Festival: In-Edit Brasil 2024

Ontem (12), começou oficialmente a 16ª edição do In-Edit Brasil, tradicional festival de documentários musicais. Até o dia 23, presencial e online, o público tem a chance de assistir muita coisa e se divertir com as atrações paralelas ao longo de todo evento.

Clique aqui para mais informações sobre o festival

Clique aqui para ver a lista de filmes no Letterboxd

Clique aqui para ver como foi a cobertura do blog nos anos anteriores

Leia as críticas dos principais documentários:
Crítica: Even Hell Has Its Heroes - The Music of Earth, de Clyde Petersen
Crítica: The 9 Lives of Barbara Dane, de Maureen Gosling
Crítica: This is a Film About The Black Keys, de Jeff Dupre
Crítica: Zef – The Story Of Die Antwoord, de Jon Day
Crítica: Let's Get Lost, de Bruce Weber (1988)
Crítica: Karen Carpenter - Starving for Perfection, de Randy Martin
Crítica: Mutiny in Heaven - The Birthday Party, de Ian White
Crítica: DEVO, de Chris Smith

Abaixo, críticas de outros longas assistidos no festival:

Estou no Twitter e no Instagram. Compre livros na Amazon e fortaleça o trabalho do blog! Confira a agenda de lançamentos


“Pagano” (2024)

Radicado nos Estados Unidos e professor na Arizona State University, Caio Pagano é um dos principais pianistas eruditos da música brasileira e um estudioso dos grandes compositores do estilo. De volta ao Brasil, em 2021, para o lançamento e apresentação ao vivo do álbum “Últimos Pensamentos Musicais”, ele é retratado no documentário “Pagano”, dirigido por Carlos Nascimbeni.

O longa, infelizmente, peca em algumas coisas. A primeira delas é o uso de uma fonte muito ruim para destacar determinadas coisas, deixando a impressão de ter sido feito em cima da hora. A segunda é o espectador ser jogado em longas explicações sobre sonatas, composições, uso do piano e histórias de Franz Liszt, Ludwig van Beethoven, Robert Schumann e outros sem qualquer contexto com relação ao álbum. Sinceramente, só entendi a intenção do documentário quando li a sinopse na saída da sessão.

Nenhum filme precisa entregar nada mastigado ao espectador, mas é importante algum fio condutor para explicar melhor as coisas  seja um quadro ou uma narração, para ficar em dois exemplos simples , ainda mais em uma temática não dominada por todo mundo. Um personagem tão fascinante não merecia um documentário abaixo da média.

“Mandinga” (2023)

O blues é um gênero musical muito rico nos Estados Unidos e, com a influência dos principais nomes, ganhou um importante tentáculo na Inglaterra nos anos 1950 e 1960. No Brasil, salvo uma ou outra iniciativa isolada, é praticamente desconhecido. Mas isso não impediu André Christovam de persistir para ter uma carreira. Com as estrelas bem alinhadas, gravou o álbum “Mandinga”, o mais vendido do estilo por aqui até hoje. E é esse momento da música brasileira que Egler Cordeiro conta no documentário de mesmo nome.

Com depoimento de pessoas importantíssimas na carreira de Christovam, como Kid Vinil (1955–2017), o longa se desenvolve muito bem para falar da importância, como foi feito e o sucesso da época do lançamento, o consagrando como atenção suficiente para ser uma das atrações do primeiro festival de blues no Brasil. O auge do longa chega quando o guitarrista é convidado para tocar o disco na íntegra, no Theatro Municipal, na Virada Cultural de 2014, em São Paulo. Era a celebração de 25 anos de “Mandinga”.

Apesar de uma parte desnecessária no final, com um pedaço de entrevista com um dos ídolos do músico, isso não atrapalha o trabalho simples e direto para falar sobre esse personagem sumido do mainstream brasileiro nos anos seguintes ao sucesso. É uma dessas histórias que merece ser conhecida por mais gente.


“La Singla” (2022)

É impossível não ficar curioso ao ser a sinopse do documentário “La Singla”: uma garota de 14 anos, surda, foi a maior e mais famosa dançaria de flamenco por mais uma década. Até que ela simplesmente desapareceu no auge da carreira e nunca mais foi vista. Por mais de 50 anos, ninguém teve notícias. Até a diretora Paloma Zapata resolver contar essa fascinante história.

O documentário segue um esquema de novelinha, com ‘takes’ bem ensaiados, uma narração feita em estúdio e uma atriz sendo o fio condutor dessa “investigação”. Mas a curiosidade em saber de como Antonia Singla floresceu e desapareceu na mesma velocidade é tão grande, que nem esses recursos atrapalham o andamento. Nascida em uma família pobre, o espelho da pequena casa foi o melhor amigo por vários anos, quando aprendeu a dança flamenca. Sem a audição, dependia das vibrações dos cantores e violonistas para encontrar o ritmo. E foi na Alemanha que ela encontrou o sucesso consagrador, ao ser recebida com honras e pompa em um clube de jazz local.

O pai abusivo é um dos pilares da desistência de Singla da dança que, já idosa, evita falar sobre o assunto e não tem nenhuma lembrança física daqueles dias divertidos pelas viagens e horríveis pelo tratamento recebido ao longo dos anos em que foi responsável por sustentar 23 irmãos. Aliás, o patriarca da família Singla só retornou para casa quando soube do sucesso inicial da filha e abandonou os filhos da segunda mulher na França.

Recheado de cenas de arquivo, fotos e uma busca que mescla presente e passado, “La Singla” mostra como o sucesso pode ser uma maldição, mesmo quando o talento surge contra todas as possibilidades.


“Love, Deutschmarks and Death” (2022)

Pouco menos de duas décadas após o final da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha passava por um imenso e intenso processo de reconstrução. Sem mão de obra para isso, o país lançou um grande projeto de imigração para atrair trabalhadores de diversos países próximos em busca de uma oportunidade. Ninguém tinha ideia que os turcos deixariam a terra natal e fariam desse lugar estrangeiro o novo lar, apesar de todos os problemas de preconceito, desprezo e falta de humanidade. “Love, Deutschmarks and Death”, de Cem Kaya, mostra tudo isso através da música feita por essas pessoas ao longo das gerações nessa terra estrangeira.

Dividido em três partes, o documentário usa de colecionadores de singles, artistas de sucesso da época e muitas imagens de arquivo para situar o espectador. Recebidos sob desconfiança e nunca inseridos na cultura local, acabaram criando um enorme nicho musical em uma indústria pirata desconhecida do grande público. Esses artistas ganharam a atenção falando da saudade de casa e fazendo críticas pesadas a povo alemão. Ao longo dos anos 1960, 1970 e 1980, em milhares de fitas cassetes, esse momento da vida desses migrantes ficou registrado para posteridade.

À medida do avanço do tempo, crises, busca por melhores salários, luta pelo mínimo de direitos humanos e mudanças na lei de imigração acabaram jogando essas pessoas no limbo, gerando desemprego, falta de educação formal e a chegada de milhares de famílias, antes deixadas na Turquia pela força de trabalho. A situação só piorou com a queda do Muro de Berlim, quando neonazistas começaram a perseguir e até a matar famílias turcas. A revolta transformou a terceira geração em jovens revoltados e, com influência do rap, começaram a combater o preconceito com letras pesadas.

“Love, Deutschmarks and Death” usa de uma montagem muito colorida e tem o trabalho de explicar em pequenos quadros as pontas soltas, ajudando o espectador no prosseguimento da história, contada por meio de diversos artistas das mais variadas épocas e sexos. Os momentos finais têm uma cena pós-créditos desnecessária, mas nada que tire a força desse povo que, com sangue, suor, lágrimas e muita música, construiu um lugar que eles passaram a chamar de lar.

“Eu Sou o Samba, Mas Pode me Chamar de Zé Ketti” (2024)

A importância de Zé Ketti para a música brasileira é tão gigantesca, que um documentário não é suficiente para contar essa história de vida. Se alguém escrevesse um livro sobre ele, seriam calhamaços e mais calhamaços de papel em várias edições para chegar o mais próximo possível de conseguir falar desse gênio com propriedade. Por isso, “Eu Sou o Samba, Mas Pode me Chamar de Zé Ketti” chegou com grande expectativa, mas acaba sendo uma decepção.

Dirigido por Luiz Guimarães de Castro, o documentário tem muitas imagens de arquivo do músico morto em 1999, sempre uma coisa ótima. O problema está nas cenas com a apresentação das músicas, sempre quebrando o ritmo de depoimentos de familiares e amigos e momentos importantes da vida dele. Uma coisa é apresentar essas canções para um público mais jovem ou relembrá-las aos mais velhos, é o uso excessivo desse recurso. A impressão é que nenhum assunto tem uma conclusão adequada até começar uma nova apresentação. Outro problema é que muitas das entradas nos lugares e conversas soam montadas e nada naturais, soando um grande Arquivo Confidencial.

Apesar disso, relembrar a vida e a obra de Zé Ketti é importante. Da Portela a influência em Nara Leão, passando por grandes canções regravadas por diversos artistas ao longo dos últimos 70 anos, o compositor é um dos arquitetos da música brasileira, como diria Marcelo D2. Mas, infelizmente, o documentário não faz jus ao personagem ao apostar menos nos depoimentos e no arquivo e mais nessa parte musical. É importante encontrar o equilíbrio para qualquer documentário não soar uma imensa playlist.

“No Rastro do Pé de Bode” (2023)

Em “Respeita Januário”, Luiz Gonzaga, cheio de dinheiro, chega exibindo o “fole prateado” para o pai Januário, mas é logo rechaçado pelo véi Jacó, que pede respeito ao patriarca da família e ainda diz “respeita os oito baixo do teu pai!”. A sanfona de oito baixos faz parte das tradições musicais nordestinas desde o início do século XX, eternizadas em bailes e na memória das pessoas mais velhas. O instrumento caiu em desuso, mas, no sertão da Bahia, ainda existem entusiastas. Em no “No Rastro do Pé de Bode”, o diretor Marcelo Rabelo conversou, ao longo de 16 dias corridos, com algumas dessas pessoas cheias de músicas para tocar e histórias para contar.

Com o músico Rato Branco, infelizmente uma das muitas vítimas da pandemia de COVID-19, sendo o fio condutor, Rabelo tem o cuidado de fazer um trabalho acima da média em imagens e narrativa, deixando todos os personagens a vontade para pensar e se expressar da maneira como desejam. A valorização do instrumento casa perfeitamente com as lembranças de uma época que fica mais esquecida ao ser levada pelo inevitável fim dessas pessoas.

“No Rastro do Pé de Bode” tem apenas 60 minutos de duração, tempo suficiente para emocionar qualquer um. Com qualidade de áudio e imagens ótimas para um material relativamente simples, o documentário é um ótimo exercício de preservação de uma tradição tão brasileira, mas menos valorizada do que deveria.


“Moog” (2003)

Robert Moog (1934-2005) entrou para história da música mundial ao construir o teremim e a desenvolver o sintetizador modular, instrumento fundamental para expandir as fronteiras da música no final dos anos 1960 e início da década seguinte. Com trabalho duro, inventou o Minimoog, uma versão menor e pronta para ser comprado por músicos e entusiastas. Com direção de Hans Fjellestad, o longa opta por um caminho diferente ao ter o próprio Moog como condutor das entrevistas com pessoas que trabalharam com ele e pessoas famosas pelo uso desses instrumentos.

Narrador da própria história, ele ainda se emociona em determinados momentos ao lembrar da dificuldade inicial e como não foi fácil apresentar essa novidade às pessoas, muito menos conseguir vender algum - era um por mês e olhe lá. Nos bastidores de um show, quando acontece o grande momento do longa, ele conversa com Rick Wakeman, mundialmente conhecido por tocar teclado no Yes. O instrumentista se derrama em elogios a Mogg ao dizer que o sintetizador mudou a vida dele para sempre.

O longa não se fia apenas nas invenções em nos músicos, mas em compartilhar um pouco da rotina desse senhor, que ainda mostrava entusiasmo por palestras e feiras, tudo para falar da invenção que ajudou a dar um passo enorme em arranjos e experimentos musicais pelos anos seguintes.

“Moog” acaba sendo um dos últimos registros em vida de Robert Moog, que ainda teve tempo de curtir a aposentadoria ao lado da esposa e se dedicar à religião. Ele soa tranquilo e sereno em todos os momentos, e nunca se comporta como alguém importante. Deve ser o segredo dos inesquecíveis.


“Andrés Godoy: El Arte de Perder” (2022)

Aos 14 anos, a vida, ainda que duríssima para muita gente pelo mundo afora, é recheada de sonhos e objetivos para um futuro distante ainda não escrito. Para Andrés Godoy, foi o início de um verdadeiro pesadelo ao sofrer um acidente, perder o braço direito e quebrar as duas pernas. Isso resultou em um ano em sair do hospital. Muitos colocariam um ponto final em qualquer motivação para almejar algo melhor. Não ele. Cheio de ritmo desde a infância, aprendeu a tocar violão apenas com o braço esquerdo e, hoje, pode ser chamado de um músico consagrado.

“Andrés Godoy: El Arte de Perder”, dirigido por Sebastian Saam, mostra um músico cheio de convicções e pronto para luta, seja física ou política, em turnês por teatros e até prisões pelo mundo. Admirado por quem o assiste, causa espanto em cada apresentação do tatap, técnica de tocar o violão apenas no braço, por conseguir emocionar a todos os envolvidos. É um clichê barato, mas ele acaba sendo aquele exemplo de “olha o que ele faz com um braço só e você aí se lamentando”.

De edição simples e com poucos depoimentos, o longa é mais sobre como esse homem não se faz de coitado nem quando precisou fugir da ditadura chilena para sobreviver no início da idade adulta. Andrés Godoy tem uma história única, apresentada com muita sensibilidade e sem o tratar com alguém digno de pena. Aliás, pena é tudo que ele não precisa.


“Germano Mathias - O Catedrático do Samba” (2023)

Um dos principais ícones do samba paulista, Germano Mathias passou os últimos dias de vida morando em um conjunto habitacional na periferia de São Paulo, mas ainda mantinha o bom humor característico da juventude, quando começou a carreira e fez muito sucesso. Dirigido por Caue Angeli e Hernani de Oliveira Ramos, “Germano Mathias - O Catedrático do Samba” apresenta para as novas gerações um artista fundamental para construção de uma identidade e, infelizmente, esquecido.

Nascido no Pari, vindo de uma família de imigrantes italianos, acabou convivendo com os engraxates, negros na maioria, durante a adolescência e parte da vida adulta. Isso acabou sendo o passo mais importante da carreira ao absorver ritmos e ensinamentos para cantar e dançar o chamado samba sincopado. O primeiro sucesso, uma letra machista, racista e reflexo do pensamento reinante na época, o catapultou ao sucesso de meados dos anos 1950 até o início da década de 1980. Admirado por Gilberto Gil, que dá uma entrevista para o longa e justifica a gravação de “Minha Nega na Janela”, Mathias era um dos últimos malandros de uma São Paulo antiga e cada vez mais soterrada em prédios de péssimo gosto e farmácias de grandes redes. Ele morreu em 2022.

“Germano Mathias - O Catedrático do Samba” é o típico documentário independente brasileiro. Feito ao longo de sete anos, só saiu graças a uma verba do PROAC (Programa de Ação Cultural) para pós-produção - o efeito disso é qualidade das imagens feitas no início e no final do longa, uma diferença brutal pela sensível melhora e barateamento dos equipamentos. Vale dar uma olhada e conhecer mais da história, cheia de momentos engraçados, de um artista de mão cheia.


“Aldo Baldin - Uma Vida pela Música” (2024)

Aldo Baldin foi um dos maiores tenores do mundo durante boa parte dos anos 1970 e 1980, cantando algumas das principais óperas em espetáculos lotados. De origem humilde, nascido no interior de Santa Catarina, ele perseverou e ganhou o mundo quando arrumou as malas para trabalhar e morar na Alemanha, apesar de ser um completo desconhecido no Brasil. “Aldo Baldin - Uma Vida pela Música” conta essa história fascinante, abreviada precocemente aos 49 anos, em 1994.

Com apoio de fitas gravadas pelo próprio Baldin, poucas semanas antes da morte, o diretor Yves Goulart mergulha fundo ao conseguir entrevistas com parentes ainda vivos, a mulher, as filhas e muitas pessoas que trabalharam com ele ao longo dos anos nas orquestras. No fim da vida, descobriu o amor pelo ensino e passou a lecionar em faculdades e cursos reconhecidos mundialmente pela excelência, mudando a vida de pessoas na ativa até hoje.

Um personagem desse, em mundo fora da realidade como é a ópera, precisa de um bom tratamento para conseguir apresentá-lo ao público sem soar uma caricatura, nem parecer simples o suficiente para não agradar os fãs cativos. O diretor e a edição conseguem fazer isso ao mostrar Baldin em atos e sempre com os depoimentos criando ganchos entre si para narrar a biografia de um artista brasileiro esquecido por aqui, mas celebrado até hoje na Alemanha que o adotou e o abraçou para sempre.


“Moacyr Luz - O Embaixador Dessa Cidade” (2024)

Um dos grandes músicos e compositores brasileiros dos últimos 50 anos, Moacyr Luz é praticamente um desconhecido para boa parte do Brasil, menos no Rio de Janeiro, idolatrado por onde passa. É essa rotina, sempre com muita música, bebida e muita história para contar, que a diretora Tarsilla Alves traz no documentário “Moacyr Luz - O Embaixador Dessa Cidade”.

Ao longo de uma semana, vemos como ele, mesmo com alguns problemas de saúde, mantém um ritmo produtivo constante e quase sempre se apresenta nos mesmos lugares. Engraçadíssimo do início ao fim, os muitos causos alimentam a narrativa ao longo de pouco mais de 1h30, prendendo a atenção dos espectadores, que caem na gargalhada sem o menor constrangimento  e é impossível não rir.

Finalmente tendo o reconhecimento  e ainda em vida, algo fundamental , Moacyr emociona quando vai até a casa do parceiro Aldir Blanc ver algumas letras deixadas pelo amigo, morto em 2020, no auge do medo causado pela pandemia de COVID-19. Nesse momento, a homenagem levanta ainda mais o ótimo material.

“Moacyr Luz - O Embaixador Dessa Cidade” merece ser visto não apenas por resgatar esse personagem fundamental do samba carioca, como para mostrar que pessoas como ele, em todos os aspectos, já estão cada vez mais em falta.

“Crazy” (1999)

Resumidamente, a sinopse do documentário “Crazy”, lançado há 25 anos, diz o seguinte: “os efeitos traumáticos da guerra nos soldados das missões de paz das Nações Unidas [...] e as canções que os fazem relembrar esses momentos”. Não parece ser muita coisa, mas a célebre diretora Heddy Honigmann transforma isso em uma verdadeira pancada emocional muito difícil de não mexer com quem assiste.

Logo de cara, o primeiro entrevistado é um soldado neerlandês que participou da Guerra da Coreia (1950–1953) e, carente emocionalmente, se envolveu com uma sul-coreana a ponto de tatuar o nome da música que ela cantou para ele um dia. E essa é a história mais leve. Ao longo dos minutos seguintes, vemos oito homens e uma mulher marcados pelo trauma das guerras no Kosovo, Líbano, Camboja e Ruanda. O transtorno pós-traumático é visível mesmo em quem tenta disfarçar o envolvimento emocional em momentos tristes e lamentáveis da história da humanidade.

A simplicidade das filmagens e a carência de uma tecnologia melhor, só desenvolvida muitos anos depois, é compensada pela força dos depoimentos e músicas dos mais variados tipos. De “Crazy”, de Seal, até “Sunday Blood Sunday”, do U2, passando por “Knockin' On Heaven's Door”, do Guns N’ Roses, os traumas de guerra são revividos por sobreviventes que viram muita coisa, ficando com isso gravado na cabeça pelo resto da vida. O trabalho de Honigmann é não atrapalhar essas histórias, com ajuda de imagens de arquivo dos entrevistados, o que ela faz muito bem.


“Funk Favela” (2024)

O funk ganha cada vez mais espaço no corpo e na mente dos jovens por ser um gênero musical saído das favelas e consumido, na imensa maioria, por esses moradores. Em “Funk Favela”, dirigido por Kenya Zanatta, podemos conhecer um pouco mais não apenas de artistas de diferentes idades e experiências em São Paulo, mas quem trabalha por trás dessa indústria que movimenta dinheiro e alimenta sonhos de uma vida melhor para quem pouca ou quase nenhuma perspectiva fora dali.

Coprodução de um estúdio canadense e feito por encomenda, segundo a Zanatta na sessão de perguntas e respostas no Centro Cultural São Paulo, o longa é bem quadrado ao delimitar bem quem é quem, os problemas, a farra, os planos e futuro de quer fazer sucesso. E coloca na mesa todo preconceito das pessoas e autoridades ao citar as cinco mortes em um baile em Paraisópolis, em 2019.

Feito para explicar bem direitinho como o funk paulista trabalha, o documentário é uma boa porta de entrada para quem deseja saber um pouco mais sobre personagens fascinantes e toda potência criativa de uma cena que movimenta milhões de reais direta e indiretamente, ajudando no sustento de milhares de pessoas todos os dias do ano.

“O Homem Crocodilo” (2024)

Um dos integrantes mais famosos da chamada Vanguarda Paulistana, Arrigo Barnabé é de Londrina, no Paraná. O movimento já foi destrinchado muitas vezes ao longo dos anos em vários formatos, mas a vida dele antes é pouco falada e comentada. Então, “O Homem Crocodilo” surge para mostrar um pouco as coisas e finalmente apresentar quem era o músico antes de ser tornar um expoente de um período artístico muito fértil no Brasil.

O diretor Rodrigo Grota aposta em um documentário experimental, com imagens diversas representando falas e pensamentos do compositor e arranjador. Não é fácil acompanhar o ritmo e, em tempos de atenção cada vez mais dispersa, não conseguir entender a conexão entre tela e explicações pode ser um pouco difícil. O acerto é abdicar completamente de algo quadrado e certinho para um filme do tipo e se jogar em distorções de fotos, montagens, animações, efeitos e momentos estéticos que podem causar estranheza. Isso é colocar o ritmo do personagem e, no trabalho feito pelo músico ao longo dos anos, faz total sentido.

De ensaios experimentais até a explicação da concepção do clássico álbum “Clara Crocodilo” de um jeito muito próprio, “O Homem Crocodilo” traz um documentário a serviço das ideias do personagem, renunciando a qualquer coisa considerada minimamente normal para algo do tipo. Instigante, provocador e criativo, é um trabalho que dividirá opiniões entre amo e odeio. Exatamente como a obra de Arrigo Barnabé.

“Black Future, Eu Sou o Rio” (2023)

O trânsito musical entre Rio de Janeiro e São Paulo sempre foi cheio de semáforos, paralelepípedos e pedágios, complementados por ataques mútuos entre as partes ao longo dos anos. Nos anos 1980, isso se intensificou com cenas totalmente diferentes: a carioca, mais alegre e solar; a paulistana, mais séria e soturna, com o Ultraje a Rigor fazendo essa ponte e tentando equilibrar um pouco mais as coisas. Mas, no final daquela década, surgiu uma banda para quebrar todos esses paradigmas. Era o Black Future.

Produzido por Thomas Pappon e lançado pela RCA, “Eu Sou o Rio” é considerado até hoje um dos grandes álbuns brasileiros do período, principalmente por desafiar a estética vigente e ir contra qualquer expectativa musical para fazer sucesso no mainstream. Para contar essa história, o diretor Paulo Severo e equipe fazem a montagem de um documentário com imagens de arquivo e depoimentos da época da comemoração de 20 anos do lançamento do LP.

Com os integrantes contando as próprias histórias, eles se conectam com pessoas da cena da época, músicos e produtores, para falar das composições e da loucura musical de Tantão, sem qualquer treinamento musical e com uma cabeça fervilhante de ideias, e as letras de Márcio Bandeira, inspirada em histórias em quadrinhos da Marvel. O mainstream jamais os entenderia. E eles não queriam isso. Foi o casamento perfeito. Como não poderia deixar de ser, sem dinheiro e sem sucesso, cada um foi para um lado e fim de papo.

Das loucuras a casos engraçadíssimos, “Black Future, Eu Sou o Rio” conta com uma boa edição e complementos para jogar luz em um clássico da música alternativa brasileira inexistente nos serviços de streamings de maneira oficial, uma negligência lamentável. Mas, talvez, seja melhor assim.


“Terror Mandelão” (2024)

Conhecido mundialmente após uma avaliação positiva do site ‘Pitchfork’ e presença na lista de melhores álbuns do ano da publicação, o DJ K é um dos muitos da periferia de São Paulo que, por anos e anos, alimentou o sonho de viver de música. É essa busca, recheada de ensinamentos técnicos, muita dança, humor e sofrimento causado pelos problemas da vida, que ele e uma parte da cena do funk paulista são retratados no documentário “Terror Mandelão”, dirigido pela dupla Felipe Larozza e GG Albuquerque.

Um dos trunfos do longa está na edição com ritmo necessário para deixar público e personagens a vontade na tela e na poltrona do cinema. Qualquer coisa mais quadrada, formal e pesada não daria certo. Assim, podemos conhecer uma história de vida como muitas outras, cheia de sonhos e de uma inventividade inacreditável. O grande momento do longa não está na consagração internacional ou em como ele lida com o turbilhão dos problemas pessoais, mas a filmagem da tela de trabalho durante a montagem de uma faixa. É impressionante o ritmo e a facilidade em conseguir traduzir as próprias ideias em músicas. É difícil não o chamar de artista na pura concepção da palavra.

“Terror Mandelão” abre as portas para apresentar uma enorme variedade de subgêneros de funk, todos nascidos a partir da necessidade de se expressar usando música - falando de mulher, dinheiro, carros e da própria vida. DJ K é um dos poucos que conseguiu ir além, com trabalho duro e muita dedicação, muitas vezes sem apoio financeiro ou emocional de pessoas próximas. Fazer sucesso na Europa é um primeiro de um potencial enorme passo para muito mais lá e aqui. E conhecer essa história é fascinante sob todos os sentidos, porque viver de arte no Brasil é uma batalha constante para uma enorme parcela dessa enorme indústria.

“Na Terra de Marlboro” (2024)

Muitas vezes, uma edição esperta e um personagem cheio de boas histórias é tudo que um documentário precisa para ser informativo e divertido na mesma medida. É com esses elementos que “Na Terra de Marlboro”, dirigido por Cavi Borges, consegue arrebatar o espectador ao longo de 50 minutos de duração com um monólogo encabeçado pelo hoje sessentão DJ Marlboro.

Para começar, a duração é um problema. Porque eu ficaria, tranquilamente, mais 50 minutos ouvindo o hoje empresário e produtor renomado contando como ele saiu de Brasília, ganhou o apelido Terra de Marlboro até conseguir se transformar em um dos DJs mais famosos do mundo nos últimos 40 anos. Do sufoco dos primeiros anos, passando pela produção da trilogia “Funk Brasil” até virar residente dos programas da Xuxa e conseguir alavancar carreiras, ele é uma máquina de contar anedotas engraçadíssimas.

Surpreendentemente bom, “Na Terra de Marlboro” é a prova de que não precisa muita coisa para fazer um bom documentário. Com um convidado livre, leve, solto e ainda um apaixonado pelo faz, DJ Marlboro foi na contramão das expectativas ao conseguir o sucesso e reconhecimento dentro e fora da música.


“I Dream Of Wires” (2014)

A música sintética foi alvo de estudos e experimentos desde o final do século XIX. Com as duas grandes guerras, esse movimento só voltaria com força no final dos anos 1940, quando faculdades, departamentos e entusiastas voltaram com foco nesses estudos. Nisso, os sintetizadores modulares ganham importante papel a partir do final dos anos 1960, com Robert Moog e Don Buchla, com ideais diferentes em lados opostos nos Estados Unidos, sendo fundamentais no desenvolvimento dos aparelhos. “I Dream Of Wires” conta essa história em uma viagem cronológica através dos tempos.

É o tipo documentário para nerds musicais interessados em saber como os sintetizadores foram inventados. Com depoimentos de participantes ativos na invenção e desenvolvimento os equipamentos, vemos como a popularização demorou, mas chegou, sendo colocada para debaixo do tapete quando os computadores pessoais começaram a fazer parte da vida das pessoas no início dos anos 1980. Até um ressurgimento dos sintetizadores modulares quase duas décadas depois.

O avanço da tecnologia, saber aproveitar as oportunidades e a inventividade de entusiastas e estudiosos transformou as ideias de Moog e Buchla em instrumentos importantes para expansão artística e até mesmo criações de gêneros musicais ao longo dos anos. E, em 2024, parece que o uso dos sintetizadores está mais em alta do que jamais esteve.


“Bring Minyo Back!” (2022)

Como muitos gêneros musicais ao longo das décadas no Ocidente e no Oriente, o Minyo, um tipo de música folclórica japonesa, está desaparecendo pelo desinteresse dos jovens. Mas existe uma banda, a Minyo Crusaders, que luta pela manutenção dessa tradição que remete ao século X. E como eles fazem isso? Misturando essa música com ritmos latinos. Pode parecer estranho inicialmente, mas tudo fica mais claro ao assistir ao documentário “Bring Minyo Back!”, dirigido por Yuji Moriwaki.

Tudo bem entender as origens do Minyo, as histórias e tradições. Agora, o fascinante mesmo é descobrir como a música latina entrou no Japão, por meio de músicos que desbravaram o outro lado do globo, principalmente em Cuba pouco tempo depois de Fidel Castro assumir o controle do governo. Uma das bandas inspiradas nessa história riquíssima é o Tokyo Cuban Boys, que tocou na ilha recentemente a convite do governo local.

Essa mistura tem feito do Minyo Crusaders um queridinho dos festivais pela Europa, agitando o público com canções dançantes e coreografias animadas. Pouco antes da pandemia, eles foram até a Colômbia para gravar um EP em parceria com o Frente Cumbiero, liderado pelo renomado produtor Mario Galeano, também integrante do Ondatrópica.

É um desses documentários que pode interessar a dez pessoas no máximo, mas vale muito pena conhecer essa integração de gêneros musicais tão distintos. Em tempos de extrema-direita conservadora, essa mistura é uma ótima prova que manter uma tradição está por incorporar povos distintos, criando algo único e surpreendentemente bonito.

“Eletronica:Mentes” (2019)

O desenvolvimento da música eletroacústica no Brasil foi feito como quase toda arte por aqui: a passos de formiga, com os pioneiros fazendo o trabalho de desbravar técnicas e instrumentos em meados dos anos 1960, com Jocy de Oliveira e Jorge Antunes sendo os principais nomes. “Eletronica:Mentes”, documentário exibido pela segunda vez no In-Edit Brasil, joga luz sobre esse assunto e mostra como pessoas e instrumentos se desenvolveram ao longo de quase 60 anos de trabalho.

Os depoimentos, da nova e velha guarda, se complementam em meio a imagens de apresentações espalhadas em vários anos, lugares e formatos. Como tudo na música, alguns são extremamente técnicos e professorais, outros apenas juntaram as peças e colocaram em prática até aprender o domínio completo das possibilidades de instrumentos prontos ou construídos por pessoas entusiastas dos mais variados tipos — de conservadores a músicos que acreditam em seres de outro planeta.

Os altos e baixos da cena são mostrados sem deixar o ritmo cair, com os diretores Dácio Pinheiro, Denis Giacobelis e Paulo Beto conseguindo equilibrar os depoimentos sem deixar o material enfadonho. Se você gosta de música feita a partir de sintetizadores e experimentos sem limites, esse documentário foi feito sob medida para você.


“8 Bar – The Evolution of Grime” (2021)

Surgido no início dos anos 2000, o Grime ganhou os ouvidos e as cabeças dos jovens britânicos em músicas a 140 bpm e vocalistas falando sobre assuntos do cotidiano de maneira bem direta. “8 Bar – The Evolution of Grime”, dirigido por Ewen Spencer, Aleksandra Bilic e David Upshal conta as origens do gênero e como deixou de ser algo de nicho para virar um fenômeno.

Com uma semelhança incrível com o funk brasileiro, o gênero traz na música jamaicana, no hip-hop, no dub e no drum and bass toda base de uma música acelerada e uma evolução natural do UK Garage, um gênero de música eletrônica de sucesso uma década antes. O documentário aposta em depoimentos dos veteranos para situar o público e se apoia em imagens de arquivo para contextualizar os momentos felizes e igualmente complicados vividos pelos artistas e incentivadores da cena — muitos foram presos, outros precisaram parar com as atividades e desaparecer dos olhos da polícia.

Lá como cá, a cadeia de cima do poder não entendeu essa força enorme de expressão dos jovens e tentou acabar com tudo muitas vezes, com batidas e violência, uma realidade nada distante das periferias espalhadas pelo Brasil em bailes e festas. Mas apenas serviu para adiar o inevitável sucesso de gente que agora toca para 120 mil pessoas no Glastonbury, um dos maiores festivais do mundo.

“8 Bar – The Evolution of Grime” é uma dessas provas que a cena de música do Reino Unido é muito variada, cheia de influências das músicas dos filhos e netos dos imigrantes e com espaço para crescer ainda mais, diferentemente do que qualquer crítico ou semanário geralmente mostra ao longo dos anos. O Grime parece ser apenas uma ponta de um futuro muito promissor.

Comentários