessou para tê-los na gravadora e lançar um álbum o mais rápido possível. Foi assim que o baixista Martin Gordon, o guitarrista Adrian Fisher e o baterista Norman ‘Dinky’ Diamond foram escolhidos para integrar a nova formação dos Sparks, sempre com os irmãos Mael à frente de tudo.

“A Island tinha essa filosofia de incluir um som com um forte senso de originalidade. Não importava se era um grupo de reggae da Jamaica ou uma banda de rock estilizado como o Free, tudo poderia ser válido desde que tivesse um cunho especial”, lembrou Russell, em entrevista para a ‘Classic Rock’.

Com tudo ajeitado para o início das gravações, faltava a contratação de um produtor. Ron e Russell queriam Roy Wood, conhecido pelos trabalhos em três dos quatro álbuns da banda The Move e futuro cofundador da Electric Light Orchestra ao lado de Jeff Lynne. Mas, por uma razão desconhecida, ele não quis trabalhar com eles. O escolhido acabou sendo Muff Winwood, irmão mais novo de Steve Winwood e baixista Spencer Davis Group até 1967, quando deixou a banda com o irmão. Sem a mesma empolgação do início de juventude para ter uma banda, acabou indo para os bastidores e virou produtor — futuramente, viraria um dos grandes executivos de sucesso da indústria musical britânica, trabalhando como A&R na própria Island e representante da gravadora CBS na ilha. 

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“Ele era baixista do Spencer Davis Group, o que era outra vantagem, e eu estava pensando que talvez ele trouxesse seu irmão [Stevie] para me ajudar com meus vocais!”, brincou Russell, também para ‘Classic Rock’.

O lançamento do single “This Town Ain't Big Enough for Both of Us” gerou enorme expectativa, cumprida ao escalar a montanha das paradas de sucesso rumo ao segundo lugar no Reino Unido. Nada mal para uma banda americana. Com isso, como era de praxe, eles foram convidados para se apresentar no Top of the Pops, popular programa de música transmitido pela BBC, de 1964 até 2006, com a faixa. Um dos espectadores nesse dia era John Lennon. Espantado com qualidade musical deles, telefona para Ringo Starr e diz que acabou de ver Marc Bolan cantando com Hitler - assim diz a lenda, que não deve ser verdade, mas, nesse caso, às favas com a verdade.

“Sempre idolatramos as bandas britânicas. Sempre tentamos ser como The Who ou Kinks, embora, estilisticamente, não tenha sido assim. Então, ser trazido para o Reino Unido pela Island e viver esse sonho foi algo incrível”, falou Ron, na mesma entrevista.

Quando “Kimono My House” foi lançado, muitos pensavam ser a estreia deles. Ou que eles eram britânicos. Ou até franceses, em muitos casos. À medida que o LP era comprado e as pessoas ouviam, começou uma espécie de Sparksmania na Inglaterra, ajudando “Amateur Hour” a disparar direto ao sétimo lugar da parada. E o single puxou ainda mais a venda do disco, batendo na quarta posição no auge do verão europeu. A NME chamava o trabalho de “clássico instantâneo”, a dupla não parava de dar entrevistas e tocar na TV e no rádio pela Europa. Acabaram ganhando o Disco de Ouro.

A partir desse momento, a dupla consolidou a identidade visual que os acompanha até hoje: o desenvolto vocalista Russell e o discreto Ron, compositor dos grandes hits da história da dupla, com letras anárquicas, engraçadas e histórias constrangedoras. 

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“Ter humor na música pop às vezes é considerado frívolo. Mas sempre sentimos, pelas bandas que amamos originalmente, que as letras poderiam operar em dois níveis. Uma música pode ser engraçada e ainda funcionar em outro nível emocional mais profundo. Até hoje fico maravilhado com aquelas primeiras músicas do The Who. Às vezes sinto pena que Pete Townshend tenha crescido emocionalmente, porque nós não crescemos”, brincou.

O período na Inglaterra gerou mais três discos: “Propaganda” (1974), “Indiscreet” (1975) e “Big Beat” (1976). Com vendas cada vez menores, a dupla desmontou a formação britânica e retornou aos Estados Unidos, mas acabou sendo um movimento importante por ratificar algo fundamental na alma e na criatividade dos Sparks: eles jamais seriam reféns da própria obra e viveriam uma via de puro instinto artístico até atualmente, quando estão melhores do que nunca.

Crítica de “Kimono My House”

Inspirada pelo movimento glam rock do Reino Unido, “This Town Ain't Big Enough for Both of Us” surge como uma potência sonora cheia de guitarras e um vocal inspirado de um jovem Russell Mael para cantar um refrão inesquecível para quem viveu o lançamento de “Kimono My House” há 50 anos (“This town ain't big enough for the both of us/ And it ain't me who's gonna leave”).

O disco vira uma grande festa quando surge “Amateur Hour”, momento é que é possível olhar com muito carinho a inspiração musical dos Sparks — qualquer coisa que eles estivessem com vontade de fazer naquele momento. Entre as duas músicas do começo, um desinformado diria ser de duas bandas completamente diferentes. Mas é a mesma (“Amateur hour goes on and on/ And when you turn pro you know/ She'll let you know/ Amateur hour goes on and on/ And when you turn pro/ You know she tells you so”).

O teclado de Ron aparece com mais presença em “Falling in Love with Myself Again”, um pop inspirado pelos grandes momentos da música de cabaré do início do século XX. E se o falsete do vocal de Russell faz toda diferença em “Here in Heaven”, “Thank God It's Not Christmas” antecipou em 30 anos a música que faria sucesso com as novas gerações do rock do início dos anos 2000. Um feito notável e pouco valorizado até atualmente.

A segunda parte do trabalho começa com a história de um homem abandonado pela amante por não pensar em outra coisa que não fazer sexo com ela (“Hasta Mañana, Monsieur”), contada de maneira engraçadíssima pela banda no refrão “Hasta Mañana, Monsieur/ Were the only words that I knew for sure/ Hasta Mañana, Monsieur/ Were the three little words that I knew you'd adore”. E só mesmo eles para fazer uma música cheia de trocadilhos com matemática e física como em “Talent Is an Asset”, uma homenagem, do jeito deles, a Albert Einstein.

A dançante “Complaints” apela para uma banda inspirada e cheia de energia para uma das faixas mais caóticas do álbum, diferentemente de “In My Family”, quando eles anteciparam a música pop em, pelo menos, uma década. Caso lançada nos anos 1980, teria sido um dos grandes hits do período (“There you got your Rockefeller/ There you got your Edward Teller/ J. Paul Getty is a splendid fellow, but/ None of them would be in my family). “Equator” encerra o álbum da maneira mais Sparks possível: uma canção pop com os dois pés no esquisito — uma faixa pré-The Rocky Horror Picture Show.

“Kimono My House” deveria ser um desses marcos da história da música pop, um antes e depois, algo a ser estudado nas escolas de todo mundo. Criativos, os Sparks fazem da própria música um amplo experimento sobre o momento, o passado e futuro, sem o menor medo de soar estranho ou fora do lugar. Cinco décadas após o lançamento, o disco ainda soa fresco, empolgante e, acima de tudo, uma prova de um talento merecedor de um lugar de destaque na história.

Ficha técnica

Tracklist:

Lado A

1 - “This Town Ain't Big Enough for Both of Us” (3:05)
2 - “Amateur Hour” (3:37)
3 - “Falling in Love with Myself Again” (3:03)
4 - “Here in Heaven” (2:48)
5 - “Thank God It's Not Christmas” (5:07)

Lado B

6 - “Hasta Mañana, Monsieur” (Russell Mael/ Ron Mael) (3:52)
7 - “Talent Is an Asset” (3:21)
8 - “Complaints” (2:50)
9 - “In My Family” (Russell Mael/ Ron Mael) (3:48)
10 - “Equator” (4:42)

Todas as músicas forma escritas por Ron Mael, exceto as marcadas

Gravadora: Island
Produção: Muff Winwood
Duração: 36min19

Russell Mael: vocal
Ron Mael: teclado
Martin Gordon: baixo
Adrian Fisher: guitarra
Norman ‘Dinky’ Diamond: bateria, percussão e castanhola

Richard Digby-Smith e Tony Platt: engenheiro de gravação
Bill Price: engenheiro de mixagem

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