Festival: In-Edit Brasil 2023

Ontem (14), começou oficialmente a 15ª edição do In-Edit Brasil, tradicional festival de documentários musicais. Até o dia 25, presencial e online, o público tem a chance de assistir muita coisa que não entra tão cedo no circuito dos cinemas ou no streaming. 

Clique aqui para mais informações sobre o festival e aqui para ver como foi a cobertura do blog nos anos anteriores.

Documentários e filmes vistos:
Resenha: Fausto Fawcett na Cabeça
Resenha: Twist, de Ron Mann (1992)
Resenha: O Prisioneiro do Rock 'n' Roll, de Richard Thorpe (1957)
Resenha: Imagine The Sound, de Ron Mann (1981)
Resenha: Louder Than You Think, de Jed I. Rosenberg
Resenha: Elis & Tom - Só Tinha que Ser Com Você, por Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay
Resenha: Miúcha - A Voz da Bossa Nova, de Daniel Zarvos e Liliane Mutti
Resenha: Look At Me - XXXTENTACION, de Sabaah Folayan
Resenha: CAN and Me, de Michael P. Aust
Resenha: The Elephant 6 Recording Co., de Chad Stockfleth

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Abaixo, outros documentários assistidos ao longo de todo evento:

Mestre Pinduca/Divulgação
"As Origens da Lambada" (2023)

A cultura paraense é uma das mais ricas do Brasil e ficou mundialmente conhecida pela lambada, gênero musical que mistura música caribenha com ritmos locais. Sempre contada por cima em documentários sobre os ritmos locais, agora ganha um longa para chamar de seu no simples e efetivo "As Origens da Lambada", de Sonia Ferro e Félix Robatto.

Sem enrolar o espectador, o documentário já começa com tudo ao mostrar como a lambada foi "criada" a partir da chegada de um ritmo instrumental dançante ouvido nas rádios de Belém, vindo diretamente do Caribe, uma dessas coisas que só aconteceriam mesmo no tempo do rádio e das frequências. Lá, essa dança foi atualizada e gerou duas vertentes: a guitarrada e a lambada - a origem do nome tem duas histórias distintas, assim como quem gravou um disco com o nome pela primeira vez.

Com depoimentos de músicos, produtores e pesquisadores, a origem é elucidada de uma vez por todas por quem esteve lá desde o início, quando a divisão levou a lambada a ser algo da periferia e das chamadas "casas de tolerância", algo que não pegava bem nas festas da elite. Esse cenário mudou no final dos anos 1980, quando Beto Barbosa e o grupo Kaoma levaram o gênero a outro patamar a mudaram a história para melhor. Hoje, Belém é berço de uma das músicas mais criativas e instigantes do Brasil graças a Mestre Vieira e Mestre Pinduca.

Avaliação: bom

"Louis Moreau Gottschalk, Popstar no Séc XIX ou somente um pianista" (2023)

Imaginem só: um pianista americano talentoso, filho de uma haitiana com um alemão-americano, já na adolescência é enviado para Paris para estudar, começa a fazer turnês na Europa, retorna ao país de origem e decide passar o resto da vida viajando pelo mundo e acaba parando no Brasil. Essa é a história de Louis Moreau Gottschalk, que quebrou diversos paradigmas no início do século XIX.

No documentário "Louis Moreau Gottschalk, Popstar no Séc XIX ou somente um pianista", temos a chance de conhecer um pouco da história dele. Com muitas imagens bonitas e pouco produtivas para a história, acompanhamos Luiza Gottschalk, artista plástica, ex-apresentadora e parente distante do pianista, em uma viagem até os Estados Unidos para conhecermos os diários, peças publicitárias e o trabalho musical dele em quase 30 anos de carreira.

Com depoimentos iniciais de pesquisadores e do responsável pelo acervo, o longa é preenchido por apresentações de alguns de seus principais trabalhos e intervenções de um narrador com falas tiradas diretamente dos diários. Sem se aprofundar em nenhum momento, o documentário pouco ajuda a elucidar muitos pontos e acaba se perdendo em tantas firulas desnecessárias. Uma pena, já que a história é das mais interessantes.

Avaliação: regular


"Dolores Duran – O Coração da Noite" (2023)

A música brasileira é marcada por períodos muito férteis de produção ao longo da história. Um desses momentos é os anos 1940 e 1950, quando uma profusão de cantores e cantoras fizeram sucesso nas ondas do rádio, veículo fundamental na popularização da maioria. Uma dessas pessoas é Dolores Duran, com a história contada no competente "Dolores Duran – O Coração da Noite".

Poucas cantoras brasileiras viveram tão intensamente quanto ela. Nascida em 1930 e morta exatos 29 anos depois, Duran deixou um legado muito mais personalista, pela vida que viveu, do que musical - são apenas 35 canções registradas na carreira, sendo apenas sete gravadas por ela.

Os diretores Juliana Baraúna e Igor Miguel fazem o simples: conversam com pessoas que conviveram com ela (João Donato, a irmã, uma amiga muito próxima), pesquisadores e a filha adotiva para jogarem luz em uma vida intensa e uma obra regravada por centenas de artistas ao longo dos anos. Como complemento, um bonito número musical ajuda a potencializar as letras desse fenômeno que nos deixou muito cedo, mas marcou para sempre gerações de cantoras.

Avaliação: bom


"La danza de Los Mirlos" (2022)

A cumbia é um gênero musical muito famoso na América Latina e ficou conhecida no Brasil quando o ex-atacante Carlos Tevez dançava a cada gol marcado pelo Corinthians. No documentário "La danza de Los Mirlos", é possível saber que foi uma banda peruana a responsável pela popularização da cumbia e a levou para diversos lugares do mundo, sendo reconhecida há pouco mais de 15 anos como uma das grandes influências do ritmo.

Los Mirlos foi um grupo peruano, nascido na parte amazônica do país, que "inventou" a cumbia como conhecemos. Chamada de cumba amazônica, o pai da guitarrada paraense, o gênero foi ganhando popularidade no país à medida do aumento do sucesso deles. No longa dirigido por Álvaro Luque, não só conhecemos o grupo, como é possível aprender sobre a indústria da música local e descobrir outras bandas de sucesso no país entre os anos 1970 e 1980.

Simples e bem objetivo, conhecemos a história de Los Mirlos, o talento dos envolvidos, a potente dança, os problemas e como acabaram sendo "descobertos" por jovens músicos em pleno século XXI. "La danza de Los Mirlos" merece ser visto para fazermos essa conexão com nossos vizinhos, tão em falta desde quase sempre.

Avaliação: bom

"Villa-Lobos em Paris" (2023)

Heitor Villa-Lobos é um dos músicos mais influentes do mundo quando o assunto é música clássica, sendo estudado - quase dissecado - por várias gerações ao longo dos últimos anos. Um dos momentos mais marcantes da carreira é a passagem por Paris, quando deixou de ser alguém que buscava inspiração para ser um inspirador, contado no ótimo "Villa-Lobos em Paris".

Com o maestro Alexandre Guerra conduzindo o espectador, com as ótimas edição e imagens, somos levados à Cidade Luz para conhecermos os lugares em que o maestro brasileiro passou, com quem conversou - escritores, filósofos e outros maestros - e como esses momentos o ajudaram a buscar dentro do Brasil a verdadeira inspiração para a música tão celebrada hoje e fundamental no ensino clássico desde então.

O documentário conta com tudo que há de melhor: imagens de arquivo, montagem, especialistas explicando esse momento importante na vida dele - como Villa-Lobos saiu das vaias da Semana de 22 para ser celebrado -, e um roteiro delicioso para conhecermos mais sobre essa pessoa tão celebrada mundo afora e, como sempre, quase esquecida na terra onde nasceu.

Avaliação: ótimo


"Mostra Reverbo" (2023)

Projeto coletivo fundado em Pernambuco, o Reverbo começou pequeno, apenas com artistas de Recife, mas acabou se expandindo para o interior e virou esse enorme grupo de pessoas tão diferentes e com o mesmo objetivo: levar a própria arte e a dos amigos o mais longe possível. Essa história é contada em "Mostra Reverbo".

Com depoimento dos criadores e dos envolvidos, o documentário é competente em boa parte do percurso, até começar a ficar repetitivo com os artistas basicamente falando as mesmas coisas sobre o projeto, amizade e outras coisas. Nesse caso, a opção por equilibrar os depoimentos e números musicais completos poderia ser melhor.

A boa ideia do Reverbo é unir pessoas diferentes, pessoal e artisticamente, em uma coisa única. E funciona para todos, que mostram gratidão. Uma pena que o documentário não consegue mostrar toda essa potência ao optar por colocar todos na tela, geralmente uma escolha ruim.

Avaliação: regular

"Peixe Abissal" (2022)

"'Peixe Abissal' nos apresenta um território onde literatura, música e pintura se cruzam em um submundo gay e pornográfico". Nunca na história uma descrição do In-Edit Brasil sobre um documentário foi tão precisa quanto essa.

Luís Capucho é um poeta, pintor, compositor e escritor que explora ao máximo os próprios desejos, pornografia e uma espécie de Complexo de Édipo nas próprias obras, carregadas sobre as próprias experiências de maneira muito realista. E o documentário de Rafael Saar não fica nada atrás ao reproduzir essas experiências em tela ao longo de quase duas horas.

O longa não é fácil e exige um comprometimento mental muito forte pelas imagens pesadas de uma pessoa tão complexa quanto Capucho, um artista único entre os únicos. Se quiser ver, é bom estar preparado.

Avaliação: bom


"Backstreet Boys: Show 'Em What You're Made Of" (2015)

Em meados dos anos 1990 e início dos anos 2000, era impossível não ouvir uma música dos Backstreet Boys em qualquer lugar de qualquer cidade do mundo. Formado por A.J. McLean, Brian Littrell, Howie Dorough, Kevin Scott Richardson e Nick Carter, o grupo foi um verdadeiro fenômeno de vendas e mídia. Mas isso simplesmente acabou.

Em "Backstreet Boys: Show 'Em What You're Made Of", o quinteto retorna com formação completa pela primeira vez em mais de uma década para os ensaios de uma turnê mundial muito esperada pelos fãs. Com mistura de imagens de arquivo, depoimentos e idas aos lugares importantes, vemos que o trabalho deles foi pesado, intenso e mal-pago na maior parte do tempo.

O problema está em o longa soar uma imensa peça de propaganda, não um documentário. Por exemplo, Lou Pearlman, empresário, criador do grupo e trambiqueiro de primeira, é citado em poucos momentos - quando era cheio de poder e na derrocada. E, durante as definições do novo álbum de estúdio, tem uma briga tão encenada que soa ridículo ver marmanjos de quase 40 anos ou mais se prestando a esse papel.

Decepcionante, "Backstreet Boys: Show 'Em What You're Made Of" foi feito para agradar aos fãs e só.


 "Terruá Pará" (2023)

A música paraense e suas vertentes foram alvos de vários documentários e curtas ao longo dos últimos anos, mas ninguém ainda tinha colocado todas as influências em um material só para mostrar como essa evolução aconteceu até hoje. "Terruá Pará" tem essa missão ao mostrar artistas de diferentes gerações, unidos pela linha do tempo da história.

Desde os índigenas até as rimas do crescente rap local, o documentário traz muita música e vários desses personagens, com depoimentos importantes sobre o poder da música e essas influências das rádios caribenhas no som local. Aliado com bonitas imagens, somos levados de dentro da mata até a cidade, quase um passo a passo entre o passado e os dias atuais.

Uma pena que o final seja um pouco desconexo com o resto, mas, no geral, "Terruá Pará" é mais um documento importante para quem não é local entender um pouco mais como essa música tão cativante e cheia de misturas deixou de ser algo exclusivamente amazónico para virar do mundo.

Avaliação: bom


"Chiquinha Gonzaga - Música Substantivo Feminino" (2023)

O apagamento de personagens importantes da música brasileira ocorre diariamente, gerando confusão e gente se achando "inventor" de coisas que já existiam há muito tempo. Uma dessas pessoas que merece ter a história recontada é Chiquinha Gonzaga, que ganha no documentário "Chiquinha Gonzaga - Música Substantivo Feminino" o destaque e celebração merecidos.

A partir da perspectiva do apagamento das influências da música negra na carreira da compositora, pianista e maestrina - aliás, termo criado para ela por não haver, na época, o feminino para maestro -, vemos especialistas de várias áreas falando sobre o período, no final do século XIX e início do século XX, em que ela quebrou paradigmas para entrar para a história da música brasileira em vários aspectos.

Certos documentários são feitos pela vontade das pessoas em alimentar o próprio ego, outros são feitos para contar histórias. Já esse merece ser passado nas escolas e faculdades de todo Brasil, e quem sabe do mundo, para mais gente ter a chance de conhecer um pouco mais dessa carreira tão fascinante, conhecer como era aquele Brasil e um pouco mais da música negra trazida pelos escravos de várias partes da África, tão influente no nosso dia a dia até hoje.

Avaliação: bom


"O Sucesso e O Abstrato" (2023)

A música gaúcha é conhecida no Brasil pela tradição ou pelos poucos artistas que conseguiram sair da bolha para o sucesso nacional. Um desses que merecia ter mais sorte, mas, pelas circunstâncias do destino não conseguiu, foi Flávio Chaminé, personagem do documentário "O Sucesso e O Abstrato".

Usando como base uma entrevista em que duas perguntas são feitas - "o que é sucesso?" e "o que é abstrato?" -, podemos conhecer um pouco mais quem foi esse personagem tão fascinante do Rio Grande do Sul através de entrevistas feitas ao longo de vários anos. Aqui, é possível valorizar o trabalho de pesquisa para encontrar as imagens para fazer a montagem.

O longa mostra como muitos talentos espalhados pelo Brasil não tem a chance de um sucesso nacional, ainda mais um personagem tão peculiar e fascinante como Flávio Chaminé, um músico que merecia muito mais do teve.

Avaliação: bom


"Famoudou Konaté - The King of Djembe" (2023)

O Djembe é um instrumento originario da Guiné com forte papel cultural no país ao ser fundamental em cerimônias variadas - de festas ao religioso. E como todo objeto do tipo, existe um grande especialista. Em "Famoudou Konaté - The King of Djembe", conhecemos Famoudou Konaté que, aos 80 anos, decidiu contar as dores e alegrias de ser um músico da África Ocidental pelo mundo.

Agora um agricultor e morador de um pequeno vilarejo, Konaté tem muita história para contar sobre as turnês feitas com o Ballet Africano, então criado pelo governo após a independência para mostrar ao mundo a música feita no país. Se no palco a festa era enorme, fora dele o sufoco era enorme - ele chegou a passar fome na Itália, quando tinha apenas US$ 20 por semana para sobreviver e só conseguiu ter uma vida melhor quando começou a dar aulas a europeus e pesquisadores.

Como toda pessoa de outra geração, e mais ainda sendo um mestre do Djembe, ele se ressente pelo fato de apenas pessoas brancas, europeias na maioria, mostrarem interesse na cultura e no instrumento. Segundo ele, os africanos só gostam de música eletrônica e de ficar no celular o tempo inteiro.

Com depoimentos de outros músicos importantes do Djembe e moradores do vilarejo, o longa mostra como a manutenção de uma tradição sempre corre risco quando não gera interesse nos mais jovens. E como Famoudou Konaté merece ser celebrado como um dos grandes músicos da história de toda África.

Avaliação: muito bom

"Licht: Stockhausen’s Legacy" (2022)

O compositor Karlheinz Stockhausen foi um dos grandes gênios da história da música clássica moderna ao misturar com instrumentos sintéticos e fazer um material único. Em "Licht: Stockhausen’s Legacy", mais de uma década após sua morte, um produtor holandês propôs o desafio de encenar "Licht", uma ópera complexa que precisa de muito empenho dos músicos e uma semana para ser executada.

Além dos bastidores dos ensaios, podemos conhecer um pouco da vida pessoal do maestro com os depoimentos das ex-esposas, das viúvas (sim, ele morava com duas mulheres) e dos filhos. E descobrimos que ele, como qualquer gênio, não era dos mais fáceis para lidar - para ficar em um exemplo, ele cortou contato com todos os filhos que o criticaram em algum momento ou optaram por não trabalhar mais com ele.

Mas também descobrimos que ele não teve uma infância fácil, com a mãe sendo internada em uma clínica psiquiátrica nos anos 1930 após tentar o suicídio - ela acabou sendo executada na câmara de gás pelos nazistas - e o pai, um professor simpático ao Terceiro Reich, entrou na linha de tiro propositadamente quando convocado para a Segunda Guerra Mundial. Stockhausen, aos 16 anos, precisou ajudar a enterrar corpos, e isso mudou para sempre o jeito de lidar com a vida.

Entre a dureza dos ensaios e tensão, o documentário traz uma das mentes mais brilhantes da música clássica e a tentativa de reproduzi-lo com a maior fidelidade possível em meio às lembranças de emoções variadas sobre Stockhausen.

Avaliação: ótimo

"Reggae Resistência" (2023)

O reggae é desses gêneros de sucesso mundial que acabou criando raízes em vários países, geralmente levado pelos imigrantes jamaicanos para os Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo. No Brasil, chegou através da influência de artistas, como Gilberto Gil, e a sorte de alguns em conseguir os álbuns. A Bahia acabou virando um desses celeiros ao fazer do ritmo algo muito próprio e importante na divulgação de boas mensagens.

"Reggae Resistência" apresenta um recorte muito específico do reggae através do Recôncavo Baiano, com destaque para as cidades de Cachoeira e São Félix. Músicos, produtores e gente da cena dão depoimentos importante sobre o lugar e mostram que nem sempre um ritmo vai seguir as mesmas características do original e acaba absorvendo a história local para criar algo único.

Dirigido por Cecília Amado e Pablo Oliveira, o longa faz uma bela homenagem aos músicos locais e, em pouco mais de uma hora, mostra como a música tem papel fundamental para criar um senso de comunidade em qualquer lugar.

Avaliação: bom

"Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor" (2022)

Lupicínio Rodrigues é um desses gênios da música brasileira cada vez mais empurrado ao esquecimento por conta da pouca valorização do brasileiro sobre a própria história. Um dos primeiros a fazer das decepções amorosas canções marcantes, ele é o personagem principal de "Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor" que, com depoimentos de arquivo e muitas imagens recuperadas, mostram como ele foi um dos grandes talentos da composição.

Gaúcho de nascimento e vindo de família de escravos, ele começou na música muito cedo e dividia o tempo com outros empregos. E segregado por pessoas e lugares, abriu bares para conseguir tocar e viver de música. Quando foi descoberto, logo virou o "protegido" de Francisco Alves, um dos grandes cantores brasileiros dos anos 1930 e 1940.

A dificuldade em gravar se refletiu na própria obra, com alguns lançamentos nos famosos 78 rotações da época e apenas dois álbuns de estúdio - futuramente, ele ganharia várias coletâneas e tributos para juntar a obra em LPs e CDs. O sucesso veio ao ser regravado por outros artistas e o tardio reconhecimento só chegou ao ser exaltado pelo então jovem pessoal da Tropicália. Mas nunca o suficiente para fazê-lo ter uma vida para além do confortável.

O documentário, além da música, mostra como é difícil descobrir a origem das pessoas negras no Brasil pelo apagamento dessas histórias ao longo dos anos. E, claro, celebra a vida e a obra de Lupicínio Rodrigues, que usou tão bem os desencontros da própria vida amorosa como uma valiosa matéria prima para canções eternizadas.

Avaliação: muito bom

"Tangos e Tragédias Para Sempre" (2022)

O espetáculo musical Tangos e Tragédias, encenado no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, pela dupla Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky fez história ao ficar quase três décadas em cartaz de maneira initerrupta. Dirgido por Aloisio Rocha, o documentário "Tangos e Tragédias Para Sempre" conta com depoimentos de pessoas famosas, amigos da dupla e de Gomez para contar um pouco desse pedaço importantíssimo da cultura local.

Uma boa escolha da montagem e edição foi colocar trechos do espetáculo encenado em 1997 entre os depoimentos que contam as histórias dos bastidores, da criação dos personagens e como os dois foram aperfeiçoando o show ao ponto de torná-lo quase um vício e uma espécie de obrigação para quem morava na cidade ou estava só de passagem. Com isso, é impossível não cair na gargalhada em vários momentos.

Também emocionante, o longa é uma homenagem a Nicolaiewsky, morto durante a 29ª temporada em consequência de uma leucemia. Celebrado por quem viu e trabalhou com eles, Tangos e Tragédias merecia um material assim, que fizesse jus ao legado. É por isso que o documentário é imperdível.

Avaliação: muito bom

"This Is National Wake" (2022)

Em plena África do Sul, no momento mais duro do apartheid, uma banda que unia brancos e negros estava pronta parao sucesso - a formação dela por si só já era algo único - com o lançamento do primeiro álbum de estúdio. Mas, em um estado de exceção e leis muito rígidas, o estresse e ameaças colocaram tudo a perder para o National Wake. O longa "This Is National Wake", de Mirissa Neff, conta essa importante história sobre esse grupo que não conseguiu superar uma das coisas mais terríveis da história do país.

Com muitas imagens de arquivo da época e depoimentos de quem esteve lá, somos guiados pela voz de Ivan Kadey, vocalista e guitarrista do grupo, pelos anos de repressão e isolamento da comunidade negra sul-africana. Era algo tão absurdo, vulgar e inimaginável, que os quatro integrantes da banda vivendo juntos já configurava crime. E não estamos falando de algo há 80, 100 anos atrás - é final dos anos 1970 e início de 1980.

O National Wake ainda tinha os talentosos Gary Khoza, Punka Khoza e Steve Moni na formação e conseguiu um lugar para gravar e uma agenda de shows, algo impensável. À medida que o sucesso chegava, pior a situação dentro do país ficava. Até que a pressão foi impossível de aguentar e, aos poucos, o projeto foi minguando até acabar completamente.

Kadey foi ser arquiteto nos Estados Unidos, os irmãos Khoza ainda viveram de música, mas ambos tiveram um fim trágico - Gary cometeu suicidio em 2006 e Punka morreu em consequência da AIDS em 1995. É impossível voltar ao passado, mas o National Wake teria sido um verdadeiro fenômeno mundial, caso o destino não tivesse sido tão cruel com o quarteto. Quase 40 anos depois, ainda bem que essa história foi contada para relembramos dos terrores do racismo e do preconceito, sempre do lado oposto da liberdade artística.

Avaliação: muito bom

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