Discos para história: Construção, de Chico Buarque (1971)


A 127ª edição da seção fala sobre o considerado por muitos críticos e pesquisadores musicais o melhor álbum brasileiro de todos os tempos

História do disco

Chico Buarque de Hollanda já era famoso no fim dos anos 1960. Vencedor do II Festival de Música Popular Brasileira, em 1966, com "A Banda", cantada brilhantemente ao lado de Nara Leão, ao empatar com "Disparada", ele mostrava-se ser diferente da geração surgida no mesmo período. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e Mutantes vinham com tudo, enquanto Chico seguia com seu smoking impecavelmente bem passado.

Ao longo dos anos, seu talento foi consolidado ao mostrar seu potencial como compositor, colaborador de outros músicos e um ótimo gosto para arranjos, mas a coisa mudou de patamar quando a ditadura militar (1964 – 1985) apertou o cerco e aumentou a censura. Vários cantores, políticos e ativistas optaram pelo autoexílio. Buarque, considerado alienado por não dar declarações fortes ou escrever canções denunciando a ditadura, foi para Itália em 1969 e passou 15 meses por lá. Fez uma curta temporada e chegou a ficar sem dinheiro. Recorreu ao amigo Toquinho, que emprestou mais do que algum caraminguá: lá eles começaram a compor o que seria "Samba de Orly".

Retornou ao Brasil para finalizar Chico Buarque de Hollanda Nº 4, seu quarto disco de estúdio. E aparecia um cantor e compositor diferentes. Mais contundente e mais seguro para falar sobre as mazelas do terrível período em que o Brasil vivia, ele denunciava a ditadura e provocava seus contemporâneos. Apesar disso, o disco não teve a vendagem dos anteriores. Porém certos números não importam. Aqui, o importante era perceber que havia uma ruptura (ou evolução, se preferir) entre o Chico Buarque lírico e sambista para alguém mais contundente e maduro em suas composições.

O resultado disso viria no compacto "Apesar de Você", uma clara martelada no regime então presidido por Emílio Garrastazu Médici (Apesar de você/Amanhã há de ser/Outro dia/Eu pergunto a você/Onde vai se esconder/Da enorme euforia/Como vai proibir/Quando o galo insistir/Em cantar/Água nova brotando/E a gente se amando/Sem parar). Por incrível que possa parecer, o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) não conseguiu ligar os fatos e liberou a música. Quando eles perceberam o erro grave, já era tarde: 100 mil compactos já haviam sido vendidos em sete semanas, e a canção era um sucesso no rádio. O resultado foi o recolhimento dos compactos restantes nas lojas, a proibição da execução da canção e o cantor foi autuado. A partir disso, o SCDP redobrou a atenção sobre Chico Buarque. Às vezes, três, quatro e até cinco pessoas eram chamados para analisar as letras para não deixar passar absolutamente nada.

Por passar por tudo isso de maneira extrema, não foi difícil ver que ele estava pronto para fazer seu melhor trabalho. Porque juntou a fome com a vontade de comer. Com ajuda de Toquinho, Vinicius de Moraes e Tom Jobim, ele montou o que seria Construção, considerado por muitos seu melhor disco e um dos mais importantes trabalhos lançados no Brasil no século 20.

Quando o trabalho saiu, a gravadora Philips passou por algo extremamente inusitado: a alta demanda, de mais de dez mil discos por dia, fez a empresa ser obrigada a contratar duas concorrentes para prensar o disco em turnos de 24 horas em sete dias por semana ao longo dos dois meses seguintes. E pela primeira vez ao final de um ano, não foi Roberto Carlos a liderar as vendas de discos no Natal. Por seis meses, Construção dominou o mercado. Ao superar em mais de três vezes as vendas de todos os seus trabalhos anteriores, Chico Buarque entregava um grande sucesso de público e crítica, mostrando que de alienado ele não tinha nada.


Resenha de Construção

O forte arranjo abre "Deus Lhe Pague", primeira faixa do disco. Chico Buarque traz um tipo de sonoridade diferente daquela em que ficou conhecida no início de carreira, acompanhado de uma melodia soturna e uma letra forte do início ao fim – um truque para falar da ditadura. A seguinte, a ótima "Cotidiano", virou uma das assinaturas do cantor ao longo dos anos. Ela de uma casal cansado da rotina, mas que não larga justamente pelo hábito de estar inseridos nela há muito tempo. Tudo isso dentro de um samba delicioso de ouvir e cantar junto.

Primeira de quatro canções em parceria com Vinicius de Moraes, "Desalento" beira um retorno ao Chico mais lírico, principalmente pelo arranjo escolhido para dar o tom – quase um bolero. Para encerrar o lado A, "Construção" é uma das grandes canções já lançadas no Brasil. Não só pela letra, sobre um pedreiro condenado a morrer na construção civil, mas também pela estrutura. Todas as palavras se conectam dentro da história de alguma maneira, não há ponta solta ao longo de toda faixa. É incrível como alguém pode fazer isso dessa maneira, a não deixar nenhuma brecha na melodia, nem na execução. Depois vem o bote: aparece a reprise de "Deus Lhe Pague", conectando a história dessa música com o início do álbum. Uma tacada e tanto.



"Cordão" abre o lado B para, mais uma vez, falar sobre a ditadura usando o artifício inteligente do jogo de palavras (Ninguém vai me acorrentar/Enquanto eu puder cantar/Enquanto eu puder sorrir/Enquanto eu puder cantar/Alguém vai ter que me ouvir). A melancólica "Olha Maria (Amparo)" traz Tom Jobim no piano em uma canção muito profunda com um Chico apresentando um tom de voz muito triste.

Escrita na Itália, "Samba de Orly" trata da chegada dos brasileiros na Europa via o aeroporto Orly-Paris quando a ditadura apertou a repressão. É um samba simples, porém cheio de significado (Vai meu irmão/Pega esse avião/Você tem razão/De correr assim/Desse frio/Mas beija/O meu Rio de Janeiro/Antes que um aventureiro/Lance mão). Outro sucesso do álbum foi a romântica "Valsinha", essa com um arranjo muito delicado.



Por ter o nome Jesus em meio a cabarés, ladrões, bar e bebidas, a versão de "Gesù Bambino" não pôde levar o nome de "Menino Jesus" como queria o compositor, então precisou mudar para "Minha História", um relato bem real da vida de alguns homens de nome Jesus pelo Brasil. A canção de ninar "Acalanto" fecha o disco com ajuda do violão, violino e da flauta, formando uma melodia muito delicada e até, certo ponto, triste.



Ficha técnica:

Tracklist:

Lado A

1 - "Deus Lhe Pague" (3:20)
2 - "Cotidiano" (2:50)
3 - "Desalento" (2:50) (Chico Buarque/Vinicius de Moraes)
4 - "Construção" (6:30)

Lado B

5 - "Cordão" (2:35)
6 - "Olha Maria (Amparo)" (Buarque/Tom Jobim/Vinicius de Moraes) (3:57)
7 - "Samba de Orly" (Buarque/Vinicius de Moraes/Toquinho) (2:40)
8 - "Valsinha" (2:00)
9 - "Minha Historia (Gesù Bambino)" (Lucio Dalla/Paola Pallotino, versão Chico Buarque) (3:05)
10 - "Acalanto" (1:40)

Todas as canções foram compostas por Chico Buarque, exceto as marcadas

Gravadora: Phonogram/Philips
Produção: Roberto Menescal
Duração: 31min10s

Convidados:

MPB4: vozes em "Deus Lhe Pague", "Desalento", "Construção", "Samba de Orly" e "Minha História"
Tom Jobim: piano em "Olha Maria (Amparo)"
Trio Mocotó: percussão em "Samba de Orly"
Toquinho: violão em "Samba de Orly"



Veja também:
Discos para história: Pet Sounds, do Beach Boys (1966)
Discos para história: Bossanova, do Pixies (1990)
Discos para história: Moving Pictures, do Rush (1981)
Discos para história: American Idiot, do Green Day (2004)
Discos para história: Kind of Blue, de Miles Davis (1959)
Discos para história: The Clash, do Clash (1977)

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