Crítica: Charly García - La Lógica del Escorpión

Charly García é uma verdadeira lenda da música argentina, o Maradona da guitarra, um gênio que fez de Sui Generis, Máquina de Hacer Pájaros e Serú Girán sucessos com trabalhos históricos. Claro que a carreira solo não seria diferente, com “Clics Modernos” e “Piano Bar”, do início dos anos 1980, marcos de uma nova era do rock local e inspiração para toda uma geração. Homenageado nos últimos anos por artistas diversos, ele estava desde “Rándom”, de 2017, sem um novo trabalho de inéditas. “La Lógica del Escorpión” chega para quebrar o jejum e mostrar como ele fez falta.

Inspirado na fábula do escorpião e do sapo, de Esopo, o álbum é uma coleção de canções revisitadas por García sem muita lógica, mas todas no contexto de 60 anos de carreira. Versão em espanhol de “Break it Up”, presente no álbum “Kill Gil”, “Rompela” mostra um cantor cheio de fôlego para mostrar que ele nunca será como os outros, inclusive ao revistar a internação em 2008 que o quase levou a morte em “Yo Ya Sé” (“Yo ya sé, que no sos un hipócrita/ Que no sos un psicópata, pero no sé por qué/ A la vez, somos todos neuróticos/ Somos todos narcóticos, pero no sé por qué”).

Estou no BlueSky e no Instagram. Compre livros na Amazon e fortaleça o trabalho do blog! Confira a agenda de lançamentos.

O blues melancólico de “El Club de los 27” trata da lenda dos artistas que morreram aos 27 anos que poderia muito bem incluir García, mas não aconteceu, com o verso “Cristo fue crucificado por pecados de alguien más (no por los míos)”, adaptação de “Jesus died for somebody’s sins, but not mine”, de Patti Smith, da música “Gloria”. Outra canção sobre a internação, “La Medicina N° 9” chegou a ser apresentada ao vivo, mas nunca havia sido gravada. O destaque vai para o vocal cru, como se houvesse uma necessidade de reforçar a mensagem dita sem recorrer a efeitos de estúdio — há referências aos Beatles, Robert Palmer e The Searchers.

“Te Recuerdo Invierno” vem da época de antes da fundação do Serú Girán, quando ainda era um adolescente. Também apresentada ao vivo algumas vezes, a letra suave ganha um arranjo tranquilo, com uma discreta homenagem ao mestre do tango Astor Piazzolla. E a sensibilidade artística é mostrada na delicada “Autofemicidio”, um momento de pausa para refletir sobre a vida. E outra lenda da música argentina, Pedro Aznar assume todos os instrumentos e divide o vocal em “América”, uma balada sobre o noticiário cada vez mais apelativo de um dos principais canais do país, mas também serve para falar dos Estados Unidos.

Gravada em 1974 pelo Sui Generis para o álbum “Pequeñas anécdotas sobre las instituciones”, “Juan Represión” tem vocal original de Nito Mestre. Cinquenta anos depois, García traz uma nova roupagem para a faixa com ele no papel principal, com a voz crua e envelhecida dando outro contexto para a potente letra, lançada no final da ditadura militar argentina que terminou com a volta de Juan Domingo Perón ao poder — um novo golpe foi dado em 1976. A animação retorna na dançante “Estrellas al Caer”, com García mais uma vez fazendo um cover de si próprio.

Parte de um projeto de um disco em parceria com Luis Alberto Spinetta que nunca ganhou vida, “La Pelicana y El Androide” teve lançamentos diferentes com os dois e ganha essa versão em parceria pela primeira vez, com a voz de Spinetta retirada diretamente das demos feitas nos anos 1980 — o uso dos sintetizadores e da guitarra ajuda a criar um clima etéreo.

Veja também:
Cinco discos #5: Willie Nelson, Fin Del Mundo, Japandroids, Jerry Cantrell e MC5
Crítica: The Cure - Songs of a Lost World
Crítica: Pixies - The Night the Zombies Came
Crítica: Soccer Mommy - Evergreen
Crítica: The Linda Lindas - No Obligation
Cinco discos #4: The Jesus Lizard, Godspeed You! Black Emperor, Ty Segall, Public Service Broadcasting e Fleshgod Apocalypse

Gravada pela primeira vez em 2010 sem autorização do espólio de John Lennon e uma das preferidas do cantor, “Watching the Wheels” (“Dicen que estoy loco, haga lo que haga”) emenda com a faixa-título para contar a fábula que inspirou o álbum. O encerramento festivo com “Rock and Roll Star”, versão de “So You Want To Be a Rock'n'Roll Star” dos Byrds, é uma celebração ao próprio García com a participação de Fito Páez, que começou a carreira profissional como tecladista da banda solo da Charly, e uma ótima ideia para coroar essa longeva carreira (“Andá al centro y búscate ya un representante que te va a cagar/ Vendé tu alma a la corporación/ Vestite bien, robame una canción”).

“La Lógica del Escorpión” chega em um momento muito diferente do auge de Charly García. Mais careta no contato humano e mais covarde nas redes sociais, o mundo não poderia ficar sem um álbum de inéditas nesse momento de celebração dos 70 anos de uma vida cheia de loucura e altos tão altos quanto os baixos que quase o levaram muito mais de uma vez. Essa lenda da música argentina merece todos os aplausos por ser tão independente quanto possível e se entregar totalmente a nobre arte da criatividade, sem qualquer medo de desagradar.

Ficha técnica

Tracklist:

1 - “Rompela”
2 - “Yo Ya Sé”
3 - “El Club de los 27” (feat. David Lebón)
4 - “La Medicina N° 9” (feat. David Lebón)
5 - “Te Recuerdo Invierno”
6 - “Autofemicidio”
7 - “América” (Ft. Pedro Aznar)
8 - “Juan Represión”
9 - “Estrellas al Caer”
10 - “La Pelicana y El Androide” (feat. Luis Alberto Spinetta)
11 - “Watching the Wheels”
12 - “La Lógica del Escorpión”
13 - “Rock and Roll Star” (feat. Fito Páez)

Gravadora: Sony Music
Produção: Charly García
Duração: 34 minutos

Avaliação: ótimo

Comentários