Show: Legião Urbana XXX em Sorocaba (11/3/2016)

Foto: Divulgação/Facebook

Quando a esperança está dispersa, só a verdade me liberta

Por Fernando Cesarotti

Ah, se eu soubesse lhe dizer o que eu sonhei ontem à noite
Você ia querer me dizer tudo sobre o seu sonho também.
E o que é que eu tenho a ver com isso?

Ah, se eu soubesse lhe dizer o que eu vi ontem à noite

Você ia querer ver, mas não ia acreditar.
E o que é que eu tenho a ver com isso?

Na última sexta-feira à noite eu vivi algo parecido com um sonho. Não era inédito: era repetido, mas com algumas diferenças. Tinha uma banda em cima do palco, mas o cara cantando, por exemplo, era diferente. As músicas eram quase as mesmas, mas os arranjos também não eram os mesmos, eram mais pesados. O lugar também era o mesmo, e de novo estava lotado. O nome era o mesmo, aquele que me acompanhou durante a infância e a adolescência, que está sempre ao alcance dos meus ouvidos como uma zona de conforto, alguém que nunca vai me abandonar: Legião Urbana.

Eu tinha 14 anos em 11 de julho de 1992, quando a Legião Urbana tinha vindo pela última vez a Sorocaba. O show ficou famoso porque foi a abertura da turnê do disco V, uma turnê que eles resistiam a fazer porque Renato estava numa tentativa de período de 'limpeza' e não se sabia como seria encarar o palco, ele que sempre teve uma relação dúbia – “eu quero ser idolatrado, me amem!”, ele cantou nos shows de 1994 registrados em disco, “comprem o disco senão não tem turnê”, ele disse na gravação do Acústico MTV. Na minha cabeça, aquele show foi ótimo: começou com o medley "Love Song"/"Metal Contra as Nuvens", teve praticamente todos os clássicos que eu queria ouvir (se minha memória não engana, só faltou “Eduardo e Mônica”) e acabou com “Faroeste Caboclo” – que, segundo o Renato, a banda não tinha ensaiado e foi meio no improviso. Foi lindo. Sim, eu sei que os críticos acusam Renato de fazer poesia rasteira pra adolescentes, que os timbres eram copiados dos Smiths e o ritmo da Gang of Four – mas, vejam, eu não ligo para isso hoje, imagina aos 14 anos...

Corta para 2016, 11 de março, já madrugada do sábado 12, na verdade. Por volta de 1h, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá sobem ao palco e puxam a fila para um show que é uma celebração. Renato Russo não está lá fisicamente, mas quem acredita em alma, espírito ou fantasma sente sua presença desde o primeiro ‘boa noite’ e os acordes iniciais de “Será”. Num arranjo um tanto mais pesado, puxado por uma banda bem afiada e com o ator André Frateschi nos vocais, fecho os olhos e me arrepio como um adolescente após seu primeiro beijo. É assim que fico até o fim da música, curtindo e imaginando tudo o que me levou até ali, desde o toca-fitas comprado pelo meu pai em 1988 para que eu não usasse sua vitrola, acompanhado pelo “Dois” e pelo “Que País É Este?” (além de “Go Back” do Titãs e “Bora Bora” do Paralamas, e chega de digressão).



Sem falar nada entre as músicas, a banda emenda todo o primeiro disco (que eu só ganharia, também em K7, em 1993), que, afinal, é a razão de ser da turnê, comemorar seus 30 anos de lançamento, completados no ano passado. E a minha surpresa se mantém: parece que Dado e Bonfá passaram os meses antes da turnê ouvindo uma mistura de My Bloody Valentine com heavy metal, e os arranjos soam mais pesados do que eu jamais imaginaria ver num show da Legião. Esqueça os 'clangs' à la Johnny Marr e pense nos ‘Tem tem tem’ de “Smoke On The Water”: é isso. À exceção de “Geração Coca-Cola” e “Teorema”, tocadas na velocidade original, revisitando o punk do Aborto Elétrico, todo o resto parece mais lento, muito alto e pesado. Tem até os arranjos vocais originais, os “ôôôô” e segundas vozes que Renato nunca deixou reproduzir ao vivo. “Por Enquanto” se emenda com o refrão de “Heroes”, e aí de novo é difícil conter as lágrimas.

Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar o coração

Vamos celebrar nossa bandeira

Nosso passado
De absurdos gloriosos
Tudo que é gratuito e feio
Tudo o que é normal
Vamos cantar juntos
O hino nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão

Então Dado e Bonfá interrompem o show para tocar um trecho de entrevista de Renato, um pequeno momento “mesa branca” que dura alguns minutos, o suficiente para que eles tomem uma água, não são meninos mais, afinal. E voltam logo em seguida, com “Tempo Perdido”, “Daniel na Cova dos Leões”, “Há Tempos”. E o único momento pentelho do show: os convidados. Jonnata assume o vocal de “1965 (Duas Tribos)” e depois Marina Franco canta “Dezesseis”, e os dois em dado momento tentam sexualizar a canção com trejeitos que, cara, não: fã do Legião é nerd punheteiro sofredor quase assexuado, não combina. Ela ainda divide os vocais com Frateschi em “Eu Sei” e há certo alívio coletivo quando os dois saem do palco. E a celebração é retomada: Bonfá deixa a bateria para cantar “Pais e Filhos” e surpreende com seu vocal afinado, Dado pede “serenidade” nos protestos de domingo antes de anunciar uma música que reflete muito os tempos atuais, “Teatro dos Vampiros” – “Os meus amigos todos estão procurando emprego” te soa familiar? (E ele ainda altera o refrão, canta 'Voltamos a viver como há trinta anos atrás', e a música faz ainda mais sentido.) Dado erra a letra no começo de “Índios”, Frateschi assume e Bonfá canta os últimos versos, e o show 'acaba'.

A pausa não dura nem três minutos e já vem o bis, com “Faroeste Caboclo” que me faz de novo fechar os olhos e chorar com 'aquela gente que só faz sofrer' e outra música que parece ter sido escrita ontem, “Perfeição”, 'o meu país e sua corja de assassinos covardes estupradores e ladrões', um quase hip hop com base pesadíssima. “Que País é Este” encerra a festa, mas é “Perfeição” mesmo que me impressiona pelo zeigeist. Nossos corações com pressa sonham com a chegada da primavera. Depois dessa celebração, que venha a perfeição.

Originalmente publicado aqui.

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