Crítica: The Beatles - Let It Be, de Michael Lindsay-Hogg

O ato final dos Beatles mostrado publicamente foi um comunicado de Paul McCartney anunciando a saída da banda em 10 de abril de 1970, o último pingo d’água em um copo que transbordava mágoas, brigas, estresse e partidas e retornos em quatro longos anos de convivência em estúdio. Pouco mais de um ano antes, em um acesso sem precedentes, o diretor Michael Lindsay-Hogg filmou o grupo durante os ensaios e gravações do que deveria ter sido um projeto ousado com final apoteótico. As imagens acabaram se transformando no documentário “Let It Be”, recentemente remasterizado e disponibilizado mundialmente, pela primeira vez na história, no Disney+.

Planejado para ser sobre os bastidores sobre a banda mais famosa de todos os tempos, o longa acabou passando por sérios problemas na sala de edição. E é compreensível. Em meio as tensões sobre o próprio futuro ao longo de um ano, John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr não queriam que o filme fosse pesado demais e cada um alegava, puxando para si, que um ou outro aparecia mais — as maiores tensões, claro, vinham de Lennon e McCartney. Nisso, as músicas gravadas já haviam sido engavetadas, “Abbey Road” já havia sido lançado e ninguém sabia se projeto ganharia a luz do dia.

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Hogg optou pelo mais simples: não esconder as tensões entre eles, como na famosa “conversa” entre Harrison e McCartney a respeito de como o primeiro deveria tocar a guitarra, mas omitir certas coisas. Por exemplo, após esse entrevero, o guitarrista deixou a banda e só retornou quando os ensaios deixaram o galpão do Twickenham Studios e foram para o prédio da Apple Corps, empresa dos quatro. Tudo isso acontece no documentário sem qualquer explicação, com cortes secos e com cada vez menos diálogos mostrados. Outro momento importante sem qualquer explicação é a entrada de Billy Preston nos teclados e órgão. Uma hora ele não está; no minuto seguinte, aparece a vontade entre os novos companheiros.

“Let It Be” mostra ensaios de poucas músicas completas, fragmentos de canções futuras, como Harrison mostrando para Starr o acompanhamento correto de “Octopus’s Garden” no piano, e, ainda não diretamente, que o ambiente era muito melhor quando os quatro não estavam juntos o tempo inteiro. Ainda assim, existem momentos de descontração, união e trabalho duro para entregar alguma coisa — afinal, eles estavam ali para isso.

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Muita gente reclama da maneira como McCartney puxou as rédeas para si ao ponto de virar a banda dele nos anos finais. Mas, diferentemente do que pensa David Gilmour sobre a exposição do baixista como “mandão”, era o único ainda interessado em fazer algo efetivo para uni-los de alguma forma, ainda que na marra. Não é preciso olhar a edição com lupa para tentar ver Hogg favorecendo um ou outro; a dinâmica deles era daquele jeito naquela época.

O documentário acaba sendo um grande momento musical na parte final, com a exibição de versões de “Let It Be” e “The Long and Winding Road”, além do famoso concerto no telhado do prédio da Apple para tocar “Get Back”, “Don't Let Me Down”, “I've Got a Feeling”, “One After 909” e “Dig a Pony”. Talvez a única coisa a lamentar é a polícia não prender nenhum beatle por desrespeito à ordem pública — teria sido um final e tanto — em meio a um público estupefato e impressionado com a apresentação, apesar de alguma reclamação aqui e ali.

A versão remasterizada não mexe na história original e corrige luz, cores e som, soando menos opaca e mais brilhante em todos os sentidos. O conteúdo das filmagens acabou sendo transformado em uma homenagem a banda, uma maneira fácil de agradar todo mundo e tirar as fitas das gavetas empoeiradas após meses sem saber o fazer com elas. O documentário gerou o disco de mesmo nome, lançado em 8 de maio de 1970, produzido por Phil Spector.

“Get Back”, série-documental dirigida por Peter Jackson e lançada em 2021, tirou culpas, inseriu contextos, relembrou momentos e ajudou a reescrever uma história contada tantas vezes que virou verdade nas bocas e textos das pessoas ao longo de mais de 50 anos. Nada disso teria acontecido sem “Let It Be”, provavelmente alguns dos 80 minutos mais importantes da história da música pop.

Avaliação: ótimo

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