Há muito tempo, a TV e o rádio eram grandes veículos de comunicação que conseguiam atingir um enorme público. E os artistas, muito antes das redes sociais e da loucura da internet, conseguiam transmitir mensagens em discos de alta vendagem e shows lotados pelo mundo. Então, usar essa influência e estrutura conjunta para alguma coisa poderia funcionar para mudar uma situação, como, por exemplo, a fome na Etiópia em meados dos anos 1980. Foi com esse pensamento que o ator e cantor Harry Belafonte entrou em contato com Lionel Richie sobre uma maneira de ajudar. E como ele poderia ajudar? Com uma música. É a história de “We Are the World” que o diretor Bao Nguyen conta em “A Noite que Mudou o Pop”, novo documentário da Netflix.
A ideia veio com uma frase impactante de Belafonte, ativista dos Direitos Civis e uma das pessoas que discursou no famoso protesto em Washington nos anos 1960, para Richie: “brancos salvam negros o tempo inteiro, mas não vemos negros salvando negros”. Assim, o cantor e compositor foi atrás de reforços para ajudá-lo nessa missão importante: Stevie Wonder, Michael Jackson e Quincy Jones. Os dois últimos haviam trabalhado um ano antes no arrasa-quarteirão “Thriller” e toparam na hora. Só que, cheios de compromissos, era difícil compor uma música, feita muito perto da data limite e aproveitando um dos muitos momentos de improvisação sonora de Jackson, que não tocava nenhum instrumento e fazia vários barulhos com a voz. Enquanto Wonder não atendeu as ligações e só foi aparecer tempos depois, já na gravação da demo.
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Um dos nomes fundamentais para tudo acontecer foi o empresário Ken Kragen. Dono de uma agenda cheia de contatos de respeito, ele mobilizou artistas, bateu o pé por escolhas próprias — como Cyndi Lauper ao invés de Madonna — e convenceu, com ajuda de assistentes e produtores, alguns dos principais nomes da parada musical do momento a gravar a faixa. Duas escolhas foram importantes para o resto acontecer: quando souberam que Bruce Springsteen e Bob Dylan participariam do projeto, muitos artistas se mobilizaram para fazer o deslocamento até Los Angeles e garantir o lugar no estúdio.
O diretor opta por mesclar momentos do making of do clipe da música com depoimentos de pessoas que estiveram lá. A grande estrela é Richie, uma espécie de apagador de incêndio durante a gravação, que contou com a mão dura e o respeito de Jones para fazer acontecer. Controlar o ego de mais de 50 artistas em um espaço pequeno não deve ser fácil — ele colocou a placa “deixe seu ego do lado de fora” pouco antes da chegada da maioria. Entre problemas técnicos normais, como um retorno muito alto no fone de Dionne Warwick ou um barulho durante a gravação da parte de Lauper, tudo correu nos conformes, com muito menos discussões do que o esperado, durante as mais de nove horas de trabalho quase sem pausas.
Há ótimas histórias dos bastidores, como Jackson ter uma cobra e Richie descobrir da pior maneira possível ou como uma discussão sobre um trecho a ser cantado ou não fez o cantor Waylon Jennings desistir. Também podemos ver artistas desarmados, sem a presença de empresários e puxa-sacos, sendo apenas eles mesmos. Descobrimos o desconforto de Bob Dylan durante a gravação, que rendeu um famoso meme, e uma humilde Diana Ross chegando em Daryl Hall para pedir um autógrafo e dizendo “sou muito sua fã” — isso gerou um movimento de pedidos de autógrafos entre todos eles durante um dos intervalos. E também a famosa piada de Stevie Wonder levando Ray Charles até o banheiro. Essa procissão musical gerou o hit “We Are the World”, o single a conseguir mais rápido o Disco de Platina Quádruplo e uma série de prêmios, além de cumprir, até hoje, o prometido em destinar os royalties para auxiliar no combate à fome.
“A Noite que Mudou o Pop” aposta em uma edição simples, imagens de arquivo e complemento por parte de alguns dos artistas que lá estiveram. O grande barato é ver esse processo de gravação e como Quincy Jones conseguiu fazer tudo fluir, como o grande maestro que é, para esse grande acontecimento da música pop em uma era pré-redes sociais. Além dele, o documentário ajuda a exaltar o ativismo de Harry Belafonte e o trabalho de Lionel Richie em garantir que tudo funcionasse para que ninguém tivesse nenhum privilégio — a não ser Bob Dylan, mas por necessidade. O documentário traz a história desse grande hit que ainda vale a pena ser descoberta pelas velhas e novas gerações.
Avaliação: muito bom
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