Registro foi o primeiro da Trilogia Ré, completada com Refavela (1977) e Realce (1979)
História do disco
É possível dizer que Refazenda nasceu no período em que Gilberto Gil estava no exílio, porque foi em Londres que ele ficou com saudade de casa. Não só dos amigos e de seu estado de origem, a Bahia, mas da música. Alguns projetos foram feitos e finalizados antes da gravação do disco acontecer, como um compacto não lançado pela gravadora Phonogram, o compacto – esse comercializado – "Maracatu Atômico" e o álbum Gilberto Gil ao Vivo (1974).
O ano seguinte foi dos mais importantes da carreira do cantor. Primeiro, ele e Jorge Ben lançaram o disco Gil & Jorge - Ogum Xangô, já com "Essa É pra Tocar no Rádio" no repertório - faixa viria a fazer parte do futuro álbum. A ideia era de um retorno às origens, inspirado na música de Luiz Gonzaga (1912-1989), na música regional que costumava ouvir quando mais jovem. Enfim, toda e qualquer manifestação cultural vinda do nordeste. Mas não só isso. Era também algo de teor muito pessoal, muito do fundo da alma.
Mais discos dos anos 1970:
Discos para história: Gita, de Raul Seixas (1974)
Discos para história: Exile on Main St., dos Rolling Stones (1972)
Discos para história: Construção, de Chico Buarque (1971)
Discos para história: The Clash, do Clash (1977)
Discos para história: “Heroes”, de David Bowie (1977)
Discos para história: Tonight's the Night, de Neil Young (1975)
Mas também tinha muito da influência do tempo em Londres, da cena local, do Small Faces a Jimi Hendrix, toda essa nova geração de músicos que estava surgindo justamente na época em que Gil, Caetano Veloso e outros brasileiros estavam na cidade, além da influência de Miles Davis (1926-1991). O álbum era a fusão do passado e o presente de Gilberto Gil, da relação com a música, do menino que ouvia forró e do adulto que estava vivendo, ainda que a contragosto, uma experiência nova fora do Brasil.
"Há vários elementos que convergem para o Refazenda. Primeiro, minhas referência lá do sertão, na Bahia. Vivendo profundamente essa cultura do homem sertanejo, da caatinga, da música folk nordestina. Tudo isso está na minha origem primeira, o encantamento com Luiz Gonzaga, um dos grandes mestres da música nordestina. Depois, o desembocar disso tudo no tropicalismo. Torquato [Neto] (1944-1972) era de origem nordestina, [José Carlos] Capinam... Todo mundo era caatingueiro, sertanejo. Essa vertente [música nordestina] sempre foi a principal na minha expressividade", disse Gil ao programa 'Som do Vinil', do Canal Brasil.
O reencontro com grandes músicos rendeu um trabalho espetacular em vários quesitos. Se as melodias eram bem elaboradas, as letras também eram refinadas e mostravam uma clara evolução de Gil como compositor. "Nós fizemos [o disco] dentro de um sistema que tinha naquele tempo... A sanfona, o violão e o nosso modo de tocar. Foi um dos trabalhos mais lindos que fiz até hoje", disse Dominguinhos (1941-2013), também em entrevista ao programa 'Som do Vinil'.
Veja também:
Discos para história: O Samba Poconé, do Skank (1996)
Discos para história: Saúde, de Rita Lee (1981)
Discos para história: Samba Esquema Novo, de Jorge Ben (1963)
Discos para história: Rap é Compromisso!, de Sabotage (2001)
Discos para história: Canção do Amor Demais, de Elizete Cardoso (1958)
Discos para história: Houses of the Holy, do Led Zeppelin (1973)
Dominguinhos, aliás, é peça fundamental na engrenagem do novo álbum. Porque ele é esse elo entre o passado e o presente que Gil procurava. E encontrou no sanfoneiro um resumo disso. "Dominguinhos é o símbolo disso. Nordestino, discípulo de Luiz Gonzaga, mas completamente integrado ao pluralismo da música brasileira. É um disco de reentrada. O título mostra isso, mas também significa marcha ré. É para mostrar as etapas anteriores à minha formação musical", falou.
Refazenda colocou Gilberto Gil em outro patamar, musical e pessoal. Ao redescobrir a si mesmo, ele acabou apresentando um trabalho impecável e fundamental para entender de onde o cantor veio e para onde ele estava indo. A turnê do disco durou até o início de 1976, quando ele uniu-se a Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia para no projeto Doces Bárbaros.
Resenha de Refazenda
A deliciosa faixa "Ela" abre o trabalho mostrando como Gilberto Gil é um cara muito especial para compor músicas. O gingado e suingue dela mostra todo esse potencial dele em fazer um tipo de canção pop que só ele consegue – os arranjos são ótimos. Para abrir o álbum, colocar o pessoal para dançar é sempre uma boa escolha, ainda mais vindo de quem vem.
Da dupla Anastácia e Dominguinhos, "Tenho Sede" tem aquele simbolismo do retirante nordestino ao deixar o lar. Se o cantor estava retornando ao simples, essa faixa não tem nada disso. Ao contrário, a complexidade dos arranjos e da letra melancólica (Traga-me um copo d'água, tenho sede/ E essa sede pode me matar/ Minha garganta pede um pouco d'água/ E os meus olhos pedem teu olhar) são fundamentais para compreender o álbum. Aqui, a versão escolhida é uma ao vivo que consegue transmitir todos esses sentimentos.
Outra faixa muito complexa é "Refazenda". De ritmo infantil e de fácil acompanhamento, tem ótimas sacadas e rimas fáceis de lembrar. Mais uma vez, prestem atenção ao arranjos no fundo. O passado está nas palavras (Abacateiro serás meu parceiro solitário/ Nesse itinerário da leveza pelo ar/ Abacateiro saiba que na refazenda/ Tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar), mas o presente está na qualidade das melodias. Que trabalho espetacular.
Gil afirma que "Pai e Mãe" "foi o primeiro manifesto da nova afetividade que se desenvolvia na época, indiscriminada com relação à sexo", principalmente pelo verso Eu passei muito tempo/ Aprendendo a beijar outros homens/ Como beijo o meu pai. Além disso, é uma faixa muito bonita sobre afeto, já "Jeca Total" tratou do Brasil daquela época de maneira muito simples e eficiente. E a experimental "Essa é pra Tocar no Rádio", inspirada em um disco de Miles Davis que o cantor estava ouvindo, é uma ironia ao fato de ele não tocar no rádio.
O acordeão de Dominguinhos aparece com mais clareza na introdução da animada "Ê, povo, ê", mas a coisa muda de ritmo na parte final. As quatro últimas mostram como Gil conseguiu transitar bem em várias frentes, começando na balada "Retiros Espirituais" e passando pela simples e bonita "O Rouxinol". Linda mesmo é "Lamento Sertanejo", um relato preciso do sertanejo que deixa sua casa para tentar a sorte em outro lugar. "Meditação", herança da fase hippie, encerra o LP.
Muitos discos da música brasileira merecem ser revistados pela nova geração. Refazenda é um deles, pois mostra um Gilberto Gil com um pé em Luiz Gonzaga e outro no rock inglês. É um trabalho para ser aclamado como um dos momentos mais incríveis de um músico brasileiro.
Ficha técnica
Tracklist:
1 - "Ela" (02:53)
2 - "Tenho Sede" (03:46) (Anastácia e Dominguinhos)
3 - "Refazenda" (03:08)
4 - "Pai e Mãe" (03:52)
5 - "Jeca Total" (02:53)
6 - "Essa é pra Tocar no Rádio" (03:03)
7 - "Ê, povo, ê" (04:11)
8 - "Retiros Espirituais" (04:51)
9 - "O Rouxinol" (02:39) (Gilberto Gil e Jorge Mautner)
10 - "Lamento Sertanejo" (04:20) (Dominguinhos e Gilberto Gil)
11 - "Meditação" (01:52)
Gravadora: Warner Music.
Produção: Mazola
Duração: 38 minutos
Gilberto Gil: arranjos de base, violão e vocal
Convidados:
Dominguinhos: sanfona
Momó e Rubão Sabino: baixo
Chiquinho Azevedo: bateria
Aloisio Milanes: piano elétrico
Perinho Albuquerque: coordenação musical e arranjos de orquestra
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