Discos para história: Tommy, do Who (1969)


A 43ª edição do Discos para história fala do então projeto mais ousado do Who: Tommy, que completa 45 anos na próxima semana. O álbum nasceu da vontade do guitarrista Pete Towshennd em fazer alguma coisa mais ousada e fora da curva, o que ganhou nome de ópera rock. Mal sabia ele que viriam mais dois discos espetaculares no mesmo estilo.

História do disco

A ideia de Tommy nasceu de um conceito que estava na cabeça de Pete Towshennd, que nasceu depois do fim do sucesso dos mods – um movimento cultural liderado pelos jovens da classe média inglesa fãs de Small Faces e The Who, por exemplo. Então contar a história de um menino “surdo, mudo e cego” não era nenhum absurdo, ainda mais com o visível cansaço do guitarrista em tocar “My Generation”, canção que colocou a banda na rota do sucesso.

Claro que transformar uma ideia em material levou tempo. Foram oito meses apenas trabalhando em cima do que entraria no disco, mais seis meses gravando e dois meses mixando tudo. Só nessa brincadeira, eles levaram 16 meses para finalizar o que só viria ganha o nome que ficou conhecido na reta final – chamar um trabalho de Deaf, Dumb and Blind Kid não era, e ainda não é, adequado.

O ponto central da história é um garoto que nasceu surdo, cego e com problemas motores. Se criar um filho com qualquer tipo de problema não deve ser fácil, imagine um com todos esses juntos? Towshennd teve a ideia de colocar isso em um disco, o que, de longe, era um trabalho muito ambicioso não só do ponto de vista da composição (de letra e melodia), mas técnico também. Gravar discos duplos era para Bob Dylan e Beatles. Muito do que ele fez está ligado ao seu encontro com o guru Meher Baba, mestre espiritual que o compositor começou a seguir seus ensinamentos ainda nos anos 1960.


Talvez o grande feito de Tommy não foi em termos musicais, mas no acréscimo da ópera rock como uma vertente a ser explorada por diversos artistas. E quem acabou sendo o pai dessa ideia foi o guitarrista do Who, que compôs boa parte do álbum sozinho e criou todas as seções e moldou o que deveria ser feito por cada um. Próximo do lançamento, as rádios inglesas ganharam cópias do disco e, como era de se esperar, foi banido pela BBC e de algumas rádios dos Estados Unidos. Os críticos se dividiram entre chamá-lo de “genial” e de “um insulto e explorador de problemas”. Passados quase 45 anos de seu lançamento, não é difícil saber o motivo do sucesso dessa obra-prima.

Neste trabalho específico, morre o Who do início da carreira, algo mais vigoroso e cheio de energia, e nasce o grupo mais psicodélico e com mais espaço para criatividade. Para quem gosta de melodias, do trabalho de composição e estrutura, é um álbum para ouvir mais de uma vez e apreciar faixa a faixa. Fica claro que a banda só virou o que é graças as mãos de ferro de Pete Towshennd no controle.

Tommy é o primeiro de três LPs seguidos que o Who faria usando o mesmo tipo de eixo: a ópera rock com uma história de pano de fundo. Não deixa de ser significativo ver que, enquanto o Fab Four se desintegrava, outras bandas tentavam ousar em trabalhos completamente fora do âmbito do pop. Ainda bem que Towshennd não mudou de ideia e decidiu lançar desse álbum duplo, o quarto disco de estúdio do Who.



Resenha de Tommy

A bela faixa "Overture" abre Tommy, dando a sensação de que algo grande está para vir. Instrumental em 95%, ela só ganha o vocal de Roger Daltrey em um curto trecho. Ela segue em um solo de violão até seu final, quando começa "It's a Boy!", de apenas 39 segundos, e é a canção que dá início para valer à história do garoto cego, com problemas mentais e surdo.

"1921" é uma canção bem pop, com uma boa melodia, mas uma letra bem estranha. Ela dá a entender que o garoto viu os pais fazendo alguma coisa que não deveria, mas não fica bem claro o que é. E parece que esse momento específico acabou atrapalhando a sequência da vida do menino. Mas “Amazing Journey”/”Sparks” o traz aos dez anos e ele aprende a sentir a música, então sua vida começa a ganhar um novo sentido com essa descoberta. Até aqui, O Who conseguiu fazer em quase 15 minutos um curto, mas interessante épico em que a banda inteira trabalha de maneira coesa e sem erros.



Parte do drama de está nos pais, que optam por deixá-lo com parentes quando precisam sair. Em "The Hawker", um cafetão aparece, e ele sera fundamental no andamento da história um pouco mais à frente. E assim termina o lado A do primeiro LP. Católicos, os pais se preocupam que o filho não encontre a religião e explicitam isso na psicodélica "Christmas", onde Daltrey canta em alto e bom som “Tommy, can’t you hear me?”. É o desespero de um pai cansado por ver o filho em tal situação e não poder fazer absolutamente nada. O interessante é perceber como Keith Moon é quem dá o ritmo da história com sua bateria, e isso fica ainda mais claro em outro drama: "Cousin Kevin". Kevin é o pior tipo de adolescente possível e fica a sós com Tommy, e o resultado isso é torturante. Aqui também podemos ver como os vocais de apoio foram fundamentais para dar profundidade para a faixa.

Cantada por Townshend, "The Acid Queen" é a história de uma cigana que diz que pode curar o problema de ser cego, mudo e surdo com alucinógenos. O garoto não melhora, ao contrário, pira completamente e fica fora de si. Mas como saber? A resposta está em "Underture" e em toda sua composição de aventura, medo e adrenalina. The Who conseguiu capitalizar tudo isso em um só lugar, e parece que somos todos surdos, cegos e mudos.



O lado A do segundo disco começa com o duo "Do You Think It's Alright?" (aqui a mãe ainda questiona o pai) e "Fiddle About", aonde somos apresentados ao molestador de crianças tio Erine. O desenvolvimento de Tommy segue, e em "Pinball Wizard" temos um garoto habilidoso em jogar pinball, e o Who mostra sua gama rock do início da carreira em uma faixa que mistura a guitarra pesada e o refrão forte.

Depois de anos, finalmente a família leva o menino ao médico ("There's a Doctor"), que recomenda ao paciente olhar no espelho ("Go to the Mirror!"). As duas canções mostram bem a versatilidade da banda em pouco tempo. Comemorando a melhora gradativa, Tommy sempre olha para qualquer espelho, ficando horas vendo a própria imagem. Em "Tommy Can You Hear Me?", a família clama pela atenção do garoto, mas sem sucesso. Irritada, a mãe, em "Smash the Mirror", quebra todos os espelhos da casa. Ela mal sabia que isso curaria seu filho.

A dobradinha "Sensation", última faixa do lado A do segundo disco, e "Miracle Cure", primeira do último LP, trazem o menino curado de seus problemas. Mas como nada vem sozinho, ele se acha uma espécie de guru e entendedor de tudo que acontece de errado no mundo. E até uma paixão, chamada "Sally Simpson", ele ganhou. Ela tentou de tudo para encontrá-lo, mas só conseguiu ser expulsa a pontapés. Tudo em uma tocada muito, muito pop.



"I'm Free", um rock psicodélico em que o astro da história mostra-se livre de seus problemas e pronto para começar uma vida nova como guru, atraindo um enorme séquito se seguidores em "Welcome" – canção claramente inspirada no movimento celta dos séculos 18 e 19. Então temos a volta de tio Ernie em "Tommy's Holiday Camp", quando ele se aproveita do sobrinho para lucrar em um camping caro e superestimado.

As duas últimas músicas, o pop de "We're Not Gonna Take It" e a psicodélica “See Me, Feel Me”, mostram a faceta de Tommy. Ao querer apenas mostrar o que vivia quando estava cego, mudo e surdo, ele tentou se vingar ao máximo dos seres humanos. Revoltados, os tais seguidores o abandonam. De saco cheio, ele retorna ao estado anterior e fica curtindo suas fantasias.

A troca de vocalistas, o ritmo do disco e o variado tipo de instrumentos e melodias usadas nesse LP duplo fazem de Tommy um clássico do rock e a primeira ópera rock e fazer sucesso. Aqui, o Who consegue transformar uma mera ideia em uma peça de teatro psicodélica. Um trabalho sensacional de quatro caras que mudaram os rumos da música ao dar mais uma opção para quem desejava sair do pop-rock das rádios.



Veja também:
Discos para história: Born In The U.S.A., de Bruce Springsteen (1984)
Discos para história: The Rolling Stones, dos Rolling Stones (1964)
Discos para história: The Unforgettable Fire, do U2 (1984)
Discos para história: Highway to Hell, do AC/DC (1979)
Discos para história: A Hard Day’s Night, dos Beatles (1964)
Discos para história: Dookie, do Green Day (1994)

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